Ontem voltei a sentar-me naquela esplanada no meio do jardim e do país. Mais tarde ou mais cedo, ali regresso como quem está de volta a si. Não sei qual a origem deste prazer que classifico como sublime, de ler o jornal e ouvir através dele o mundo que ali está à minha volta e depois deixar que aquele diálogo se transforme no rumor das folhas, dos risos, em rouquidão, em pura gargalhada, gesto de misericórdia, em sentido do humor fácil e corrente de ar, pontuadas aqui e acolá, por disfarçadas e inoportunas aerofagias e flatulências.
Ali rodeado das pessoas que saem dos artigos e se vão embora sem se despedir, entre repuxos, pétalas, crimes hediondos, descobertas científicas, peixes vermelhos, alterações climáticas ou daquelas outras, que mais soltas e curiosas pousam, à minha beira e espreitam para ler as “gordas” e aspiram o perfume do meu café que arrefeceu de esquecimento.
Literalmente, parece-me estar dentro do mundo e sentir as pessoas que passam e que ficam pairando como se me pertencessem, posse efémera pois claro, já alguém disse, que não há maior isolamento que sentirmos uma multidão dentro de nós.
Talvez nem isso, pois que a minha timidez, denuncia uma certa ânsia em se apropriar da vida que lhe é contígua, resultado do defeito consumista que nos consome – desculpem-me o pleonasmo - por efeito de absorção ou, tão-somente, porque esse voyeurismo dos outros, nos faz esquecer por breves momentos, a dramática situação em que se vai sobrevivendo.
Na esplanada é como se observasse uma exposição em movimento, sentado, faço parte de uma instalação, ao mesmo tempo estou ali, a olhar as pessoas olhos nos olhos, numa espécie de quase ausência de dor e sentimento, de transferência de culpas, de música de fundo, de nuvens no céu tricotadas de folhas e de flores, definindo-lhe o perfil etéreo que nos permite o distanciamento nos desconhecidos.
Assim me entrego, à ternura que deciframos em cada humano momento e saúdo de forma fugaz, tanta gente abraçada à solidão de passagem pelo jardim.
Lembro-me que saía de casa e ali atirado pelas mesas e cadeiras desengonçadas, estudava qualquer assunto muito melhor, sem as interrupções solenes, do sopro da panela de pressão, do puxar do autoclismo, da campainha a que se seguia a conversa da vizinha, a televisão e o rádio, que por serem actos isolados, atingiam na sua magnitude doméstica um peso incomensurável.
Olho para aquele casal de adolescentes, namorados e entendo Chagall, só se sabe muito do amor, quando ainda pouco se sabe da vida. Nessa altura, faço de pássaro, fico atento enquanto eles fecham os olhos e se beijam e o mundo todo fica num equilíbrio instável, boquiaberto naquele abandono. Os pássaros têm essa particular subtileza de baterem as asas e não se perder o encantamento, de poderem revirar a cabeça, sem perderem o sentido do mundo.
Depois há os inúmeros pobres e idosos que percorrem esse território de ninguém e determinam a ocupação dos bancos do jardim, protegidos nas ameias, parecem olhar para o vazio, fazem contas à vida, “passam pelas brasas”, recuperam forças, enquanto acontece o desabrochar das flores, dão migalhas aos pássaros em troca de um pouco de atenção e do gorjear de algumas palavras, por vezes a única coisa que lhe resta para dizer, são essa surpreendente densidade dos monossílabos.
Gosto deles, não desse gosto miserável de ter pena dos velhos ou da sua experiência, das suas inúmeras e incríveis histórias, sobretudo, invejo a sua atitude serena e os seus gestos afectuosos, desarmam-me os espectros das imagens que haviam hibernado no seu olhar encovado, de quem não têm mais serviço contratado e nada mais para fazer, do que celebrar a festa das pequenas coisas, elas também com pouco futuro.
Ali estão eles, o meu elenco de personagens do meu teatro circunstancial, já esquecidos das deixas e do espaço, reinterpretando-se a si mesmos, em cada momento o seu papel, num somatório de camadas de sonhos e de mortes que se cruzaram nos palcos mais ou menos iluminados da sua vida. Ali estou sozinho, na plateia, atento ao desencantado percurso da minha própria vida que percebo um pouco mais que vegetal, nos trémulos gestos dos outros e no rumor das suas palavras distantes
Eis-me aqui, que peço mais um café, tenho que estar bem desperto e deste esqueleto de ferro de pintura gasta, nesta jangada de madeira onde navego, surpreendo na penumbra das árvores as aves e as pessoas que são palavras pairando na minha cabeça, exaustas da busca do caminho para uma qualquer gaiola do amor, desesperadas dessa liberdade de estarem sós, atónitos de serem senhores do seu destino, e de pouco saberem para que lhe serve tanto conhecimento.
Restam os espinhos, o perfume e a beleza das rosas, só espero que a carne e o sangue do seu canto proclamem o crepúsculo no fim da tarde e sirvam de alento às bússolas e ponteiros, aos navios tristes e abandonados que um a um, se levantam deste estaleiro a caminho do norte magnético de suas casas, nesse rumo de regresso a um país adiado.
Lisboa, 2 de Setembro de 2012
Carlos Vieira
“The Café Terrace on the Place du Forum des Arles at Night” de Van Gogh
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