quinta-feira, 22 de março de 2012

Histórias trágico-marítimas



I

esse barco

que lhe sai agora

pela boca fora

é outro insulto

um vómito

da mesma empresa

um novo negreiro

a mesma história sórdida

do mercado

do caminho das Índias

que lhe cresce nas entranhas

são outras receitas

do mesmo fado

as mesmas especiarias

e tecidos

reconheço-lhe

a genoa de barriga inchada

de nada

o mesmo tráfico

o mesmo escarro

tudo por fora  de um país

esse suado milagre

de um punhado

de homens íntegros

por vezes sábios

dos que não iam nas correntes

de tantos que tantas vezes

das fraquezas se fizeram

valentes



II

cassaram

o rumo de um povo inteiro

desfeito

de mala feita

no imenso cais

onde nenhum sonho cresce

onde ninguém

já vem dizer adeus

sem o proverbial

timoneiro

sem nenhuma amarra

este é o povo

de um país onde anoitece

é de novo

esta recorrente

aventura

que esmorece



III

já ninguém parte

todos se vão embora

gente

deste naufrágio

que nos colheu em terra

ressequida

já só temos o mar

neste apeadeiro de vida

e por aqui ficamos à deriva



IV

os mastros

de bandeiras rasgadas

as praias

onde definham

e enferrujam

as âncoras

das memórias e das ideias

são agora infames gestos

ou poleiros de gaivota

os mastros

acusadores



V

da gávea

avistam-se as ruas

onde escorre gente triste

cansada quebrada

gente seca

e ratos e cobras

capitães em fuga

gente que se esconde

que se agasta

que se arrasta

por detrás da lua

e dos becos



VI

nas ondas dóceis

uma dor dormente

que cresce

no convés do coração

os cabos cruzam o destino

onde pendurado

seca um corpo

de uma desconfiada tristeza

de corda esticada



VII

à proa

vais ao leme

do amor e da raiva

pura e dura

descobres por momentos

ventos

e pela sonda

senda do amor

a tua fome antiga de beijos

que tinham a forma de peixes

e na explicação dos baixios

e do mar profundo

desconheces de novo

que encontraste o teu mundo

sem encontrares a tua terra

tu és um caminho sem regresso

pois não pode voltar o povo

que sempre foi do mar



Lisboa, 22 de Março de 2012

Carlos Vieira

                                      Georges Seurat – “A Corner of the Harbor of Honfleur”

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