domingo, 26 de maio de 2013

Reminiscência urbana


 

Sempre fiquei impressionado com a expressão arquitetónica “prédio de gaveto”, embasbacado e sem saber para onde ir, nesta esquina de cidade que tanto tenho visitado e tão desconhecida permanece, procurei no ângulo, a rua que me provocasse a curiosidade ou o conforto, sendo certo, que daquele gaveto, não vislumbrava nada que me pudesse suscitar motivos para grandes apreensões ou especial emoção.

Ali estava, perante o peso dos prédios mais ou modernos, aquários de enormes superfícies mais ou menos espelhadas, aos quais as bicicletas suavizavam as arestas, assumi uma atitude que revelava uma subtil áurea de tranquilidade e uma vã tentativa de me mimetizar, perante tão fria e apressada fauna, a mesma que é comum a todos os anónimos lugares de passagem.

Eis-me pois aqui, remoendo um “gaveto” desta cidade que, por sua vez, me devora vorazmente e me condena, irremediavelmente, ao esquecimento, muito embora, seja provável que vigie atentamente todos os meus passos, “não vá o diabo tecê-las”!

Esse facto pude constatar, face à abordagem que dois agentes da autoridade me fizeram, muito cortesmente, por certo, respaldados em estudada observação e privilegiando uma atitude proactiva, face à minha inexplicável e perturbante inacção que a afinal, não era mais que a minha ancestral indecisão, na estratégica esquina.

Perguntaram-me aquelas coisas banais, que se perguntam aqueles que são vagamente suspeitos, questões de triagem, num inglês são e escorreito, habitual aos povos do norte da Europa, respondi-lhe no meu inglês de serviços mínimos e pude aperceber-me que ficaram relativamente tranquilos, na sua desconfiança ou sagacidade profissional.

No intervalo destas viagens de natureza profissional tento, tanto quanto possível, arranjar tempo para uma incursão, na cidade, por vezes desconhecidas, sendo certo que naquele curto período, há sempre um compromisso que se estabelece, entre visitar qualquer ex-libris do burgo estrangeiro ou ir sentir o pulsar e espreitar os rostos das gentes que invariavelmente, nesta latitude europeia, se mostram contidos, correctos, indiferentes, discretos, pouco deixando transparecer, o que lhe vai na alma ou sinais do tão enunciado sentir colectivo.

Perplexo neste gaveto, deixei que a cidade, por osmose se infiltrasse pelos poros, pelos ouvidos, pelo nariz ou que qualquer brisa fizesse a diferença e me trouxesse um sinal da minha presença na Terra ou que pelo menos, nestes 180º de solidão, me ajudasse a reescrever uma mais auspiciosa e justa concepção do sentido da vida colectiva ou a conhecer o mais subtil sentido do movimento dos indivíduos e das razões da sua indiferença, perante os seus semelhantes.

Naquele gaveto, frente ao mar do Norte ou na esquina da Broadway, estamos sempre divididos por vários sentidos, caminhos, fragâncias, cercados por esta solidão de gente e, por aquela breve suspeita ou profunda indecisão, de não pertencermos a nenhum lugar ou de qualquer forma, aquele ser um espaço reminiscente, incompleto, no nosso interior, a que já pertencemos, que sendo agora de todos, se torna terra de ninguém.

 

Haia, 25 de Maio de 2012

Carlos Vieira

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