quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Sol e Chuva



o sol brilha
mais hoje
mais longe
porque ontem
choveu aqui
mais perto
amanhã
vai chover
onde
não importa
ainda
se tivesses
uma planta
ou um rio
como ontem
pudesses
apenas viver
de luz
e da água
de antes
atónito
de reflexos
no meio
do canavial
sofrer
de sede
e de frio
aquecer-te
e saciar-te
à tua beira
um amanhã
em ti
não existiu
fim
nem distância
entre eles
dois
porque
ela era o sol
ele a chuva
nesta tarde
ela era a planta
e ele o rio
o mundo
em ponto
pequeno
era um sonho
nele dançava
contigo
à chuva
no meio do rio
já tímido
me escondia
a espreitar-te
no canavial
dos versos
onde não havia
tempo
Lisboa, 30 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira


terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Bicicletologia


as bicicletas
rodam elegantes
pelas ciclovias
e percursos
planeados
com seus reflexos
de guiadores
cromados
os ciclistas
causam inveja
vendem saúde
e tem o peso certo
pele de licra
fosforescente
capacete
para os incidentes
e visão de insecto
andam na vida
sem tirarem
o cu do selim
apenas são vencidos
por pequeno furo
ou a corrente
fora da cremalheira
do futuro
Lisboa, 29 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira


Pintura de Adam Neate

Gosto...

gosto
destes bairros antigos
de prédios baixos
sem elevador
com árvores de permeio
e os pássaros
para fugir e entrar 

em casa
Lisboa, 29 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

Picou-se...

picou-se
ao roubar uma rosa
do jardim
um crime de sangue
Lisboa, 29 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

De um trago...

de um trago
bebe o seu veneno
num abrir e fechar de olhos
morre por ela
Lisboa, 29 de Dezembro de 2016
Carlos Vieira

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

"Por vezes, são exatamente aqueles de quem ninguém espera nada, que fazem aquilo que ninguém espera."
No filme "O Jogo da Imitação" de Morten Tyldum

Na morte de uma florista desconhecida


Indiferente
ao insólito
à ternura 
ao chamamento
ao crepúsculo
absorta
à vertiginosa
descida
da temperatura
afinal
está morta
no banco
do jardim
amortalhada
de folhas
de notícias
dos segredos
dos outros
os pardais
parecem
chamar
por ela
deitada
sobre si
mesma
dois dedos
de silêncio
caídos
há dois dias
seguidos
de tantos
anos
dobrados
de pétalas
de espinhos
e de perfumes
deserta
é agora
a esquina
da florista
amável
à vontade
no comércio
da solidão
sucumbiu
de avc.
Lisboa, 27 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

18 instantâneos urbanos


I
oiço a mota
em fim de vida
em escape livre
II
no gume das esquinas
nos círculo da penumbra
olhares acutilantes
III
a incontroversa demência
dos semáforos
face aos olhos azuis
e os lábios vermelhos
da transeunte
IV
no primeiro andar
com o focinho entre as grades
um pequeno cão ladra
aparentemente sem sentido
V
nas esplanadas ao meio da tarde
as folhas pousadas na mesa
muda-se de estação
vira-se a página
VI
uma buzina insiste
perde a razão
na sua estridência
não se ouvem as nuvens
VII
uma fila
na paragem do autocarro
na vida contemporânea
uns sentados outros de pé
VIII
não há muita gente nesta praça
que venha para dar milho aos pombos
quase sempre os mais velhos
e os mais pobres
IX
no jardim público
a relva está bem tratada
não lhe chegaram os cortes
nem as crianças
X
nas voltas da nossa vida
o tráfego é caótico
uns a sair e outros a entrar
tanta via de sentido único
XI
no meio da praça
a estátua de mármore
olha-nos do seu pedestal
nós somos as estátuas
de carne no meio da rua
XII
faz este vento frio
entra para o túnel do metro
em busca de calor humano
sai com memórias
de óleo queimado
XIII
acende
o guarda chuva
e "apagua-se" no seu mundo
XIV
olha para os arranha-céus
para os reclames de néon
e para as montras em saldos
tudo coisas de deuses humanos
que cintilam mais
para homens de bolsos vazios
XV
a lua brilha
nos carris dos elétricos
mais tarde deles vão saltar faúlhas
e ficará o eco estridente dos freios
a propósito do nada e de tudo
uma festa em movimento
XVI
chove no cimo da calçada
elegante é a senhora e o macaco
em contraluz e o cinzento do céu
apenas um senão
ninguém pára para ajudar
na mudança do pneu
XVII
nas lojas de comércio tradicional
apenas param as moscas
há produtos fora de prazo
demasiado maduras as frutas
e os planos dos resistentes
XVIII
um guindaste
amarelo enferrujado
agoniza
na obra inacabada
uma mulher corre
esbaforida
a sua vida tem sempre
tanto por fazer
Lisboa, 27 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

Poema ao amigo virtual


Este poema
é para ti
meu amigo virtual
ao virar
da esquina cibernética
ao tocar da tecla
onde algures
aguardas que surja
no firmamento do écran
de 13,3 polegadas
uma estrela
de píxeis refeita
por vezes
tua única companhia
e noutras de tanta descoberta
nessa solidão recreativa
avanças pela rede
sem rede
vais flutuando
no espaço sideral
por cima da espuma dos dias
na mancha láctea
um post é formigueiro de letras
dele fazes um grito lancinante
e do grito germina uma canção
esperas pela resposta
de quem não sabes
que não chega
e percebes
que existe
muito mais gente
com a tua pergunta
e apenas alguns
encontram a resposta
na cacofonia dos navegadores
gostas de estar online
viciaste-te
no teu desaparecimento
do mundo
apagas-te
reinicias-te em cada dia
a cada momento
no retângulo da tua atenção
atravessas continentes
rumo à etérea melodia
da tua inexistência
devoras migalhas
de ternura
nas breves palavras
tocas a ferida do silêncio
na pele do ecran táctil
deixaste de ser tímido
ou talvez não
falas agora
por detrás de um muro
que agora cerca
a tua vida digital
estabeleces pontes
e desconheces
o murmúrio da água
para onde corre esse rio
de sentimentos
sem foz
apenas sonhas
efémeros downloads
de um amor impossível
tu um peixe fora de água
de software incompatível
aprendes a nadar
no vórtice da corrente social
usando a tábua de salvação
de um reconhecido
anonimato
meu amigo virtual
eis-nos aqui de novo
face a face
de permeio
apenas o biombo
doméstico
nos desencontros da vida
e as nuas silhuetas
das memórias
a processarem outputs
de solidão real.
Lisboa, 24 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

O déspota

O déspota
que do sol
fez a espada
ficou cego
pela usura
da luz
ignora
estar preso
às trevas
nas masmorras
onde nasce
o sonho
mais audaz
e se ergue
delicada
a flor
da madrugada
inexpugnável.
Lisboa, 22 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

Poema de um poeta e de um cavalo



um cavalo
dá um coice
em vão

um poeta
dá um coice
em verso

um coice
dá um verso
em falso

o cavalo
esse poeta
perverso

na noite
das estrelas
de um coice

na noite
a cavalo
de um verso

poeta
de montar
a noite

a monte
o poeta
e um cavalo

foi-se
de um coice
até à lua

luas
dos cavalos
e dos poetas

por fim assinam
de coice
ou de cruz

Lisboa, 20 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira








Pintura de Maqbool Fida Hussain

Pintura rupestre


Na caverna
um animal acossado
o rumor de um silêncio húmido
que o sílex de um olhar cauterizou
a palavra é um archote naquela boca
na margem deste rio subterrâneo
vencendo o torso do vazio
fruto maduro e afável
veado de sofreguidão
vencido.
Lisboa, 20 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

Coleção



Reuni
para memória futura
meia dúzia de palavras

a palavra
jangada à deriva
no imenso e azul oceano

um pássaro exausto
sem sentido
no céu infinito

uma pegada breve
arrastada
nas dunas do deserto

o uivo selvagem
coração ferido
em trevas da floresta

a silhueta acossada
e a lâmina desembainhada
na esquina da noite

a chave
que liberta os corpos
da clausura do silêncio

aquele estâmpido
que algures
põe termo à solidão

uma língua de fogo
a devorar o mármore as igrejas
ávido de chuva

um insecto
que sobrevoa
a dança das searas

a ânfora submarina
que a suave memória dos lábios
ainda habita

o sino de bronze
zurzindo em vida
o eco da morte nas aldeias

a concha
caída numa praia sem regresso
e sem sossego

o botão
arrancado na urgência e na raiva
de um amor desesperado

a flor arrancada
e caída das mãos
do desencontro definitivo

a lâmpada
campânula de luz bruxuleante
que te cerca de insónia a ti e ao livro

o rosto cabisbaixo
em dias de arame farpado
e de angústia

por fim
um pião e um cordel
esquecidos no tempo do asfalto

a minha coleção
a aguardar a descoberta
de um jogo e de um sonho

espero agora
que a força centrífuga
da ilusão volte a girar.

Lisboa, 20 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira



"Le dejeuner sur l'herbe, 77", de Ana Vieira

domingo, 27 de dezembro de 2015

Poema para ti neste fim de Outono


Este fim de Outono
traz-me a filigrana
tecida pelos teus dedos
a renda das cortinas
de reflexos etéreos
onde o teu rosto
se emboscava
na vigília da solidão
no desencontro das esperas
um córrego de luz descia
do sopé do teu olhar
apagando as linhas
onde a beleza da matemática
foi possível
tu a multiplicar por mim
ainda que a respiração ofegante
do prazer
confluísse na inevitável
solução
da lágrimas e do suor
neste fim de Outono
ao despedir-me
do abismo das tuas ancas
fico cego
pela revoada dos teus cabelos
nos meus ombros
desencantam-me
a memórias de pássaros
que partiram
e dos beijos
que me recusaste
e que perdi
quando estavas
de costas
frente a frente
com o insondável
das tuas ausências
ou será que o amor
também hiberna.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

A cama onde me deito


Enquanto me dava à indústrias dos pensamentos
e à vacuidade dos despachos
desprendiam-se das amoreiras à janela do gabinete
as folhas vermelhas e amarelas
quanto de subtileza na morte e harmonia no bailado
a evitar a prata dos troncos
se transformam por fim na melancolia do tapete precário
até que uma brisa se levante
e o cão rafeiro se deite na cama acabada de fazer
eu continuo às voltas
no virar de página e desperdício da tinta e dos papéis
no labirinto da burocracia
cada um faz a cama onde se deita
não sendo esse contudo o caso dos cães.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

Noite sem estrelas I


A noite regressou
inexorável
devorou
todos os pássaros
ou roubou-lhe
as árvores
que a poderiam
“cantominar"
de ninhos
de resistência.
Lisboa, 8 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

Em pontas


I
nos cornos
do touro bravo
hasteada
a camisa branca
manchada de sangue
e de humanidade

II
touro
de azeviche
impaciente
barragem de fogo
resfolgando
plenitude

III
o manto de nevoeiro
estende-se pela campina
subitamente
ouve-se a respiração
do touro
que transforma em farrapos
a unanimidade

IV
um cavalo baio
ergue a garupa
sobre o horizonte
que o touro negro
fixa imperturbável
ângulos de visão

V
o quarto crescente
as hastes de um touro
fragmentos de estrelas
e de sonhos colhidos

Lisboa, 8 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira



Versos a partir de um beco sem saída


No beco da sua vida
há o rapaz
e uma rapariga
oscilam
entre não querer
voltar para trás
e não haver saída
entre a entrega ao fugaz
à voracidade do beijo
ou à iminência de briga
vítimas acidentais
da dança macabra
do sem tempo
entre empedernidos
pela lâmina
da eternidade
e adormecidos
pelo solfejo do vento
que nada muda
interlúdio bélico
e guerra fria
apenas interrompidos
por sarcasmo cínico
na penumbra
da ausência
Lisboa, 8 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

Vários tons de cinzento


Enrolado à janela
neste pequeno quarto de hotel
com vista para a catedral
de Eindhoven
deixo os deuses
e demónios descansados
neste primeiro dia de Dezembro
observo a chuva miudinha cinzenta
e o céu cinzento
arquitectura moderna e cinzenta
com muito metal e vidro
os homens apressados e cinzentos
eu sou um peixe de todas as cores
que ninguém nota
vantagens dos cinzentos países do norte
passarmos ainda mais despercebidos
exulto neste aquário
sem mágoas para afogar
sem golpe de asa
vivendo epifenómenos
enganando a burocracia cinzenta
não há nada
como pequenas
estadias no estrangeiro
para nos distanciarmos
do cinzento
de nós próprios
e nos tornarmos
camaleões
dos gestos subtis
cinzentos.
Eindhoven, 1 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

Faço um poema...

faço um poema
de serenidade bovina
interrompida
pelo eco do chocalho
em equilíbrio na ravina
Lisboa, 1 de Dezembro de 2015
Carlos Vieira

Mulher com três caniches debaixo das palmeiras


Saio da garagem e no halo de luz que o portão oferece, na sua lenta ascensão, no jardim de fronte erguia-se uma mulher de meia-idade, de pé, nos seus cerca de 1,80 de altura de glamour, elegância e óculos escuros.
Não posso jurar que era loura ou se foram os raios de sol que me encadearam. Arrastavam-na pela trela, três caniches que iam à sua frente como se fossem batedores. Percebi o olhar insinuante, nele um fulgir de sensualidade, outras vezes, um prelúdio de sono, o que fazia sentido pois era meio-dia.
Pergunto-me como pude ver tudo isto num relance e com a mão no volante? Passei por ela, o mais devagar que me era permitido por lei, esfreguei os olhos ainda incrédulo. A centenas de metros dali voltei para trás, queria ver melhor se era um sonho ou visão, tocar-lhe não ousaria.
Cheguei de novo ao local da cena e afinal já tinha desaparecido, escapuliu-se, nem sombra, só havia deserta a pequena esplanada e impávidos, os bancos verdes do jardim.
A explicação mais consistente é que era uma mulher que só tinha existido como tantas outras, nas sessões de cinema da meia-noite do Quarteto, no celuloide dos primeiros filmes americanos, dos anos cinquenta, agora recuperados e pintados a cores pastel e no entanto, mudos como eu tinha ficado.
Tratou-se pois e isso é que fica para a posterioridade, de uma aparição cinematográfica debaixo das palmeiras para nos salvar da rotina, algo de tropical, será que esta também provoca alucinações, seria um milagre, pura tentação, pareceu-me excessivamente teatral mas deixa-me ainda, esta agradável ilusão de poder ter uma diva por vizinha, criada a partir do nada e da câmara escura da minha garagem.
Lisboa, 30 de novembro de 2015
Carlos Vieira

Este sopro...

este sopro
frio por dentro
das flautas dos ossos
descarnados de sonhos
Lisboa, 23 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Lisboa limpa...

Lisboa limpa
de pedra pomes iluminada
banhada pelo marulhar
da tristeza sóbria
do rio
Lisboa, 23 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Poema dos homens que não partem e dos que nunca regressam


Neste pequeno refúgio na margem do rio
tiro os sapatos e deixo-os ir na corrente
tenho sonhos de homens descalços
com os pés na terra
e daqueles que sonham
andar sobre as águas
de tantos que morrem calçados
dos que não tem terra nem sapatos
que nunca verão o mar
vidas de naufrágio afogados na dor
sem visto nem passaporte
aqui estou eu marinheiro de água doce
na margem do rio onde os homens ao partir
apenas morrem um pouco.
Lisboa, 22 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Instantâneos de Lisboa



I

Da torre 
já não parte ninguém
nem ninguém de saudade morre

nem nas masmorras
sem esperança os homens esperam de pé
a mudança da maré

matriarca resignada às mágoas entre ameias
a obervar as pontes no cruzar das águas
desce por vezes ao Tejo a olear os pés

II
os navios cruzeiros
passam com seu vagares sobranceiros
em avanço paquidérmico

tem mil olhares hexagonais de coleópteros
a devorarem paisagens e a enjoarem milhas
e panorâmicas imagens

III
as gaivotas passeiam
não se comprometem muito empertigadas
muito senhoras de si e de bico calado

as gaivotas fogem das tempestades
deambulam debaixo dos pinheiros mansos
vacas raquitícas a tosar a relva

IV
nós os turistas somos uns fingidores
equilibramos a balança de transacções
convencidos de nós mesmos

aos turistas basta-lhe
um fim de semana para obterem
um salvo conduto para a eternidade

os turistas resistentes da liberdade de circulação
disparam as suas máquinas reflex
de 24 megapíxeis

V

a todo o comprimento
das vidas que vagueiam nas margens temos o rio
e as bicicletas em contra-corrente

o rio e os seus mistérios submersos
o que não conta e tudo aquilo
que mais cedo ou mais tarde virá à superfície

o rio com raiz
na libertação das entranhas da terra
e de sonhos desfeitos no refluxo da foz

também o rio esconde no seu leito
algo de inconfessável e no remoinho
uma prosaica falta de ar

depois por último
“but not the least" temos este rio vivo
no dia da morte do Rio Doce

Lisboa, 5 de Novembro de 2015
Carlos Vieira



Temperamento


Sem te dares conta
espreito o teu gesto
impressionantemente
esbelto e complexo
a pairar sobre a simplicidade
dos legumes
a tua alegria tranquila
a afagar os vegetais
que seleciona
a brincar com as porções
de tempero
e no final
sempre me surpreendes
no inesperado voo
em que me estendes
a pequena colher de pau
acompanhada
pela fórmula mágica.
“- Vê, se está bem de sal!”
Lisboa, 18 de novembro de 2015
Carlos Vieira

O Bule

O bule
de asa altivo
na sua pose aristocrática
entre chávenas e scones
quem diria que ferve 
em pouca água
Lisboa, 18 de novembro de 2015
Carlos Vieira

Fita-me...

fita-me
o grande olho
da máquina de lavar roupa
depois fica embaciado
raso de água e regurgita
eu, eu ando às voltas
pela noite dentro
em busca dos pensamentos
mais enxutos
Lisboa, 18 de novembro de 2015
Carlos Vieira

era meia noite em ponto

era meia noite em ponto
gelado
um copo de leite magro
foi derramado
pelo tampo de mármore
sobre o tempo
Lisboa, 18 de novembro de 2015
Carlos Vieira

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Tão grave...

Tão grave
é o esquecimento
como o desencontro
com as palavras
essa impossibilidade
de compreender
a distância
de contornar
a solidão
Lisboa, 17 de novembro de 2015
Carlos Vieira

auscultar-te...

auscultar-te
ter o exacto diagnóstico
daquilo que em ti me dói
sinfonia sentimental de ouvido
sem partitura
Lisboa, 17 de novembro de 2015
Carlos Vieira

Mãe, chegaram notícias outra vez de Paris


Espreito teu vulto
sentada sobre a erva macia
do teu peculiar modo de olhar o mundo
o sol a prumo estava pendurado à tua espera
em jeito de provocação tiravas o chapéu de palha
respiravas ao de leve e pausadamente inclinavas a cabeça
para trás em suave declive até fixares o olhar no céu azul
até deixares de ser apenas uma ficção e te despenhares na realidade
eram palavras as aves que partiam de ti num aparato de primeiro voo
ainda frescas que tinhas colhido no ao crepúsculo de doméstica floresta
no microcosmos das tuas mãos circulava a brisa de um beijo imperceptível
nessa subtileza dos afectos e da ausência aprendia-se o florir efémero de um sorriso
reabria-se uma antiga fenda nessa parede inexpugnável da idade da indiferença
adensar-se-ia o mistério se o peixe esquivo não esboçasse uma brevíssima carícia
na semi aberta concha de uma solidão impenetrável depois que foste a mãe distraída
foste no início da noite de anteontem o vulto de mãe inconsolável logo que te chegaram
céleres as notícias de Paris.
Lisboa, 15 de Novembro de 2015
Carlos Vieira


Despertares


Acordo
e o teu corpo
desmorona-se
a tua pele escurece
como se fosse possível
eu poder fazer-te sombra
acordo
e o murmúrio do teu sangue
desaparece
como um rio
que muda de rumo
acordo
tudo se esquece
até essa memória intensa
da profusão
do teu perfume
acordo
neste meu lado
da cama da solidão
sem acordar na viagem
dos teus lábios
acordo
sem luz e sem nexo
depois do labirinto palpitante
do teu sexo
acordo
não te encontro
neste mundo
sendo tu tudo para mim
neste amplexo de luz
sendo o que foi a madrugada
também és o nada.
Lisboa, 13 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Poesia dos simples


Invejo
esses poetas
da sobriedade
em silêncio na distância
levam a lua pela mão
tem sempre o mar ali ao pé
e se por acaso a tristeza ou a alegria
lhes invade o coração
subsiste uma fonte inesgotável
de poesia à flor da pele
e uma reserva de amabilidade
inabalável.
Lisboa, 13 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Nunca imaginara...

Nunca
imaginara
como era difícil
beijar-te
em pensamento
e em simultâneo
ter as mãos
nos bolsos
Lisboa, 12 de novembro de 2014
Carlos Vieira

perco-te...

perco-te
nesse mar
aberto
de não saber
amar-te
de navegar
á vista
na espuma
dos dias
sem ousar
Lisboa, 12 de novembro de 2015
Carlos Vieira

olho por ti...

olho por ti
e cego
olho para ti
sem sossego
Lisboa, 12 de novembro de 2015
Carlos Vieira

Sentir-te só


Sopra
o vento na estepe
a neve tudo pode esconder
excepto
os teus cabelos despenteados
o teu rosto afogueado
Iluminado
pela luz bruxuleante
do candeeiro
na tenda apertada
do sem fim
do amor
até a terna memória
do beijo à esquimó
ameniza
um pouco esta Sibéria
esta desesperada
miséria
de te sentir só
Lisboa, 12 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Subtilezas


Uma borboleta
serpenteando
pousou
na janela de guilhotina
o bater frenético
das suas asas
afastou a sua imagem
acalmou-lhe
a pulsação.
Lisboa, 12 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Jogar “à sardinha”


Na ausência
das palavras
pediu-lhe 
para jogarem
“à sardinha”
e naquele ardor
demonstrou
como era ágil
o seu amor.
Lisboa, 12 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Memórias do verde pinho


I
entrava no pinhal
e ouvia o eco
do seu grito
ancestral
a sair pela porta
das traseiras
da infância
II
sonhava
no talho doce
das tábuas de pinho
do tecto
a contar nódulos
de medos
e das noites
infinitas
III
assalta-o
o aroma
dos afetos
e essa solidão
de resina
que escorre
por uma fenda
à sua altura
de menino
IV
lembrava-se
de ser premiado
com um fio de pinhão
e uma taça de barro
depois do corta mato
e do arranhão
da urze
V
fazia os barcos
de carrasca
que ficavam a flutuar
na memória
nos primeiros jogos
às escondidas
dos rostos e dos corpos
da ilusão
por detrás da verdade
e da mentira
dos troncos
austeros
VI
sabia
da experiência
do carvalho
no meio do pinhal
a refulgir
lustre de cristais
e da sofreguidão
das sombras
VII
lembrava-se
das varetas de sol
por debaixo
das nuvens de passagem
onde pousava
a rola no pinheiro
e do alvoroço
entre os insectos
ávidos de clorofila
VIII
esqueceu
da caruma
a fazer o Outono
na cama dos animais
dos atalhos vermelhos
por entre o musgo
de um silêncio verde
dos circunspectos
adultos
nos castanhos
erectos
IX
nesse tempo
o ar era límpido
e nas clareira
os corpos
nus amavam-se
desesperadamente
e até a falta de pudor
dos voyeurs
era inocente
X
já se ouvia
à época
um moto-serra
distante
a floresta estremecia
suspirava
e uma raposa
era um relâmpago
fugaz
um arrebatamento
XI
ainda se lembra
do tojo que o picava
reaprendia
a contenção do gesto
a cicatriz
estrela clarividente
da pele
após a inolvidável
e abrupta
presença do sangue
XII
apanhava pinhas
e sabia dos últimos
esforços do vento
e calculava
a altura da queda
e a exata percepção
das cores
na útil fragilidade
de uma natureza morta
XIII
subia a um pinheiro
e daquele mastro vivo
abarcava
todo o oceano
no azul
a esteira de um olhar
embriagado
de aventuras
à sua espera
depois do mar verde.

Lisboa, 11 de Novembro de 2015
Carlos Vieira



Foto de autor desconhecido

mártir ocasional


flecha
flor de metal
a germinar no dorso
ave de um único voo horizontal
desferida pelo arco tenso de um poema
ritual de anjo caído que em esforço
paciente se esvai em borbotões
pelo chão dispersas pétalas
de sangue inocente
Lisboa, 9 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Feira do Relógio


I
Amanhã
vou à Feira do Relógio
matar o tempo
com uma pistola
transformada.
II
Se chover
melhor
gosto do gotejar
das tendas
do salpicar
da lama
do triunfo
da aparência
na roupa
falsificada.
III
Infelizmente
já não há castanhas
embrulhadas
nas páginas amarelas
a receptação
deixou de ser
a oportunidade que era
estamos em migração
para o mercado
virtual.
IV
Do ângulo
de visão de Deus
tudo na mesma
almas penadas
que se escondem
debaixo da errância
dos chapéus de chuva
e o preto já foi
mais habitual.
V
Enquanto
não se calam
na discreta
narrativa
dos novos tempos
oiço os pregões
e as pragas
aves em via de extinção
que sobrevoam
o silêncio.
Lisboa, 7 de Novembro de 2015
Carlos Vieir

Fissura II


Uma
pequena brecha
um sortilégio
na subtil nudez
da construção frágil
em jardim suspenso
no precário momento
um promontório justo
a súbita fractura exposta
o músculo que cede
à superfície um gesto
que sucede brusco
num tempo morto
engrena
por um simples acaso
no movimento singular
a respiração boca a boca
que a faz regressar
à admirável dança interior
ao bate bate coração
depois daquela eternidade
uma fração de melodia
interrompida
um vestígio do sal
que trouxe outra vez
o mar brutal
ao intervalo
entre a tua vida
e minha morte.

Lisboa, 7 de Novembro de 2015
Carlos Vieira





Desenho de autor desconhecido

Fissura



Pela fissura
quase imperceptível
quem podia adivinhar
que por ali
se poderia esvair
a secreta alegria
e brotar uma remota
razão de ser
para a vida.

Lisboa, 7 de Novembro de 2015
Carlos Vieira


Foto da Internet de autor desconhecido

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Pensamento à volta das muralhas de Ávila



“Terra de cantos e de santos"

olho
as grandes muralhas
de Ávila
destemidos
eram os soldados
que as acometiam
sem as asas
da minha imaginação
e ignorância

à volta
da cidade fortificada
adormecidas
estão as enormes rochas
as pequenas gralhas
acordam nos homens
sonhos e pesadelos
de gigantes

o frio de Novembro
regela os sentinelas
nas torres
por momentos
pareceu ouvir-se
o assobiar das setas
nós permanecemos
bestas anestesiadas
por sádicos Cupidos
e por cantos de sereia

mais dia menos dia
esperam-se
os bárbaros
os Invernos rigorosos
e a fome
tornou-se insuportável
viver sem wi-fi
sem rede
pouso o pensamento
em Adolfo Suaréz
filho da terra
que me observa
imperturbável

entre ameias
olhares emboscados
o mínimo ruído
identifica-se a ameaça
que se afoga nos bares
a sofreguidão dos cegos
a turba na sua pressa
de shots
ou de preces
após o eco dos sinos
os devotos esgueiram-se
fervorosos
para a missa nocturna
na capela
de St.ª Teresa de Jesus

chegou a noite
arrastada
sento-me no interior
da fumegante bodega
peço jamon serrano
uma canha
estou a salvo dos assaltos
dos bárbaros
e das lâminas do vento
das casas dos segredos
e das novelas
e do grande cerco
digo circo mediático.

Ávila, 4 de Novembro de 2015
Carlos Vieira


domingo, 1 de novembro de 2015

Dias de pesca III

III

Há três anos, foi à pesca com um amigo de férias em S. Jorge, no seu pequeno barco, ao largo da Calheta, ele pescou uns vinte e tal peixes, diversas espécies e tamanhos. Tentou desesperado, industriar-me na arte e nas artes da pesca, a elegância e perícia na colocação do isco, a subtileza e decisão no içar da linha e da velocidade do carreto. Um esforço no sentido de me ganhar para aquela atividade, da qual retirava mais do que momentos de sossego, recolhimento e reflexão, enormes vantagens culinárias, filosofia que eu subscrevia com uma prática canhestra.
No final pesquei apenas meia garoupa, pois um outro predador marinho, antes da mesma chegar às minhas mãos, ficou com a parte melhor do meu suado pecúlio.
Naquele dia, porém o pior e melhor da pescaria foi um cerco de golfinhos à volta da embarcação, por momentos ficamos maravilhados com a atenção dispensada, por animais tão encantadores, no entanto face ao assédio, começamos a sentir-nos um pouco peixe fora de água e que talvez o singular interesse dos “amigos" anfíbios, não seria somente, algum espetáculo coreográfico que teriam preparado para nós. O meu amigo puxou a corda do motor fora de borda, pusemos o rabo entre as pernas e despedido-nos dos “simpáticos” animais.

Lisboa, 1 de Novembro de 2015

Carlos Vieira 

Dias de pesca II


II
Foi há 33 anos. mais coisa menos coisa, era uma manhã soalheira de Outubro, que após sugestão aliciante de robalos grelhados, me aventurei na pesca marítima, ali para zona de Oeiras com o meu amigo Filipe, entusiasmados, apetrechos em ordem, local estrategicamente escolhido com conselho de pescador experimentado, um mar a condizer, isto é, mais ou menos agitado.
Após horas de impaciência, de bóias imóveis, sem apresentarem o mínimo nervoso, a flutuarem por vezes com imperceptíveis mudanças de humor, de olhares atentos e de iscos sucessivamente perdidos, reluziu, no cinzento escuro de uma rocha, uma aliança!
Milagre, um sinal premonitório ou apenas de um pescador distraído que no ardor da pesca, de um peixe mais fogoso, se esqueceu do casamento, ou mais precisamente, daquele símbolo "para vida" , terá sido a mesma, apenas usada para fazer peso na linha ou talvez ali tivesse começado um divórcio,
o meu foi durante muitos anos com a pesca, essa forma de casamento onde apenas nos traímos a nós próprios e, por vezes, podemos enganar os peixes mais guloso
ou mais esfomeado, eu nem esses.
Lisboa, 1 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Dias de pesca I


I
De todas as minhas
recordações da pesca
existe algo e comum
nunca pesquei nada
daí retirei a conclusão
que posso ser peixe
ou seja algures na minha
árvore genealógica
gerações atrás
pode aparecer
num dos ramos
algum espadarte
pendurado.
Lisboa, 1 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Poema do amor impossível


ía jurar
que a conheço
de a ver um dia
em sonhos
abraçada
aquilo que eu fui
foste o sol
podias ser o meu sol
que vinha comigo
de braço dado
do liceu
agora passo
por ti
e vejo ainda
o balouçar
daquela saia de pregas
acenas
naturalmente
como as árvores
e as flores
de todos os jardins
onde passamos
olhas-me
não me reconheces
e corres pela relva
com teu sorriso
límpido
eu já não vou
atrás de ti
volto aquele espelho
de um amor
platónico
no fundo
eu é que tive sempre
ausente
parto depois
de te rever
imagino-te
reinvento-te
ao vento
confesso-lhe
o que não lhe disse
e danço a solo
sem saber
o que te move
o que te comove
não sabia
do teu rumo
ía jurar
que cheguei
a saber quem eras
e nunca fui muito forte
em matemática
nesse tempo
em que não sabia amar
ou talvez nunca
soubesse
e tu fosses aquilo
que nunca procurei
ou talvez
não te pudesse
reconhecer
noutro lugar
noutro tempo.
Lisboa, 1980
Carlos Vieira

sábado, 31 de outubro de 2015

Mais um poema para um sem abrigo numa noite de Outono



escuta
nos paralelepípedos do granito molhado
pressurosos passos
a queda de um corpo

espreita
o luar que insinua um prazer
quase desvendado a arfar na blusa branca
um botão que salta

sussurra
uma porta entreaberta
e um rosto febril por detrás da cortina
esgueira-se um gato

sorria
no seu circunlóquio
o velho alfarrabista a desfolhar o ulmeiro
pousa-lhe um pássaro no olhar

olvida
no gume do silêncio
a ferrugem que é estertor do tempo
sangue vivo na lâmina

chove
só as bátegas de água na casa
primeiro andamento de sonata de Outono
memória dos seus dedos

corre
na fonte uma água antiga
na sua fronte corre água da chuva
insaciável

cala
a dor e a morte que se acentua
e o Inverno que se avizinha e a perpetua
sem saber escolher as palavras

observa
as luzes dos faróis a ofuscarem
a supremacia da noite e o vagar dos animais
tem as calças rotas e o coração suspenso

adormece
nada está conforme
amanhã será despejado e dorme a sono solto
sobrevive indiferente à indiferença.

Lisboa, 31 de Outubro de 2015
Carlos Vieira




Nocturno nas margens do Tamisa


I
Observo-te
inquieta e tímida
na penumbra
no biombo
de um verso
da hora da partida
esta noite
vai perder-se
o silêncio
perverso
da tua mão
a pousar
subtil no corrimão
do undergound
em Victoria Station.
II
Apenas
candeeiros
periclitantes
insalubres
e retardatários
regressam
da tua ausência
que se traduz
nas águas
agitadas
do Tamisa
atravessas
na tua gabardine
creme
o caos e a a zona
dos guindastes
consome-te
o desejo
a mim o medo.
III
Devora-te
a solidão crua
da luz
o naufrágio
de transparentes
mistérios
e ângulos agudos
de cristal
devora-te
o precário
o "open space"
a cidade moderna
que se esgota
em espanto
escuto a tua voz
moderada
mansa
e sigo-te
na elipse
sumptuosa
do teu adeus.
IV
Convive
o teu perfume
com torres
e contos
ancestrais
efervescentes
enquanto ali
no leito do rio
o murmúrio
que adivinho
na corrente
do teu corpo
sedento
me aniquila.
V
O que em ti
me seduz
é a elegância
do quase nada
o desespero
de um amor
que por vezes
não corresponde
que não se adapta
que não se adota
o que resta
de ironia
e de um acre
da tristeza
submersa
de um fim
de festa.
VI
Espero por ti
transfigurado
por um dia
no cais
sobre tijolo
da perda
e do humor
britânico
entre especiarias
Índias
reflexos da prata
e do rumor
dos peixes
fora de água
como nós.
VII
Na recepção
vivemos
cumprimentos
molhados
da barbatana
de gravata
e tailleur
e falta de ar
do protocolo
a ponte ávida
aguarda
lá fora
como eu
a tua passagem
por vezes
melancólica
outras
gloriosa.
VIII
Isolas-te
na torre
eu fico
amarrado
à ditadura
do tempo
sempre
cedo perante
a vertigem
do teu semblante
espero-te a cintilar
mesmo
se o nevoeiro
de um qualquer
Dickens
recalcitrante
me negar
de novo
a luz húmida
do teu olhar.
IX
Espero-te
depois de Trafalgar
da vigilância
desajeitada
de um esquilo
e do súbito
espreguiçar
das asas
de um pato real
junto
ao lago do parque
tu receosa
vives camuflada
no musgo
das sombras
nas margens
de ternura
que se mistura
ao luar
temperando
o punhal
da impossibilidade
de em ti germinar
nem que fosse
por uma vez
violento
e impenitente
do amor
o gesto
libertador.
Londres, 28 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

Logro


logro
(é) o oscular sôfrego
do lóbulo
logro
(é) o beijo a resvalar
sobre o sobrolho
logro
(são) as tréguas
dos teus lábios
logro
(é) a boca de veludo
polpa de nêspera
logro
(é) da nuca à omoplata
meu trapézio
logro
(é) desengano
ou o fim do mistério
logro
(é) a tua lágrima
preliminar da chuva
logro
(é) o sorriso insólito
um desconcerto
logro
(é) carícia em falso
na curva da face ausente
logro
(é) o teu murmúrio
ser apenas a brisa da manhã
logro
(é) esta singela armadilha
um suave veneno
logro
(são) os fragmentos de silêncio
na memória da pele
Lisboa, 26 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

Nova Iorque fora de horas


Uma visita relâmpago
à cidade que não dorme
que se conjuga
no espaço e no tempo
com o seu ego sonâmbulo
e o seu corpo noctívago
ali ao lado
conjugam-se no beco
mal iluminado
a que chegou
notas cavernosas
de um contrabaixo
a voz límpida
de uma cantora de jazz
que lhe faltava
ainda tão jovem
e tão desconhecida
a cidade
que não dorme
dos arranha céus
estremece
de tanto atrevimento
chamava-se Pink Lady
fruta proibida
talvez
apanhada do chão
e agora
estrela que cintila
a grande altura
numa insensatez
de néon
num desdém altivo
de um blues
que lhe lembra o fado
de quem impura
se entrega
de corpo e alma e álcool
ignorando
essa velha história
da maçã e do pecado.
Nova Iorque, 16 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

Visão desesperada


Hoje olha-me bem
no fundo do meu olhar
só tu podes descobrir
tu podes ter sido
uma miragem
um de nós pode
não existir.
Halifax, 13 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

De coração ao alto, sobrevoando a Terra Nova


Dormito
o avião “turbula"
uma criança traquina
um velhote
aqui ao meu lado
ressona
um casal atrás de mim
ronrona
a interjeição ríspida
do virar de pagina
do restolhar da folha
perante o leitor
embevecido
tira-me o sono
aquela passagem
a hospedeira
passarela
com dois três recados
guardados
aninhados debaixo
dos seus caracóis
louros falsos
depois de um inexplicável
frenesim
de nuvens
o comandante
anuncia-nos
em voz baixa
a grande altitude
a nossos pés
a certeza
do oceano
inaudível
uma vizinha
do lugar
da fila do meio
no seu olhar lúbrico
como que acena
ao seu lado
sem se dar conta
um homem de meia idade
no seu ângulo morto
que boceja
e cofia a um bigode
fora de moda
para o hirsuto
o avião continua
sem desfalecer
com a sua respiração
pujante
por vezes
parece ter hélices
outras vezes
guelras
agora passamos
ao lado de Goose Bay
eu escrevo
na planície gelada
do écran
cercada
por fragmentos
de gestos
entre a ternura
e o ameaçador
de murmúrios
e de pensamentos
e artimanhas
de desejos
domesticados
pelo mantenha
o cinto apertado
que tremeluz
a ordem
é a que resulta
da exiguidade
do espaço
em que nos respiramos
o mesmo destino
em que decantamos
movimentos subtis
mecânicos
fugazes reflexos
de humanidade
enquanto escrevo
tiro a língua
a uma criança
que olhou para trás
enquanto
neste Boeing 777-300
fomos pensados
para olhar para a frente
entretanto
ouvi a força do vácuo
da sanita
ao abrir-se a porta
do wc ali à frente
observo agora
de um lado o Deer Lake
e do outro a Terra Nova
neste cockpit
da solidão
de um poema
onde estupidamente
me entrego
onde navego
percorro
com o olhar
por debaixo do algodão
das nuvens a imensidão
da superfície
à espera da neve
um caribu
enfrenta a tempestade
e o tempo
com a exuberância
das suas hastes
agora em cada ano
que passa
qualquer distância
atravessada
ou qualquer nada
nos deixa contente
até que uma voz
me desperta
e estremeço
“Senhor, quer café ou chá!"
podia até ser
a voz melancólica
do animal.
Halifax, 13 de Outubro de 2015
Carlos Vieira

Olhar de veludo


De veludo
sem franquia
é o seu olhar
defraglando
o êxodo
dos pássaros
por dentro
da árvore
ancestral
um eco
no corpo
respira
enclausurado
onde transparece
um silêncio
iluminado
na sua pele
que a brisa
suave
de eternidade
enlouqueceu.
Lisboa, 11 de Outubro de 2015
Carlos