sábado, 19 de setembro de 2015

Poema para um guarda num perdido posto de fronteira


Hoje fui mais este dia sem pássaros
sem árvores
sua frescura de clorofila de floresta
sem a poalha dourada
suspensa
nas clareiras
cercadas dos olhares em pânico
dos antílopes
e da impaciência das feras
hoje não houve insectos
insaciáveis
na sua ânsia de rendilhar a realidade
e as tardes do fim do Verão
nem a menor sombra de pecado cintilava
a contaminar
da inapelável solidão a pureza do tempo
não houve os peixes abandonados na água salobra
dos lagos
sucumbindo num vermelho desmaiado
nem das sua guelras gorgolejam
turvos reflexos de prata
e desolação
as flores na sua frívola petulância
não desabrocharam bocejos de tédio e mofo
em jarras baratas de cerâmica empoeirada
por debaixo da sombra periclitante
das teias
que coavam moscas
e a luz mortiça do crepúsculos
no refúgio das janelas
que depois adornava no louceiro
os copos de cristal
onde se pode vislumbrar
tempos longínquos de vinho nobres
e de festejos
hoje nem o ranger do soalho
o desperta
o estremece
nem o talho doce da mobília
nem o ocre silêncio dos baixos relevos do estuque
hoje quando sintonizava
em FM
a sua estação de rádio
veio-lhe à memória
histórias antigas de gaz pimenta e de crianças separadas
todo o doméstico encantamento
do seu pequeno mundo desabou
e a raiva paralisou-lhe o medo e as lágrimas
como é possível tantos quilómetros de esperança
e portais fechados a tanto sofrimento
e as crianças senhor!
sem visto
nem passaporte.

Lisboa, 17 de Setembro de 2015
Carlos Vieira

Foto de autor desconhecido

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