sábado, 30 de junho de 2012
a palavra desconhecida
a haste da palavra
curvava-se sobre um rio imaginário
numa paciência de cana de pesca
sobre o século
onde a corrente
de olhos semicerrados
prossegue exausta e indiferente
manuseando o seu realejo de água
onde aflora a memória em remoinho
da nudez dos corpos jovens
o reflexo dos peixes
e a fragrância de margens
a destoar
apenas a sombra ténue
do rouxinol que tinha sido devorado
pelo salgueiro
isso foi suficiente
para que a palavra se desprendesse
e flutuando levada pela corrente
precipitou-se no açude
sem dizer nada
Lisboa, 30 de Junho de 2012
Carlos Vieira
quarta-feira, 27 de junho de 2012
viagem sem regresso
viagem sem regresso
oiço o alvoroço
o enigma de seiva redonda
que a tua língua decifra
na fruta madura e límpida
... e as pegadas no trilho perene
do tigre no teu desejo relâmpago
nos lábios de sal tremendo
tu espreitas na espiral da onda
após um tranquilo lençol de água
onde deflagra a raiva e a luz
e o gesto tímido e macio da lua
que se apaga ao fundo do túnel
e se acende neste bolinar de barco
que navega intrépido nas tuas coxas
contra a parede de musgo e de líquenes
saboreando o teu mistério de florir
doce semente que esquecida
estás do esplendor das colheitas
meu altar de solidão e espuma
para onde a intempérie te varreu
minha inevitável falta de sentido
que te faz deflagrar numa audácia
de pétalas e de penas
num sôfrego rumo de ternura
até ao intenso estertor do teu torso
que depois transporto
desmaiado nos ombros
e agora juntos
prontos a degolar
a jugular da normalidade
da volúvel memória
que impede que cresçam as asas
de uma nova loucura
Lisboa, 27 de Junho de 2012
Carlos Vieira
oiço o alvoroço
o enigma de seiva redonda
que a tua língua decifra
na fruta madura e límpida
... e as pegadas no trilho perene
do tigre no teu desejo relâmpago
nos lábios de sal tremendo
tu espreitas na espiral da onda
após um tranquilo lençol de água
onde deflagra a raiva e a luz
e o gesto tímido e macio da lua
que se apaga ao fundo do túnel
e se acende neste bolinar de barco
que navega intrépido nas tuas coxas
contra a parede de musgo e de líquenes
saboreando o teu mistério de florir
doce semente que esquecida
estás do esplendor das colheitas
meu altar de solidão e espuma
para onde a intempérie te varreu
minha inevitável falta de sentido
que te faz deflagrar numa audácia
de pétalas e de penas
num sôfrego rumo de ternura
até ao intenso estertor do teu torso
que depois transporto
desmaiado nos ombros
e agora juntos
prontos a degolar
a jugular da normalidade
da volúvel memória
que impede que cresçam as asas
de uma nova loucura
Lisboa, 27 de Junho de 2012
Carlos Vieira
segunda-feira, 25 de junho de 2012
Príncipe das trevas
na noite escura
a humanidade é um rabisco tosco, traço aceso do lápis de
carvão, cujo vigor se vai esbatendo
no precipício branco da página com assinatura reconhecida
no ardor da luta
a escrita mais pungente são hieróglifos, feita das
cicatrizes dos soldados com mais ou menos
pontos, evidências de danos colaterais
essa alma de fraga
feita de barragens e de quedas de água, nos rápidos percursos
da vida do alcatrão e do
cimento e das energias alternativas
fé indómita
de peregrinos e empreendedores, articulando orações, cunhas,
encruzilhadas, carreiras,
atalhos, futebol e currículos
loucura de sílex
sobrevoando o céu e a terra leva-os consigo, não lhe cabem no
peito, emergem às golfadas,
punhais e punhos de renda dos negócios, semeando
estratégicos vendavais
vai duende e arauto lúcido
que percorres avenidas e becos e conta as histórias, apenas histórias,
que outra coisa nos
podem contar, estes novos duendes, depois de jogarem na
bolsa e no totoloto
neves eternas, vegetação luxuriante e animais portentosos
ninguém previa sua morte fulminante, naquela estação de
inverno, de um período com
“forfait” incluído, naquele ano só farias pistas vermelhas
no entanto já lhe chegara aos ouvidos
pássaros de insónia e
da montanha
cujo canto atravessa o deserto e se afogam de inveja, nesses
oásis que são as áreas de
paisagem protegida, depois de não sei quantos “Valiuns”
estou aqui ao balcão desse manancial de seiva e sol
que alimentam a minha sede de justiça, da raiva justa dos
rebeldes e a cirrose, de água lisa em
copo alto com duas pedras de gelo, meu amigo dá de beber à dor
na insólita manhã
onde todos dormem e desconhecem o sucesso vespertino dos
burocratas, as manchetes que
vendem o relevo dos escroques e medíocres e ligam a
ventoinha com que espalham a lama
brotam na árvore nua
nesse espectro dilacerado das lâminas da indiferença e de
animais abandonados e flores de
metal
que falharam por uma unha negra uma zona vital
véspera de chuva ácida
de mão esgarçadas e de bocas ávidas, desconhecendo a
essência das palavras, estamos em
seca estrema
e tempo estreito
vertigem de um olhar atónito no vazio, nesse magro pecúlio
de uma vida inteira, “jaz morto e
arrefece” o corpo de um ladrão, depois do furto formigueiro
olha a colheita escassa
beijada pelos pés descalços da brisa, enfeitiçada do canto que
não conhece a esperança
fechem a porta, cuidado com as correntes de ar e os cartões
de crédito
vento norte
país do sul de gente inquieta, aguardando o tempo do
regresso ao sonho dos barcos cansados
apaga esse ar envergonhado da periferia, de não conseguires
pagar o empréstimo
mar rouco
ruminando o sal e vigiando o quarto crescente e a
inacreditável destreza dos peixes nos corais
mar da frota desmantelada e de pensão completa e de reforma
adiada
silêncio antigo
cúmplice das festas caladas no território dos sentidos, de corpos
que só agora desceram das
nuvens, acorda meu amigo da noite escura para a dura
realidade
e aguenta estóico
que é sempre tempo de escrever
e virar nova página
da mesma vida
vai sendo tempo de
uma nova vida
de uma nova morte
Lisboa, 25 de Junho de 2012
Carlos Vieira
domingo, 24 de junho de 2012
a minha alegoria da caverna
no meu sonho de gruta
há um veado ferido
que cintila amordaçado
na ancestral pintura
ali acredito na noite
de um beijo e ponho o dedo
na ferida da pedra
e acredito no que vejo
uma nota breve ou brilho fugaz
uma palavra dura ou súbita dor
estou perdido perseguindo
a sombra e o que não vejo
porque ficando cego
na clarividência da contraluz
apenas invento a constelação
etérea do que me seduz
Lisboa, 24 de Junho de 2012
Carlos Vieira
sábado, 23 de junho de 2012
Vislumbre
canto de pedra
bruta
que se esconde
que se esvai
pelas entranhas
da terra
que em ti se escuta
que em ti perdura
nas lágrimas
que moldaram
a gravidade
do teu busto
que aguarda
o nunca esquecido
vulto de um amor
que partiu
tão jovem
que não chegará
atrás da cortina
à janela da tarde
de cantaria
onde cresce
a flor que irrompe
a raiz do apelo
da alegria breve
que bate
no incógnito
coração do tempo
Lisboa, 23 de Junho de 2012
Carlos Vieira
“Waiting” por Shimoda7
quinta-feira, 21 de junho de 2012
dois potros...
dois potros
no longo prado verde
na rima do galope
belas as crinas
do que era em verso branco
e também do preto
depois o laço do poeta
a visão do coice
em que viu estrelas
o tropel e a cor
da poesia que cresce
no rumor da erva
montar em pelo
as palavras na rédea curta
das estrofes
Lisboa, 21 de Junho de 2012
Carlos Vieira
Khwa ttu - When we meet Paul, the Peacemaker of the Native American Odawa
quarta-feira, 20 de junho de 2012
domingo, 17 de junho de 2012
Paisagem urbana do amor imaterial
o semáforo
essa árvore cansada de cores
surpreendente gaiola de pássaros onde te surpreendi
os néones
são pássaros na demência da luz
são palavras inquietas e sôfregas na noite dos nossos corpos nus
pela alameda
nossa rua larga onde as árvores se encontram
para os amantes malditos se esconderem e se beijarem
a esplanada onde te vi
era um navio ancorado onde os homens
fingiam aventuras e viagens à volta de um café com ou sem açúcar
a zebra
animal do asfalto
leva-me depressa até ao outro lado do sonho
no beco
onde eras a vítima que se encontrava cercada
e nessa altura abria a porta para que pudesses entrar no poema
eis o largo
onde podemos ver tudo e todos nos podem ver
todos a desejam, todos a podem roubar, depois da minha espada
no chafariz
água fresca e sede antiga
corre na torneira onde se lava as mãos e refrescam as ternas memórias
pelo parque
a raiva e a tristeza pedalam
passam por nós, cabisbaixos, na reviravolta dos guiadores das bicicletas
vais de metro
onde todos cheiram o óleo queimado nas travessas
e sentes, agora mais perto de ti, o coração que está ao teu lado
toca a campainha
insiste para o rés do chão da tua amada
do outro lado, a sua voz eléctrica ou o silêncio ensurdecedor
nas sete colinas
estávamos exaustos no tropel do amor
dos sonhos bêbedos de luz e o cavalo levava o freio nos dentes
paragem do 15
as bátegas de água fustigavam o acrílico
sobre a memória que resta do teu rosto escorre a água da chuva
no passeio
mudei para o outro lado
naquele dia não sei se me trocaste as voltas ou as regras do jogo
os bancos de jardim
são imperfeitos esqueletos de árvores
onde se sentam no princípio e no fim da vida, eternos, o amor e a solidão em osso
ia à farmácia
ficava atónito de tantos cheiros e esquecia-me dos recados
encantado da arrumação dos remédios e da resistência do coração da minha avó
as sargetas
eram bocas de palavras putrefactas
pode-se ouvir além do rumor do esgoto, o rio no reflexo de prata dos peixes
no sinal de trânsito
tu esperas anoréxica, imóvel e erecta
não tens que dizer nada, irei contigo, tu és o meu sentido único e proibido
o marco de correio
onde deixei a carta, poço de segredos e de saudades
as palavras e os endereços acotovelam-se na sua urgência de partir
na cabine telefónica
as minhas mãos estrangulam o fio do ausculta(dor)
do outro lado contorcendo-se na cama, tu mordes os lábios, o gosto do teu sangue
da torre mais alta
olhas a extensão da minha cidade
ali está a meus pés, quase tudo o que juntei para te dar
do zoo
todos os animais passaram perto da minha infância
vou em cima de um elefante ou há um fosso na minha memória
o liceu
esse intervalo da alegria que me confunde
de todas as perguntas e testes, de todo o amor interrompido pela campainha
aquele lago
era um relógio parado na sombra do tempo
reparo na profundidade do teu olhar e remo depressa para chegar a terra firme
no jardim
de escorregas e baloiços as crianças jogavam às escondidas
naquele tempo os adultos viviam às escondidas, não eram para brincadeiras
naquele candeeiro
céptico tutor das trevas
apaga-se o espectro de um vagabundo pois nele triunfa a tua luz interior
vieste comigo dos museus
tu eras todas aquelas belas mulheres que trazias
Impressionava-me a abundância da sua carne e o segredo macio da sua pele
vou ao café
bebo tranquilo as amargas notícias do jornal
pus demasiado açúcar depois de ler perdidamente o teu olhar
água furtada
é um sonho recorrente
o vórtice de telhados, onde, ao teu colo, podia ser eu o gato sentado que sorri
aeroporto
tu, as filas do check-in e os aviões na placa
e a merda de vida, de quem tem de, literalmente, voar entre uma coisa e outra
desço o elevador
venho do firmamento e das nuvens
deixei a cama desfeita, nos contornos dos lençóis paira teu perfume
na biblioteca
andava há dias a ler o mesmo livro
as tuas pernas passavam-me uma rasteira, a cada virar de página
vejo-te na ponte
o seu tabuleiro e seus pilares, pintados de vermelho de segurar a lua
velas brancas sulcando no rio azul, tu dormes e eu já não encontro posição
nas urgências do hospital
foram tantas as noites brancas e as batas brancas
olhavas para os resultados do ECG e para prova de esforço e ficavas pálida
cais
de onde nunca parti
por mais que os teus pensamentos mais chegados, me deixem saudades
eléctrico
esse surreal meio de transporte
no cruzar dos fios e no chiar das rodas, nos carris faiscava o nosso amor em curto-circuito
ambulância
vai aflita pela rua acima
apaga por breves momentos a solidão de todos os transeuntes, por instantes deixei-te ir
meu castelo
entre tuas ameias pouso o arco e as flechas
estou sitiado há vários dias da beleza dos teus seios, desse doce veneno, nunca me canso
no peito uma gaivota
amante dos abismos e do silêncio
sobre o terramoto da cidade e da tua ausência a fúlgida elipse do seu voo
o azulejo
na parede do vazio é uma secreta flor e um beijo húmido
no chão do pátio os mosaicos osculam teus pés que derrotaram o deserto
Lisboa, 17 de Junho de 2012
Carlos Vieira
sábado, 16 de junho de 2012
a vida por um tri(s)te
a vida por um tri(s)te
regressa à página vazia
a esse torpor húmido
de uma primavera sem flores
à asa suspensa
no aparo do medo
dentro de si procura a palavra
a raiz primordial
rastilho para o grande “boom”
do princípio de um novo mundo
as sôfregas mãos
presas nessa hidráulica
que liberta a corrente
da humanidade
que faz cair o pano
e o atordoa do espanto das aves
fósforo que acende o sorriso no olhar
o dedo a florir no gatilho
espreitas no longo cano negro da vida
o dourado projéctil
que tornaria vermelha a solidão
sem um pingo de tinta no coração
ele ali está exangue
depois da noite em branco
de regresso ao “felizmente à luar”
da última folha
ao deve e haver do amor e da morte
às estatísticas
de uma maior esperança de vida
Lisboa, 16 de Junho de 2012
Carlos Vieira
“La Page Blanche” René Magritte
Extrato de texto de Philippe Sollers
"Num só Inverno já foram recenceadas mais de cem mil gaivotas pequenas n Île-de-France. Vindas do Norte (Países Baixos, Alemanha, Báltico, Bélgica), riem no céu de Paris. damos com elas nos lagos dos bosques de Vincennes ou de Boulogne, ou ainda nos Buttes-Chaumont. Dormem juntas, às centenas, na superfície aquática. A comida espera-as nos sacos plásticos que forram as latas de lixo das ruas ou do...s pátios dos prédios. Os seus territórios predilectos são os terraços e os espaços saibrados, mas também os aeroportos onde se podem divertir a morrer nos reactores dos aviões, armadas em autênticas terroristas. Aqui na ilha, muitas vezes voam em círculos e aos pares em torno de nós, planam, parecem defender o horizonte, por vezes tentam incursões na erva quando faz muito calor ou o temporal ameaça. Por um instante contemplo a covinha que tens a cima da bochecha esquerda, mão encostada à têmpora direita, a orelha despegada comestível, os dedos, o nariz fino. A questão que reaparece é a da "própria pureza". Isso, não esperava eu. Tu escutas, falas, voltas a escutar com ar sério, sorris, és uma paisagem mutante, passas, a mão pelo cabelo curto, o indicador volta-te um pouco à orelha, ao lóbulo da orelha, o polegar aflora-te a face, tornas-te frágil, mas não, eis-te de novo com força e fulgor. Levantas-te, vais procurar cerejas, que palavra magnífica, cereja, sem falar daquelas que esta induz, morango, framboesa, amora, ameixa, azeitona, mirtilo. Outras tantas sílabas para comer. Sentas-te de novo, atiras com os caroços para as ervas, suspiras, atas outra vez o lenço negro ao pescoço, vejo-te melhor uma das veias, bocejas, um gestozinho da mão direita em frente dos lábios. Dizes que tens sono, que vais dormir, deixas atrás de ti a tarde à contemplação vazia."
A ESTRELA DOS AMANTES
PHILIPPE SOLLERS
A ESTRELA DOS AMANTES
PHILIPPE SOLLERS
sexta-feira, 15 de junho de 2012
quarta-feira, 13 de junho de 2012
natureza morta da insídia
são ínfimos os fragmentos
talvez sejam porcelana antiga
que não resiste à minúcia de um olhar
descortinando o ardil
o esvoaçar da cortina
permitiu o fulgir da louça frágil
e perceber a sede acesa do lugar
na perplexidade inocente da carne
oiço a brisa de um alaúde
e a penumbra do perfume já distante
de uma pérfida Cleópatra
o papiro respira a amável escrita
no perímetro do vinho derramado
adivinhavam-se partículas do veneno
nas arestas de suor e nas esquinas
espreita a náusea e o véu do poder
após os cálculos desfeitos em pó
que tinha pairado nas horas mortas
intuem-se as vozes ciciadas
em ciladas mínimas mas bastantes
rastejam nos relógios vigiados
veludos não anunciados e perversos
na miríade de vestígios de carícias
sofre a nudez breves golpes de luz
Lisboa, 13 de Junho de 2012
Carlos Vieira
“A negação de S. Pedro” de Caravaggio
O Amor
Aragon:
" O amor é a única perda da liberdade que nos dá força": esta frase que ouvi à pessoa a quem mais quero neste mundo resume tudo quanto eu sei sobre o amor.
Quando o amor exige o sacrifício de tudo quanto faz a dignidade da vIda, nego que isso seja o amor.
Não posso passar sem a presença da pessoa amada. É possível que isso seja uma enfermidade."
DO AMOR ADMIRÁVEL E DA VIDA SÓRDIDA
" O amor é a única perda da liberdade que nos dá força": esta frase que ouvi à pessoa a quem mais quero neste mundo resume tudo quanto eu sei sobre o amor.
Quando o amor exige o sacrifício de tudo quanto faz a dignidade da vIda, nego que isso seja o amor.
Não posso passar sem a presença da pessoa amada. É possível que isso seja uma enfermidade."
DO AMOR ADMIRÁVEL E DA VIDA SÓRDIDA
terça-feira, 12 de junho de 2012
Amores de Verão VII
Foi nesse tempo que amou, sem reticências, a sua primeira professora. Foi ela, que só por estar ali, o ensinou sem saber, depois das letras brancas de giz e português escorreito, toda a ternura do fim do Verão.
Ele lembrava-se das suas mãos
sujas de óleo, na corrente de bicicleta dela, dos segredos que lhe contou, de
todas as ondas que amansou por ela, da sua elegância, do seu precário
equilíbrio.
Podia até falar de todas as vezes
que vigiando-a, a salvou do esquecimento e do seu sabor a sal, um paradoxo de
ingenuidade com o cabelo em desalinho.
Tantas foram as vezes que correu
atrás do chapéu e depois lho devolvia, como se fosse uma pomba, aguardando o
seu inesquecível sorriso agradecido.
Quantas foram as vezes que ele sonhou
o seu saber tranquilo, nas suas pernas cruzadas e o gelado de baunilha, a escorrer-lhe
por um canto dos lábios.
Recordo-a no final da praia, de fato
de banho claro, a cor foi-se desvanecendo com os anos, ela e o rabo-de-cavalo dos
seus cabelos louros, iam de encontro à falésia, havia o inevitável reflexo dourado
da areia, que para o efeito, podia não ter tido qualquer influência ou teria
sido esse ângulo de luz que a iluminou até hoje?
No fim da tarde uma maresia
intensa, dentro de mim, um oceano de angústia e uma vontade indefinível de a abraçar,
como se a acabasse de perder.
Já possuído das competências que ela
o dotara, conseguiu ler e reler dias depois, a notícia cinzenta e triste, no
jornal do país triste, nesse dia ainda mais cinzento, “jovem professora não
sobreviveu em colisão frontal”.
No seu peito deflagrou um grito, as
letras brancas do quadro negro e as letras negras daquele jornal, agora
bailavam atónitas nas suas mãos, perante os seus olhos foram-se desfazendo, líquidas,
naquele bocado de papel amargo.
Seria sempre mais adequado e
razoável, um outro distanciamento, a verdade é que ia começar um novo lectivo,
o estudo seria, certamente, muito mais produtivo.
Lisboa, 9 de Junho de 2012
Carlos Vieira
“Jacket” por Jodoin
Amorosa antecipação
Nem a intimidade de tua fronte clara como uma festa
nem o costume do teu corpo, ainda que misterioso e tácito e de menina,
nem a sucessão de tua vida em palavras ou silêncios
serão dádiva tão misteriosa
como contemplar teu sono envolvido
na vigília de meus braços.
Virgem milagrosamente outra vez, pela virtude absolutória do sono
quieta e resplandecente como um destino que a memória escolhe,
me darás essa margem de tua vida que tu mesma não possuis.
Lançado à quietude
divisarei essa praia última de teu ser
e ver-te-ei, quiçá pela primeira vez,
tal como Deus há de ver-te,
desbaratada a ficção do Tempo,
sem o amor, sem mim.
segunda-feira, 11 de junho de 2012
Amores de Verão VIII
Quase podia ouvir
os teus pequenos passos
estudados para o encontro
furtivos
por detrás das grandes rochas
do pensamento
antes da paixão
essa lâmina forjada na lua
perpendicular
o teu olhar libidinoso
a corroer-me por dentro
de um doce tormento
lembro-me depois de nós
de estarmos ali íntegros
nus e sós
sem mácula
os teus gritos
faziam parte da curva de água
no ruir das ondas
rastilho do esplendor
de todo o pecado
depois não ouvi mais nada
e fiquei cego
sei que não houve misericórdia
que algures aconteceu a nossa morte
e lembro-me de ter ressuscitado
ao teu lado
na coada madrugada
do céu riscado de uma barraca
no meu sonho não sei se dormias
profundamente
ou se tinhas partido
nunca mais deixei de te amar
nunca te poderia dizer
nunca te iria dizer
no medo de te perder
ao te acordar
Lisboa, 9 de Junho de 2012
Carlos Vieira
Amores de Verão VI
Tudo aquilo
foi uma tragédia
morreu no entanto
como sempre desejou
nos braços da mulher amada
é certo que se esvaia
em sangue
foi seu último
e o mais belo Verão
ela tinha os cabelos
molhados
e não chorou uma única lágrima
já não o amava
ele só depois de morto percebeu
depois que ela já lhe tinha espetado
o punhal
cirurgicamente
no coração
com toda a ternura
fulminante
despojando-o de toda a dor
último gesto de amor
letal
era intolerável para ela
que o pudesse enganar
deu uns retoques na pintura
e no cabelo
e respirou
como se saboreasse a liberdade
desde há muitos anos
e entregou-se depois
às autoridades
Lisboa, 9 de Junho de 2012
Carlos Vieira
Andor Novak “Femme Fatal”
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