neste recanto
no beco do tempo
surpreendo
o fogo efémero
dos teus pés descalços
a pousar
o chão de cortiça macia
foi ali que me debrucei
na tua febre
e poderia beijar-te
o teu sono
e a seguir entregar-me
pôr fim
ao teu infinito exílio
relembro-te
luminosa ou tutelar
o manto diáfano
de um teu olhar
que me descobriu
no palco
onde cresci
na mentira do mundo
e de mim
verdade nua
e etérea
ora furtando-se
entre dedos
ora de unhas rasgando
a carne
esconjurando medos
reabro
a gaveta
que range
no vazio de dantes
onde indagavas
a ternura
e também o desejo
intrépido
um colar de pérolas
agora tão frio
pendurado na memória
do teu pescoço
de âmbar
descortino-te
no recato da espera
a tua mão
destemida viajando
na penumbra
do armário e o toque
do tecido
que era precisamente
antes da seda
da tua pele
dispo-te de olhos
fechados
enquanto repousa
na cama desfeita
apenas o rascunho
do poema
estás algures
ou em toda a parte
única explicação
porque se prolonga
a minha sede
até ao limite reflexo
exasperado
da tua auréola
estou refém
do teu esquecimento
amarrado
à constante assiduidade
dos pássaros
furtivos
a casa respira
depois que desenho
de cor
os teus lábios
molhados
sublinhando o gosto
de tuas palavras exíguas
que me levaram
de regresso
em perspectiva
à sofreguidão
do teu corpo
desgovernado
e à máscara de prazer
inaudito
do teu rosto
fragmentos
do teu perfume
resvalam
na melancolia dos objectos
quotidianos
com que me deixaste
cercado
e onde tropeço
minha doméstica
e mais nobre
causa
espelho diário
da tragédia
canto e abismo
e ânsia
de voando
só assim poder abraçar-te
íntegra e inteira
serena e sentada
estás tão longe
nesta cadeira de balouço
Lisboa, 18 de Maio de 2013
Carlos Vieira
“Sleeping
woman (Meditation)” de Pablo Picasso
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