I
esse barco
que lhe sai agora
pela boca fora
é outro insulto
um vómito
da mesma empresa
um novo negreiro
a mesma história sórdida
do mercado
do caminho das Índias
que lhe cresce nas entranhas
são outras receitas
do mesmo fado
as mesmas especiarias
e tecidos
reconheço-lhe
a genoa de barriga inchada
de nada
o mesmo tráfico
o mesmo escarro
tudo por fora de um país
esse suado milagre
de um punhado
de homens íntegros
por vezes sábios
dos que não iam nas correntes
de tantos que tantas vezes
das fraquezas se fizeram
valentes
II
cassaram
o rumo de um povo inteiro
desfeito
de mala feita
no imenso cais
onde nenhum sonho cresce
onde ninguém
já vem dizer adeus
sem o proverbial
timoneiro
sem nenhuma amarra
este é o povo
de um país onde anoitece
é de novo
esta recorrente
aventura
que esmorece
III
já ninguém parte
todos se vão embora
gente
deste naufrágio
que nos colheu em terra
ressequida
já só temos o mar
neste apeadeiro de vida
e por aqui ficamos à deriva
IV
os mastros
de bandeiras rasgadas
as praias
onde definham
e enferrujam
as âncoras
das memórias e das ideias
são agora infames gestos
ou poleiros de gaivota
os mastros
acusadores
V
da gávea
avistam-se as ruas
onde escorre gente triste
cansada quebrada
gente seca
e ratos e cobras
capitães em fuga
gente que se esconde
que se agasta
que se arrasta
por detrás da lua
e dos becos
VI
nas ondas dóceis
uma dor dormente
que cresce
no convés do coração
os cabos cruzam o destino
onde pendurado
seca um corpo
de uma desconfiada tristeza
de corda esticada
VII
à proa
vais ao leme
do amor e da raiva
pura e dura
descobres por momentos
ventos
e pela sonda
senda do amor
a tua fome antiga de beijos
que tinham a forma de peixes
e na explicação dos baixios
e do mar profundo
desconheces de novo
que encontraste o teu mundo
sem encontrares a tua terra
tu és um caminho sem regresso
pois não pode voltar o povo
que sempre foi do mar
Lisboa, 22 de Março de 2012
Carlos Vieira
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