sábado, 31 de outubro de 2015

Mais um poema para um sem abrigo numa noite de Outono



escuta
nos paralelepípedos do granito molhado
pressurosos passos
a queda de um corpo

espreita
o luar que insinua um prazer
quase desvendado a arfar na blusa branca
um botão que salta

sussurra
uma porta entreaberta
e um rosto febril por detrás da cortina
esgueira-se um gato

sorria
no seu circunlóquio
o velho alfarrabista a desfolhar o ulmeiro
pousa-lhe um pássaro no olhar

olvida
no gume do silêncio
a ferrugem que é estertor do tempo
sangue vivo na lâmina

chove
só as bátegas de água na casa
primeiro andamento de sonata de Outono
memória dos seus dedos

corre
na fonte uma água antiga
na sua fronte corre água da chuva
insaciável

cala
a dor e a morte que se acentua
e o Inverno que se avizinha e a perpetua
sem saber escolher as palavras

observa
as luzes dos faróis a ofuscarem
a supremacia da noite e o vagar dos animais
tem as calças rotas e o coração suspenso

adormece
nada está conforme
amanhã será despejado e dorme a sono solto
sobrevive indiferente à indiferença.

Lisboa, 31 de Outubro de 2015
Carlos Vieira




Nocturno nas margens do Tamisa


I
Observo-te
inquieta e tímida
na penumbra
no biombo
de um verso
da hora da partida
esta noite
vai perder-se
o silêncio
perverso
da tua mão
a pousar
subtil no corrimão
do undergound
em Victoria Station.
II
Apenas
candeeiros
periclitantes
insalubres
e retardatários
regressam
da tua ausência
que se traduz
nas águas
agitadas
do Tamisa
atravessas
na tua gabardine
creme
o caos e a a zona
dos guindastes
consome-te
o desejo
a mim o medo.
III
Devora-te
a solidão crua
da luz
o naufrágio
de transparentes
mistérios
e ângulos agudos
de cristal
devora-te
o precário
o "open space"
a cidade moderna
que se esgota
em espanto
escuto a tua voz
moderada
mansa
e sigo-te
na elipse
sumptuosa
do teu adeus.
IV
Convive
o teu perfume
com torres
e contos
ancestrais
efervescentes
enquanto ali
no leito do rio
o murmúrio
que adivinho
na corrente
do teu corpo
sedento
me aniquila.
V
O que em ti
me seduz
é a elegância
do quase nada
o desespero
de um amor
que por vezes
não corresponde
que não se adapta
que não se adota
o que resta
de ironia
e de um acre
da tristeza
submersa
de um fim
de festa.
VI
Espero por ti
transfigurado
por um dia
no cais
sobre tijolo
da perda
e do humor
britânico
entre especiarias
Índias
reflexos da prata
e do rumor
dos peixes
fora de água
como nós.
VII
Na recepção
vivemos
cumprimentos
molhados
da barbatana
de gravata
e tailleur
e falta de ar
do protocolo
a ponte ávida
aguarda
lá fora
como eu
a tua passagem
por vezes
melancólica
outras
gloriosa.
VIII
Isolas-te
na torre
eu fico
amarrado
à ditadura
do tempo
sempre
cedo perante
a vertigem
do teu semblante
espero-te a cintilar
mesmo
se o nevoeiro
de um qualquer
Dickens
recalcitrante
me negar
de novo
a luz húmida
do teu olhar.
IX
Espero-te
depois de Trafalgar
da vigilância
desajeitada
de um esquilo
e do súbito
espreguiçar
das asas
de um pato real
junto
ao lago do parque
tu receosa
vives camuflada
no musgo
das sombras
nas margens
de ternura
que se mistura
ao luar
temperando
o punhal
da impossibilidade
de em ti germinar
nem que fosse
por uma vez
violento
e impenitente
do amor
o gesto
libertador.
Londres, 28 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

Logro


logro
(é) o oscular sôfrego
do lóbulo
logro
(é) o beijo a resvalar
sobre o sobrolho
logro
(são) as tréguas
dos teus lábios
logro
(é) a boca de veludo
polpa de nêspera
logro
(é) da nuca à omoplata
meu trapézio
logro
(é) desengano
ou o fim do mistério
logro
(é) a tua lágrima
preliminar da chuva
logro
(é) o sorriso insólito
um desconcerto
logro
(é) carícia em falso
na curva da face ausente
logro
(é) o teu murmúrio
ser apenas a brisa da manhã
logro
(é) esta singela armadilha
um suave veneno
logro
(são) os fragmentos de silêncio
na memória da pele
Lisboa, 26 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

Nova Iorque fora de horas


Uma visita relâmpago
à cidade que não dorme
que se conjuga
no espaço e no tempo
com o seu ego sonâmbulo
e o seu corpo noctívago
ali ao lado
conjugam-se no beco
mal iluminado
a que chegou
notas cavernosas
de um contrabaixo
a voz límpida
de uma cantora de jazz
que lhe faltava
ainda tão jovem
e tão desconhecida
a cidade
que não dorme
dos arranha céus
estremece
de tanto atrevimento
chamava-se Pink Lady
fruta proibida
talvez
apanhada do chão
e agora
estrela que cintila
a grande altura
numa insensatez
de néon
num desdém altivo
de um blues
que lhe lembra o fado
de quem impura
se entrega
de corpo e alma e álcool
ignorando
essa velha história
da maçã e do pecado.
Nova Iorque, 16 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

Visão desesperada


Hoje olha-me bem
no fundo do meu olhar
só tu podes descobrir
tu podes ter sido
uma miragem
um de nós pode
não existir.
Halifax, 13 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

De coração ao alto, sobrevoando a Terra Nova


Dormito
o avião “turbula"
uma criança traquina
um velhote
aqui ao meu lado
ressona
um casal atrás de mim
ronrona
a interjeição ríspida
do virar de pagina
do restolhar da folha
perante o leitor
embevecido
tira-me o sono
aquela passagem
a hospedeira
passarela
com dois três recados
guardados
aninhados debaixo
dos seus caracóis
louros falsos
depois de um inexplicável
frenesim
de nuvens
o comandante
anuncia-nos
em voz baixa
a grande altitude
a nossos pés
a certeza
do oceano
inaudível
uma vizinha
do lugar
da fila do meio
no seu olhar lúbrico
como que acena
ao seu lado
sem se dar conta
um homem de meia idade
no seu ângulo morto
que boceja
e cofia a um bigode
fora de moda
para o hirsuto
o avião continua
sem desfalecer
com a sua respiração
pujante
por vezes
parece ter hélices
outras vezes
guelras
agora passamos
ao lado de Goose Bay
eu escrevo
na planície gelada
do écran
cercada
por fragmentos
de gestos
entre a ternura
e o ameaçador
de murmúrios
e de pensamentos
e artimanhas
de desejos
domesticados
pelo mantenha
o cinto apertado
que tremeluz
a ordem
é a que resulta
da exiguidade
do espaço
em que nos respiramos
o mesmo destino
em que decantamos
movimentos subtis
mecânicos
fugazes reflexos
de humanidade
enquanto escrevo
tiro a língua
a uma criança
que olhou para trás
enquanto
neste Boeing 777-300
fomos pensados
para olhar para a frente
entretanto
ouvi a força do vácuo
da sanita
ao abrir-se a porta
do wc ali à frente
observo agora
de um lado o Deer Lake
e do outro a Terra Nova
neste cockpit
da solidão
de um poema
onde estupidamente
me entrego
onde navego
percorro
com o olhar
por debaixo do algodão
das nuvens a imensidão
da superfície
à espera da neve
um caribu
enfrenta a tempestade
e o tempo
com a exuberância
das suas hastes
agora em cada ano
que passa
qualquer distância
atravessada
ou qualquer nada
nos deixa contente
até que uma voz
me desperta
e estremeço
“Senhor, quer café ou chá!"
podia até ser
a voz melancólica
do animal.
Halifax, 13 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

Olhar de veludo


De veludo
sem franquia
é o seu olhar
defraglando
o êxodo
dos pássaros
por dentro
da árvore
ancestral
um eco
no corpo
respira
enclausurado
onde transparece
um silêncio
iluminado
na sua pele
que a brisa
suave
de eternidade
enlouqueceu.
Lisboa, 11 de Outubro de 2015
Carlos


sábado, 3 de outubro de 2015

Breviário dos instantes


Sento-me
na madeira escura
de carvalho 
dos bancos de igreja
não vim pedir
perdão de nada
ou atrás do infinito.
Sei que encontraria
ali aquela
a luz velada
que perpassa
pelos vitrais
a discreta
réstia de um grito
da alegria.
Iria ser
banhado
pelos reflexos
imperceptíveis
na subtileza
de um óleo
de autor anónimo
o soluçar línguas
de fogo e dourado.
Vou ouvir
murmúrios
de lanternas
e confissões
o restolhar
das sandálias
no desgastado
calcário
as minhas
a aperta-me
os calos
do dedo grande.
Comungo
do eco gutural
das preces
por debaixo
da cúpula
de tanto
esquecimento
sustentada
no frio das colunas
onde se encostam
abstractos vultos
em recolhimento.
Regresso
à intermitência
das velas
que lá vão consumindo
pedidos
desesperados
e gratidões
absurdas.
Sucendem-se
aos olhares
embargados
o indagar
de respostas
em Cristos
crucificados
outros ajoelham-se
compungidos
debruçados
sobre si
próprios.
Lisboa, 2 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

A lua saíu para a noite

a lua saíu para a noite
e surpreendeu a coruja
a roubar azeite no lagar
isso foi uma clarividência
Lisboa, 3 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

Écloga do vale do Lena


Eu tinha cinco anos
eram oito da manhã
mais coisa 
menos coisa
do alto da encosta
ao cimo do Outono
observava o vale
estremunhado
havia um castelo
à esquerda
e Rodrigues Lobo
com seus salgueiros
e rouxinóis
um incansável rio
a serpentear
estendiam-se
a perder de vista
na outra margem
a fazer a grande curva
de nuvens rodeado
um pequeno monte
nessa altura
tive um amigo
o único milhafre
da minha infância
esperava que chegasse
para levantar voo
do alto da faia
depois sobrevoava
de asas abertas
o meu mundo
que era do tamanho
dos sonhos.
Lisboa, 3 de Setembro de 2015
Carlos Vieira


Imagem de autor desconhecido, retirada do Blog "O Prazer da BTT" perto da nascente do Rio Lena
que infelizmente como eu, corria muito mais, na minha infância!

Voltar ao amor sobre as dunas...

voltar ao amor sobre as dunas 
devorar das camarinhas
pérolas brancas testemunhas

Lisboa, 3 de Outubro de 2015
Carlos Vieira


O cheiro limpo da resina...

Eo cheiro limpo da resina
no pinhal e a memória única
do sabor das púticas*
Lisboa, 3 de Outubro de 2015
Carlos Vieira


*Tubérculos de magnifíco sabor que apareciam de forma pouco abundante nos pinhais da zona oeste, mais conhecidos por pútegas e búxigas;

Os arbustos do crepúsculo...

os arbustos do crepúsculo
estremecem de permeio refulge
a cauda de fogo da raposa

Lisboa, 3 de Outubro de 2015
Carlos Vieira



DECADÊNCIA DAS PALAVRAS

“Nem com seu lápis nem com seu bastão nem
Nem luzes luzes quero dizer
Nunca coisa alguma
Mais nada
Nunca mais”.
Samuel Beckett


Emboscado
no desencanto
e na culpa
do desencontro
espero-lhe
as palavras.
Espero as palavras
as certas
as setas
do sacrifício
as da dor
pacientes
com clarividência
a palavra chave
que nos salva.
As palavras
na sua inteira exactidão
impertinente
bichos desconfiados
furtivos
sôfregas de ternura
num amedrontamento
ancestral.
As palavras
mo timbre
daquela voz
variações
de breves reflexos
avistamentos
despojadas
amparadas.
As palavras
destroços
na corrente
de um caderno de apontamentos
de cor
branco sujo
que escorreram leitosas
de uma qualquer lua
lacrimejante.
Palavras
a que retiram a substância
de permeio
a consistência
dos homens
que dão o dito
por não dito
e dão significado
ao tempo.
Palavras
bofetadas sem mão
de luva branca
ganindo
aos astros que do alto
nos cercam e nos espiam
neste imenso deserto
campo de concentração.
Palavras
cobertor
na noite que arrefece
o nosso sangue frio
e o nosso sangue quente.
faltam-nos
as palavras
o discurso
o directo
ko.
Aos poucos também
nós e a lua e as palavras
desistimos
somos ocupados
pelo vazio
exaustos
deitamos-nos
na mesma cama
que fizemos
e naquela outra
que nos foram fazendo.
Palavras
que se aconchegam
na repugnante
complacência
dos que afirmavam
a pés juntos
que estavam connosco
juras de fidelidade
e nesse concubinato
concupiscente
somos em silêncio
cúmplices
da voraz ditadura
da imagem e do ruído.
Assistimos
calados
ao declínio
do valor da palavra
das inflexões e das pausas
da sugestão
do que fica por dizer
das conversas
que são como as cerejas
das histórias
onde nascem histórias
conformados
ao peço palavra
e ao tenho dito.
Olho porém
para as folhas
e para as aves
que se agitam
no cume das faias
como se fossem
mãos e gritos
que sobem a pulso
as árvores da vida.
Faltam-me
as palavras
para descrever
aquelas da coragem
e da esperança
que sobem
aqueles troncos
prateados
então calo-me
e curvo-me
por esta ordem
está tudo dito.
Lisboa. 30 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

Outra história trágico maritíma


Na sua busca desesperada
por uma qualquer Atlântida
encontraram-na
no Mar Mediterrâneo
improváveis marinheiros
sem cantos de sereia
que de ventos
conheciam o siroco
os do corredor de Wakhan
e do Cabo das Agulhas
fustigando
os panos das tendas
fizeram-de ao mar
e de ondas conheciam
as dunas de areia
do sal as lágrimas do medo
e astrolábios de fome
algures a umas centenas
de metros de profundidade
no rumo para Lampedusa
podemos reencontrar
a cidade dos anjos
da ingenuidade
uma multidão
de corpos dos náufragos
sírios afegãos somalis
habitam outros abismos
esta Atlântida necrópole
de um presente
redescoberto
nos abraços de afogados
cadáveres âncoras
que nos prendem
a uma nau sem rumo
à obscura
superficialidade
da cidade sonhada
para nós mesmo.
Lisboa, 27 de Setembro de 2015
Carlos Vieira


Foto de autor desconhecido

O pano da sua tenda...

O pano da sua tenda
côa o luar
e a primeira luz da madrugada
tão fino é o pano
e são suaves as arestas
que convocam a liberdade
dos que fogem
desesperamente.

Lisboa, 26 de Setembro de 2015
Carlos Vieira



Os seus olhos de fera encurralada...

os seus olhos de fera encurralada
de atónito refugiado
marejados de rubricas e carimbos
e de arame farpado
Lisboa, 26 de Setembro de 2015
Carlos Vieira






Foto de Muhammed Muheisen

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Bailado minimal das trevas à luz


Despes 
o manto da noite 
ajaezado de estrelas
pela luz do teu corpo
encadeado
e nele aflito
me apago
a ele me entrego
despojado
ao teus pés
depois renasço
e regresso à vida
acredito
no rito do rio
em ânsias de foz
pelo tactear
dos teus dedos
e os vestígio
das unhas
pelo imaculado
marfim
dos teus dentes
que mordem
pelo arfar
reconhecido
dos teus lábios
de onde inaudito
irrompe
um insulto
de raiva e de desejo
um grito
de combate
outro de misericórdia.

Lisboa, 24 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

Exposição de Pompeia: fresco de um casal fazendo amor da Casa de Cecilio Giocondo iem Pompeii



Eutanásia ou boa morte



Regressas
ao local do crime
aos teus aposentos
á grande altura do pé direito
e à consonância
de uma tarde de Outono
à contemplação
da ausência
depois do tule
dos cortinados
onde te destruíste
de tanto amares
em silêncio
regressas
a essa obscura antecâmara
da morte
em que foste autor
inevitável
vitima colateral
de um amor maior
porque de boas intensões
está o Inferno cheio
és o principal suspeito
no mínimo por instigação
por exposição ao abandono
regressas
para teu sossego
após prescrição
ao impossível julgamento
e inútil punição
verificas o móbil
o refúgio
da sua religiosidade
não tens medo
diga-se
em abono da verdade
que também
não tens coragem
apercebes-te ainda
dos vestígios subtis
dos detalhes
que escaparam
à minúcia proficiente
do investigador
fazes a reconstituição
buscas a paz
contigo próprio
constatas
da sua impossibilidade
finges-te de morto
vives nessa calma aparente
do inconseguimento
daquele amor
regressas
a todos os casos
de estudo
 ás mortes inexplicáveis
aos crimes perfeitos
sabendo que a tua existência
será para sempre
o teu castigo
recordas
das palavras repetidas
implorando
em sofrimento
tantas vezes
aquela última visão
das mãos lívidas
da perda
da gerandeza
no piedosos momento
em que cedeste
e te abandonaste
ao gesto fatal
enquanto tresloucado
na gaiola
do teu peito
um pássaro a esvoaçar
recordas
o eco dos teus passos
apressados
que fugiam
desesperadamente
às garras
de um silêncio opaco
definitivo
sem culpa
e sem expiação.

Lisboa, 25 de Setembro de 2015
Carlos Vieira


quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Decadência e glória de uma estátua de um deus num jardim particular


Desta janela
aquela estátua
nua e de olhos lácteos
em louvor
a um deus grego
desconhecido
exposta às intempéries
são eloquentes
o verdete que a impregnou
e as brancas feridas da pedra
de alguma terrena queda
alguma negritude
desenhada
aqui ali interrompida
nas escultóricas fímbrias das vestes
e que as chuvas
não lavaram
uma única estátua
de deus grego num jardim
um hino á precariedade
à imperfeição da construção humana
uma representação monoteísta
enfim uma irrelevante
peça decorativa
que nos resgata
do céu da solidão
e que daqui se avista.
Lisboa, 24 de Setembro de 2015
Carlos Vieira


afinal o ponteiro de sombra ...

afinal o ponteiro de sombra
no relógio de sol
era o teu olhar dardejante
Lisboa, 24 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

Poema do inacessível ao tangível


Pudesse eu ter
os teus mais breves pensamentos
os mais etéreos
que as minhas mãos
incansáveis
nunca deixariam de sobrevoar
em vigília
o teu leito
e para ti iriam inventar
novos frutos
diferentes madrugadas
e a densidade do meu sangue
seria a tinta que daria ao teu corpo
novas sinfonias
feitas com a inevitabilidade dos silêncios
em que me aguardou o teu olhar
em que te demoras
a escutar-me
nessa tua ternura eterna
de palavra sopesada.
Lisboa, 23 de Setembro de 2015
Carlos Vieira


Pintura de Glen Craig

O burocrata...

o burocrata
na sua imensa sagacidade
e escravatura perante o detalhe
falsificou a tua verdadeira identidade
e não compreendeu 
que o teu perfume na tarde
era mais que uma página virada
no seu gesto inexpressivo
de manga de alpaca
Lisboa, 22 de Setembro de 2015
Carlos Vieira


Pintura de Salvador Dali

sábado, 19 de setembro de 2015

Um bicho que conta


sobre a superfície
espelhada em mosaico da cozinha
frágil, um bicho de conta sobre si próprio
tolhido de um medo absurdo
para nós, reféns do prosaico
e de fantasias de opala
Lisboa, 19 de Setembro de 2015
Carlos Vieira


Aves e frutos e coicidências


Não sei o que faz o melro
no castanheiro
no meio de Setembro
mas adivinho-lhe
o timbre cristalino
do seu canto
amplificado na filigrana
das folhas
que caiem no fim da tarde
e que existe
alguma explicação
para que as castanhas
se tornem mais suculentas
e doces
no próximo Inverno.
Lisboa, 18 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

Duas rolas bravas...

Duas rolas bravas
duas pequenas nuvens
de céu enlameado
pousaram num pinheiro manso.
Lisboa, 18 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

Por uma lágrima tua



Lágrima
súbito rumor
que bebo no bisel
dos teus lábios
e apaga o canto
na garganta
e liberta
línguas de fogo
e desfaz
os nós cegos
em que por tanto
querer viver
em libertação
todos dias
de exaustão
morremos.

Lisboa, 18 de Setembro de 2015
Carlos Vieira


Pintura de autor desconhecido

Poema para um guarda num perdido posto de fronteira


Hoje fui mais este dia sem pássaros
sem árvores
sua frescura de clorofila de floresta
sem a poalha dourada
suspensa
nas clareiras
cercadas dos olhares em pânico
dos antílopes
e da impaciência das feras
hoje não houve insectos
insaciáveis
na sua ânsia de rendilhar a realidade
e as tardes do fim do Verão
nem a menor sombra de pecado cintilava
a contaminar
da inapelável solidão a pureza do tempo
não houve os peixes abandonados na água salobra
dos lagos
sucumbindo num vermelho desmaiado
nem das sua guelras gorgolejam
turvos reflexos de prata
e desolação
as flores na sua frívola petulância
não desabrocharam bocejos de tédio e mofo
em jarras baratas de cerâmica empoeirada
por debaixo da sombra periclitante
das teias
que coavam moscas
e a luz mortiça do crepúsculos
no refúgio das janelas
que depois adornava no louceiro
os copos de cristal
onde se pode vislumbrar
tempos longínquos de vinho nobres
e de festejos
hoje nem o ranger do soalho
o desperta
o estremece
nem o talho doce da mobília
nem o ocre silêncio dos baixos relevos do estuque
hoje quando sintonizava
em FM
a sua estação de rádio
veio-lhe à memória
histórias antigas de gaz pimenta e de crianças separadas
todo o doméstico encantamento
do seu pequeno mundo desabou
e a raiva paralisou-lhe o medo e as lágrimas
como é possível tantos quilómetros de esperança
e portais fechados a tanto sofrimento
e as crianças senhor!
sem visto
nem passaporte.

Lisboa, 17 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

Foto de autor desconhecido

domingo, 13 de setembro de 2015

que um raio fulmine...

que um raio fulmine
o poema
que é como gaiola de Faraday
onde a palavra mais límpida
se turva
e o canto mais puro
dentro de si
anoitece

Lisboa, 13 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

Poema para uma deusa adolescente que fugiu do 1.° andar da Praça Navona





Este é mais um texto que era para ser mais um poema menor, como são todos muitos que se alimentam de um amor maior pelos deserdados nas praças desta vida.
Conta mais uma história de uma princesa, da sua clausura numa torre de marfim, não fala dos seus algozes e de si mesma ou da sua tristeza infinita, nem aborda ao de leve a sua grande loucura, o seu amor desesperado, impossível, que foi o seu veneno e também e sua cura.
Não é esquecido o reino ao abandono, o seu fado, esse canto que se confunde com choro abafado e probreza envergonhada, onde com pouco esforço se escuta a percussão de grilhetas e nos tambores feitos de pele dos escravos as vergastadas do silêncio.
Na fonte da Praça sacia-se o mármore dos deuses e um menino louro com síndroma de Down toca realejo.
Escrevo um poema de uma princesa anoréctica, triste quase sempre, que numa noite de insónia foge pelo lençol das entrelaçadas palavras em surdina, para os braços de um sonho, braços que a libertaram da cruz dos garrotes num país esgotado, mártir que resiste, estranhamente ágil, salta para a garupa da incoerência, do corcel de ébano.
Joana d'Arc tatuada com coroa de piercings e de alma devorada pelo fogo, a sua cabeleira vermelha de bruxa ao vento desgrenhada, ergue uma espada de crua luz fluorescente, que roubou do guarda-roupa de um figurante do Star Wars.
No meio desse nevoeiro artificial, truncada descoberta de um novo tempo, limpo, sem compromisso, deusa deserdada, refém desse amor maior que nunca se entrega e que só com a sua morte a liberta, do Palazzo do 1.° andar da Praça Navona.
Este é um poema de uma princesa romana sem história.
Roma, 11 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

sábado, 5 de setembro de 2015

Madrigal aos tessalonissenses



Deixou-te na clausura
da tua solitária torre branca
a vigiar a terra macedónia
a intrépida aventura
do cavalo baio otomano
a galope na aura
e na planície etérea
o trirreme romano
sulcando as águas tépidas da baía
rasgam o sal da tua pele
nas montanhas a espreitar
os bonés companheiros
da Resistência
do Terceiro Reich a águia negra
sabem os itinerários
da esperança e da ignomínia
rainha helénica
frescor elegante de ânfora
inquieta repousas  
na penumbra dos teus aposentos
embevecida Penélope
bálsamo mediterrânico
de olhar húmido
ausente
ele permanece atónito
em distante viagem
cercado da sua tristeza vaga
refém da conquista e do canto de sereia
de uma saga envolta
na bruma ocidental
escravo da infinita busca
da verdade e de qualquer mito
de qualquer Atlântida
ou Europa solidária
de acrónico escrito
esquecido
que a verdade das coisas
do dracma e do euro
de tudo aquilo que se ganha
ou que se perde
e que se troca
é muito menos
que a eternidade
do beijo que se acende
e que morre
e que te morde
no sequiosa torre de coral
da tua boca.

Salónica, 4 de Outubro de 2015
Carlos Vieira



domingo, 30 de agosto de 2015

Poema para um corpo vago e para uma casa vazia




Tão rudimentar
o que se constrói
sem ti
e tão desprovido
e qual o sentido?
sem ti.
sem dúvida
tudo é mais enxuto
sem rodeios
sem floreados
entre o inconseguimento
o inconsequente
e o frugal
sem ti.
apresentaste-te
em bruto
tu e a tua condição
sem títulos
sem ritual
sem dote.
inóspito
o rumo escolhido
e o que te escolheram
sem ti.
despes as tuas vestes
e percorres
os aposentos
e atravessas uma lâmina
de luz seminal
e demoras a tua atenção
num longínquo ruído
mecânico
minimal.
onde está assombração
do teu último movimento.
a indiferença jaz
espelhada
no rosto contido
a barba é de três dias
sem ti.
escapou-se-te
um murmúrio.
um gesto tímido ou de descuido
percorre-te um arrepio
pela coluna vertical
da memória.
um curto-circuito
no tédio rural.
ao longe observas
a cabisbaixa
paciência bovina de tarde animal
inquieto
é também
um sobrevoo de insecto.
o princípio de um texto
um pensamento
que ondula
na página do caderno
pontuado
pelos pingos que caiem da torneira
do eterno
no lava louça da cozinha
inoxidável.
a imagem das suas mãos molhadas
no tempo da palha de aço.
andas silenciosamente
em círculos
é este o estranho perfume da casa
da sua ausência
se retirarmos o cesto dos limões
que se torna também
no avesso
da sua impossibilidade
de esquecimento
e se um dia fosse real a serenidade
ela não seria nem por fugazes momentos
completamente sua!

Lisboa, 30 de Agosto de 2015
Carlos Vieira


Pintura “Absence and presence” de Mark Acetelli

Poema do amor maldito


Maldito
serei antes do veredito
depois de dar o dito por não dito
eternamente proscrito
por dizer o que devia ser dito
porque o silêncio é mais que um rito
não ficar incógnito
inaudito
por que busco ou não o infinito
por hipotecar esse amor tão bonito
e tão autêntico
à liberdade esse mito
em que acredito
em que sucumbo e me agito
e me contradito
maldito
mil vezes malditos
os poemas que regurgito
da tua ausência prosélitos
que sem cessar repito
meu amor aflito

grito
lancinante grito.
Lisboa,29 de Agosto de 2015
Carlos Vieira




Fotografia de Man Ray

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Noite de breu e de bruma



ali estás
a vida
no meio de um mar
que está também 
de pernas para o ar

sobre si cai
a chuva de estrelas
melancólica
anunciada
pela voz rouca
das cagarras
que sobrevoam
a distância
entre os dois castanheiros
do quintal

entretanto explode
a fragância dos aromas
encontras precário
um caminho de luz 
e mistério
que se desfaz
em amálgama de espuma
e insónia

sobre o abismo 
o esplendor da noite e do canal
atravessas a ponte
de que desconheces
o rumo marginal

o manto da maresia
cobre a urze
em filigrana de prata
de nada
e sono

os melros
de bico amarelo
debicam a névoa
e por vezes a carne rosada
a bondade
dos figos


nas tuas entranhas
o mesmo triste vulcão 
de um amor de passagem
sem nome
que te surpreendeu
na bruma
dessa nunca extinta
solidão
que aos poucos te consome


Manadas (S. Jorge), 19 de Agosto de 2015
Carlos Vieira



segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Respiro esta explosão de verdes...



Respiro
esta explosão de verdes
ponteados de rosa
dos aloendros 
e cardeais
agitando o mar ao fundo
poentes
outras flores de espuma 

na penumbra dos espinhos acerados 
reflexos de sal 
e peixes tímidos
o canto do melro
eloquente
alude ao insondável mistério
das ilhas

e nele sobrevive 
exangue
um familiar
desesperado coração 
da noite.

Manadas, S. Jorge, 3 de Agosto de 2015
Carlos Vieira

domingo, 2 de agosto de 2015

Pedra pomes



Fixo
o fogo do olhar 
na porosidade
do seu dorso erecto
entre o rumor
do banho
adivinho-lhe
o seu corpo que dança
antes da fragância 
que inibria
e o voo convexo
da sua mão fechada
na leveza 
da pedra pomes
por debaixo
da sua pele
ressona um vulcão
adormecido
que sonha 
no caos do coração
a limpidez
do futuro.

S. Jorge, 2 de Agosto de 2015
Carlos Vieira


Rasgando horizontes



Ali estás
a tua pontiaguda
verticalidade
a coberto de um véu
de névoa
e um sol
a resfolegar
pousado no cume
da solidão
que escorre
pelos flancos
da tristeza
desce
um manto
de bruma
que o deixa
seminu
entregue
a si mesmo
na horizontal
o mau tempo
e o canal
eu e tu
aqui estamos
de novo
frente a frente
equidistantes
companheiros
em separadas ilhas
de alegria contida
com tantas viagens
por contar
e tanta despedida
e silêncios cúmplices
de permeio
nas entranhas
um grito
prestes a irromper
um vulcão interior
voz de negada misericórdia
a que se junta
à daqueles
que escalam
o alto pico da justiça
por fazer.

S. Jorge, 2 de Agosto de 2015

Carlos Vieira

terça-feira, 28 de julho de 2015

Subo...

subo
a escada em espiral
da noite
e da torre da madrugada
lanço as sementes
de um sonho
com raízes nas trevas
e os gestos precários 
dos afectos
da luz

Lisboa, 28 de Julho de 2015

Carlos Vieira

Uma pedrada no charco

Uma pedrada no charco
o teu rosto na água estagnada
uma leve ondulação
o teu sorriso que se esbate 
tristemente
os rios secos 
e os corpos cansados do Verão
a longa espera da corrente
de um turbilhão
que nos lave
que nos leve

Lisboa, 28 de Julho de 2015

Carlos Vieira

segunda-feira, 27 de julho de 2015

o meu reino que é deste mundo


oiço um motor de rega
monótono
uma libelinha atravessa o rio 
em voo rasante
um cachorro truculento
embrenha-se no canavial
o meu pai
encaminha a água
e perseguindo as toupeiras
pragueja 
eu obrigo
o grilo a sair da toca 
com as cócegas
de um feno

no próximo Verão
terei de pé
um novo mundo

Lisboa, 27 de Julho de 2015

Carlos Vieira

Enquanto esperava...

enquanto esperava
o bico de lacre 
no bebedouro
morreu só
de sede 
preso 
na gaiola agitada
das suas sombras

Lisboa, 27 de Julho de 2015

Carlos Vieira

domingo, 26 de julho de 2015

Escrita à flor da pele


Sabe do vagar
dos teus lábios
esquece o vento 
a sibilar
na penumbra
da sua pele
esse instrumento
de navegar o desejo
em esplendor
sabe da devassa
do relento
no súbito arrepio
interior
que a percorre
interprete equidistante
do mais subtil frémito
no amplexo da sua entrega
na cicatriz da dor
à superfície
quase morre
permanece
incólume
nesse momento
nada transpira
e tudo se cala
tacteando-a
sabe-a de cor
Lisboa, 26 de julho de 2015
Carlos Vieira