sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Morte súbita com flores


 
Morreu de uma apoplexia

abraçado a um ramo de flores

numa paragem de autocarro,

o passe social tornou-se inútil.

Ainda “era novo” o pobre

ou melhor dizendo,

apesar do cabelo branco

estava bem conservado.

Foi uma “morte santa”

sozinho e sem pré-aviso

partiu para o outro mundo.

Ia visitar “a falecida”

ao cemitério dos Prazeres.

Todos morremos

a caminho do cemitério,

e ainda novos,

quase sempre

levam-nos as flores.

 

Lisboa, 31 de Agosto de 2012

Carlos Vieira

 

                                                            “Amantes com Flores” Chagall

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Sonho de lobo polar (Canis lupus arctos)


Nunca cheguei a perceber, por que razão, o lobo polar esta noite me procurou. As alterações climáticas podem explicar, a diminuição da calote polar, a globalização, a qual, invadiu o nosso quotidiano dos mais bizarros personagens e, as nossas noites, de toda a qualidade de fantasmas. Mas não é de excluir, o argumento mais comezinho do aroma mais activo de um “happy meal”, atirado no quintal do vizinho ou de um jantar, em preparação.

De qualquer forma ele ali está, nesta amena noite de Verão, a quilómetros das temperaturas abaixo de zero, farejando por debaixo da tinta preta da esferográfica, as únicas pegadas que deixa, são as letras do abecedário.

Na penumbra onde se encontra, olha numa serena curiosidade, ora para a espantada luz branca do candeeiro, ora para as imagens animadas de um programa de televisão reflectida numa janela, eu espero para ver, quem é que dá o passo seguinte.

Por momentos, achei que era uma alucinação, pois as pessoas passavam no passeio e nem sequer paravam, depois percebi que as pessoas dos subúrbios e das cidades, não se metem na vida dos outros, tem muitos outros problemas e mais motivos de interesse que um lobo polar, perdido da alcateia ou aparentemente marginalizado, sendo verdade que cada pessoa alimenta um ou mais animais exóticos na banalidade da sua vida.

Percebendo que dos inúmeros sinais da noite, apenas a minha silhueta reagia à sua presença, dirigiu-se ainda que desconfiado, para junto do jardim da minha casa e uivou de uma forma que me era familiar, dir-vos-ei que daquela insólita serenata, deduzi que a fome nos transforma humanos em animais e vice-versa, mas que também a abundância pode ser muito empobrecedora na interpretação dos sinais.

Daí a pouco, o pobre bicho arranhava a porta das traseiras da minha casa e gania implorando de uma forma que me humedeceu o coração, um pouco temeroso decidi-me recolher e alimentar o solitário lobo polar, um pouco negligente confesso, em relação ao valor científico da ameaça que representava para a espécie humana e reduzindo a uma interpretação simplista, o facto, da minha pessoa poder pertencer ou não à dieta do animal.

Abri a porta e foi então que a minha gata persa branca apareceu, surpreendentemente, regressada da minha adolescência e deixou ali a os meus pés, um pássaro que tinha caçado, nem sombra de lobo polar, no final ao abrirmos porta da nossa casa, nunca sabemos o que podemos libertar ou quem convidamos a entrar.

 

Lisboa, 23 de Agosto de 2012

Carlos Vieira

 

                                                             “white and white” by RoxiYuki

A educação pública

“A educação pública nunca resolve o difícil problema do desenvolvimento simultâneo
do corpo e da inteligência”
Honoré de Balzac

Poema para mulher com o deserto ao fundo


 

A tua silhueta

se desvanece

te devolve

ao inferno

do nada

nas dunas

de olvido

te deserda

de ternura

e de visão.

 

Tu és a filha pródiga,

e ninguém

recebe de volta:

a mulher

que cega ficou

na tempestade

de areia,

nem a mulher perdida

que traz

o espelho

onde nos voltamos

a encontrar.

 

Te fulminam

te abandonam

não se condoem

sobra-lhe

no coração

a cimitarra

da guerrilha

e da ingratidão

perante

o teu desvelo

de figos

e de mel.

 

Nele

só há lugar

para o golpe

de misericórdia

está extinta

a chama do saber

e cerce o gume

das trevas

degolou

a rebelião

do amor.

 

Querem-te assim

pássaro triste

sede do deserto

lágrimas de bruma

e alma penada

na orla da floresta

depois vai aparecer

na pele do príncipe

que te quer salvar

depois que te quis

perder.

 

O singelo amparo

das tuas mãos

em concha

o acolhe,

teus olhos

de tâmara

ocultos

na vegetação

do oásis

o envolvem.

 

Tu eras a pérola triste

no vazio

do seu coração

no cárcere

do seu corpo

ali emboscados

reside a palavra

pedra

o sangue fresco

assassino

o gesto

e no véu

rasgado

floresces

o relâmpago

do teu vulto

onde evola

o perfume

épico

da tua solidão.

 

Lisboa 23 de Agosto de 2012

Carlos Vieira

                                           "One eyeland desert woman” de Christopher Wilson

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Um lugar à sombra



Ele estava preso
ao grilhão do amor
que não se esquece
na suave memória
um ardor infinito
que dilacera
e em nós vive abraçado
esse anel de calor
que envolve
a tua espera
em eterna sombra
círculo de frio
luar que impede
de reinventar
um outro sol
noutro lugar
uma outra lua
relógio ferido
dor agridoce
mártir do tempo

Lisboa, 23 de Agosto de 2012
Carlos Vieira


                                                     “Live by the sun, love by the moon”


                                                       
                                                                  "Tree tattoo" Maluna
 
                                                        
 
 

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Um grão de pó

As chamas eternas
da solidão
te condenaram
te reduziram ao pó
atirado ao mar bravio
para que fosses
renovada inocência
que a brisa esculpiu
na areia
que pisas na praia
esse sempre renovado
caminho do mar
e do futuro
vais devagar
pelas nuvens
de mão estendida
cheia de tudo e de nada
a plácida essência
do teu corpo audaz
e vertical
que voa pelo espaço
sideral
se desfaz
numa curva de sal e espuma
entre os seus dedos
há uma semente
que se esgueira
e de onde se liberta
a fragrância
de um novo tempo
essa corrente
que te arrasta pelo céu
errando
à mercê dos sonhos

Lisboa, 23 de Agosto de 2012
Carlos Vieira
 

 Kepler 16-B (Planeta com dois sóis)

“ Dada a relação do planeta com as suas estrelas, Doyle e a sua equipa também levantaram a hipótese que o planeta tenha se formado no próprio disco de pó e gás que originou ambos os sóis.”Ver mais

Desamor pela “vida”



É cínica e milimétrica a estultícia
a estratégia da aranha
o ácido que corrói a razão
tecendo curvas de nível
vítima de injustiça destila
veneno de cinza e solidão
e faz contas nas margens
da vida a mulher que dizem proscrita.

Não a vergam de fome ou de vergonha
da soez difamação ou do jugo
do muro das lamentações
olha em desafio o verdugo
rasga o pacto e na memória
da pele adormecida de luz
suporta o motim da ousadia
ainda que tal a possa levar de novo à cruz.

Crescem lancinantes por dentro de si
todos os espinhos e a revolta
o apelo mágico do desconhecido
os cantos de sereia do indulto
nem os toques suaves de reconquista
no território do cetim proibido
nada a vai desviar e fará que desista
da pura sumptuosidade da alma em nu absoluto.

Lisboa, 23 de Agosto de 2012
Carlos Vieira


                                                         “Awakening” Simona Mereu

sábado, 25 de agosto de 2012

Amor e morte


 

Não tolera

a leviandade

a perfídia

ou a armadilha

do teu corpo disponível

pouco importa

a labareda e os caracóis

dos teus cabelos

a hora é a sombra

de um tigre

que adormece

é sua a garra

na tua respiração

suspensa

a noite

uma romã

que te devora

 

Lisboa, 23 de Agosto de 2012

Carlos Vieira

“Dream Caused by the Flight of a Bee around a Pomegranate, One Second before Awakening”

Salvador Dali

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Nasceu para ser selvagem



Sabe das pistas da selva
pela tua volubilidade animal
pela insolência das palavras
que proferiste
pelo teu gesto obsceno
no estalido das folhas secas
sob os teus pés
sabe do perigo que corres
na destemida fuga
por tudo isso
afasta-se de ti
embriagado da liberdade
do puro reflexo
das gotículas de orvalho
e por puro instinto
ama agora ferozmente
a natureza
a que pertences.

Lisboa, 23 de Agosto de 2012
Carlos Vieira

                                                            “Woman” By Kubicki

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Poema para um amor impossível


Nunca te perdoará

nem desiste

porque só assim

poderás sobreviver

e só dessa forma

te resiste

 

Lisboa, 23 de Agosto de 2012

Carlos Vieira


                                           “Illusion” from Impossible Love – Dorina Costras

Memória Astral


Lembra-se
que cada beijo e cada carícia
era um pensamento franco
teu rosto ao espelho
era uma estrela independente
acesa no fogo roubado
aos deuses da Terra
que se dispunham
subtilmente
à tua volta
agora és apenas
poeira sideral
dessa constelação
e aos deuses restam
as tuas cinzas.
Lisboa, 23 de Agosto de 2012
Carlos Vieira
 
 
 
                                          De Yayoi Kusma

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Diagnóstico: fractura do fémur




Suas mãos frágeis

são o último esplendor do verão

pousadas nas minhas

pequenos pardais delicados

sem ritmo

desafinados

ou quedam-se na cansada

ternura dos jogos de luz

que se lhe escapa entre dedos

e a fractura.



Seus olhos tristes

a desaprender a vida

pássaros mínimos

e sempre tão brilhantes

que foram álacres

e agora tão mais ávidos

da fractura  

dos ramos e das flores

e da fruta madura



Tua boca de ave

tão pequena

tão poupada de todos os beijos

tão sofrida

das intempéries dos grandes voos

e de todas as mortes

tão só das poucas palavras

de nomear

as dádivas luminosas

que irrompiam das suas mãos

curando tantas dores

e tantas fracturas

o mesmo milagre

do pão e das rosas





Na geografia do teu rosto

aqui tão perto do meu

aqui estás neste ângulo

de há tantos anos esquecido

exactamente

180º à minha frente

enquanto pela primeira vez

te dou desajeitadamente

uma colher de sopa

e nela avalio

o gesso das fracturas

de todas as mães.



Fico à tua espera

daquele teu golpe de asa

em forma de sorriso

durante todo o tempo da visita  

pela primeira vez ali estás

sortilégio de carne e osso

entre lençóis brancos

minha flor renascida

minha mãe mais dura

heróica e triste

que a mais esta fractura

da vida resiste

no meio do meu poema

levanta-se e anda.





Leiria, 18 de Agosto de 2012

Carlos Vieira



                                                                   Chagall – “Flight”


sábado, 18 de agosto de 2012

universalidade





pronto

aqui me encontro

envolto num turbilhão

de fumo branco

um pé firme na Terra

uma mão cheia de nada

ausculto o eco das letras

nas palavras ditas

sondo-lhe o encanto

na voz rouca do vulcão

no primeiro voo da escrita

quando a sós

na vertigem do céu

de um qualquer poema

ousamos o mistério e o fogo

e se desatam nós de espanto

frente à imponência do caos

que moldamos no barro

helicoidal e paciente

na curva da idade

que nos permite distinguir

o fulgor e a errância

de cada ponto

na miríade de pó suspenso

a tristeza vencida

dos rostos cintilantes de gente

que em cada estrela distante

são a semente prenhe

dos sonhos

na sua elipse de regresso

à humanidade



Porto de Mós, 18 de Agosto de 2012

Carlos Vieira

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Chuva de Verão

Lá fora
chove no jardim
em agosto
dentro de mim
solta-se
o teu véu de seda
de ave táctil
e incansável imaginação
tecida
em puro acaso
notável descoberta
seminua
eras tão fresca e frágil
fora de mim
brisa do murmúrio
de um tempo diáfano
por ti caíam as bátegas
leves lâminas
nas asas do desânimo
no fim da tarde
o veneno dos segredos
por revelar
para surpresa da água
reconheço-te imaculado
corpo que foste antes do pó
e de refletida mágoa
serás sempre
quando fores fora de mim
 erguida estátua
onde já só irá correr
a memória de um amor
censurado
ali exatamente no coração
do lago
morto de sede e dos olhares
de pedra
assim permaneces
incólume e inexpugnável
meu bravo rio interior
do início da viagem
sem regresso
do medo até  à luz
sobre a suave alegria corroída
da acidez  do teu silêncio
e da chuva
áspera é a minha mão
que te percorre
o rosto
temperada pelo bálsamo
das tuas lágrimas  
apenas saberás de mim
que é Agosto
e que chove de novo lá fora
no jardim
agora que és esta imagem
que ficou de ti
já sinto de novo
a passagem do tempo


Lisboa, 16 de Agosto de 2012
Carlos Vieira




quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Mutações


Num corredor vi uma seta que indicava uma direcção e pensei que aquele símbolo inofensivo fora outrora uma coisa de ferro, um projéctil inevitável e mortal, que entrou na carne dos homens e dos leões e enevoou o Sol nas Termópilas e deu a Harald Sigurdarson, para sempre, seis pés de terra inglesa.
Dias depois, alguém me mostrou uma fotografia de um cavaleiro magiar; uma corda com várias voltas rodeava o peito da sua montada. Soube que a corda, que antes andara pelo ar e submetera os touros na pastagem, não era mais que uma gala insolente do arreio dos domingos.
No cemitério do Oeste vi uma cruz rúnica, lavrada em mármore vermelho; os braços eram curvos e afastados e rodeava-os um círculo. Essa cruz apertada e limitava a outra, de braços livres, que por sua vez figura o patíbulo em que um deus padeceu, a «máquina vil» insultada por Luciano de Samosata.
Cruz, corda e flecha, velhos utensílios do homem, hoje rebaixados ou elevados a símbolos; não sei por que maravilham, quando não há na terra uma só coisa que o esquecimento não apague ou que a memória não altere e quando ninguém sabe em que imagens o traduzirá o porvir.


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen

Sobre a lucidez

Tendo em vista com que lucidez e coerência lógica certos loucos justificam , a si próprios e aos outros, as suas ideias delirantes, perdi para sempre a segura certeza da lucidez da minha lucidez"

Livro do Desassossego - Fernando Pessoa

terça-feira, 14 de agosto de 2012

reencontro



eu estou de pé

depois da urze dourada

o teu corpo macio

está de bruços

é uma romã inquieta

pendurada na penumbra

nós estamos nus

como os astros inacessíveis

e a beleza dos números

tu és a gazela desconfiada

imediatamente antes do prado

que não resiste à tentação

de poder regressar  

trazes a inesquecível ironia

do teu sorriso tangente

a esculpir

os teus lábios perfeitos

fulgindo no olhar

que já foi triste

o teu desejo ouço-o

arqueando as tuas vértebras

no frémito do vento

és neste odor que dança

e que libertas

que me prendes ao sul

dos teus abraços

gume de palavra

nunca esquecida

na minha boca ferida

desliza a enrolar-se

nos pensamentos

que me traem

e a que me entrego

que serão afinal

na foice do desespero

a tua linha de fuga





Lisboa, 14 de Agosto de 2012

Carlos Vieira


                                                          Pintura de Boris Malafosse

Bosques De Mi Mente - Nostalgia

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Crime sem castigo






na geografia de cristal

há a subtil intercepção

de um tempo sem razão

há a sombra do punhal

na vertigem silenciosa

no itinerário das árvores

é pura a voz  estrangulada

e na sinfonia dos pássaros

não escorrem as lágrimas

que se sabem mais íntimas

de um olhar perturbado

ou próximas das estrelas

pelo vidro embaciado

da solidão das janelas

a testemunha protegida

observa o lento escorrer

do sangue  e apodrecer

do cadáver e da sua vida

apaga o rosto do assassino

a astúcia montada da teia

no peito tudo fica gravado

num depoimento cristalino

pelo periscópio da lua cheia



Lisboa, 13 de Agosto de 2012

Carlos Vieira

                                                       “Witness to Murder”  Bem Walker




sábado, 11 de agosto de 2012

Luz Casal - Un año de amor -

Este silêncio de te amar

No princípio eras o verbo

o teu sorriso
que antecedia o entardecer
o teu corpo
um barco que amanhecia
e se te despisse
podias ser um esplendor de fogo
uma fluência de tâmaras
e de especiarias.
Dedilhavas
acordes de piano forte
e eu fui sempre um búzio irreal
que no meio do areal alucinava
por te acompanhar
a partir da fragrância da tua roupa
tecia a espuma
que te fazia renascer
e  exalavas o eco da maresia
na tua voz bramindo
sob as ondas veementes
da carne nas guinadas
dos desejos mais inconfessáveis
implorando clarividências
incitando animais nocturnos
e mistérios e sinuosas grutas de coral
onde exultava o aroma
da tua púbis que me consumia
e que eu sabia de cor
sobrevoando numa sofreguidão
de estrelas cadentes
pairando na paciência sem limites
das aves de rapina.
Foi depois ou foi antes
o deflagrar das palavras
ininteligíveis e entrecortadas
a inclemência dos teus punhos
e a lâmina das tuas unhas
desenhando-me na pele
intermitências de pássaros
a têmpera e os unguentos
o suor e a raiva e o sangue vivo
e as tempestades.
Conjugando todos os tempos
e estações
inventámos por inteiro
esses momentos incontinentes
dos poemas intrépidos.
O teu olhar humedecido
revejo-o único e eterno
e irrepetível
na ancestral rota da seda
a perder de vista
a caminho do espanto.
Toda a perigosa distância
e o desconhecido
se mediam a partir de ti
meu espartilho
e minha solidão libertadora
que tendo sido poderá voltar ser
na eloquência dos teus gemidos
agora em forma de silêncio
uma serena melancolia
infinitamente presente.

Lisboa, 11 de Agosto de 2012
Carlos Vieira