sábado, 18 de maio de 2013

Constelação


 

 

neste recanto

no beco do tempo

surpreendo

o fogo efémero

dos teus pés descalços

a pousar

o chão de cortiça macia

foi ali que me debrucei

na tua febre

e poderia beijar-te

o teu sono

e a seguir entregar-me

pôr fim

ao teu infinito exílio

 

 

relembro-te

luminosa ou tutelar

o manto diáfano

de um teu olhar

que me descobriu

no palco

onde cresci

na mentira do mundo

e de mim

verdade nua

e etérea

ora furtando-se

entre dedos

ora de unhas rasgando

a carne

esconjurando medos

 

reabro

a gaveta

que range

no vazio de dantes

onde indagavas

a ternura

e também o desejo

intrépido

um colar de pérolas

agora tão frio

pendurado na memória

do teu pescoço

de âmbar

 

descortino-te

no recato da espera

a tua mão

destemida viajando

na penumbra

do armário e o toque

do tecido

que era precisamente

antes da seda

da tua pele

dispo-te de olhos

fechados

enquanto repousa

na cama desfeita

apenas o rascunho

do poema

 

estás algures

ou em toda a parte

única explicação

porque se prolonga

a minha sede

até ao limite reflexo

exasperado

da tua auréola

estou refém

do teu esquecimento

amarrado

à constante assiduidade

dos pássaros

furtivos

 

a casa respira

depois que desenho

de cor

os teus lábios

molhados

sublinhando o gosto

de tuas palavras exíguas

que me levaram

de regresso

em perspectiva

à sofreguidão

do teu corpo

desgovernado

e à máscara de prazer

inaudito

do teu rosto

 

fragmentos

do teu perfume

resvalam

na melancolia dos objectos

quotidianos

com que me deixaste

cercado

e onde tropeço

minha doméstica

e mais nobre

causa

espelho diário

da tragédia

canto e abismo

e ânsia

de voando

só assim poder abraçar-te

íntegra e inteira

serena e sentada

estás tão longe

nesta cadeira de balouço

 

Lisboa, 18 de Maio de 2013

Carlos Vieira

 

 

 
                                             “Sleeping woman (Meditation)” de Pablo Picasso

 

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