o poema é janela e porta ou ângulo morto de esquina
varanda vespertina e inquieta e solidão habitável
rua deserta na sombra de um homem
rua deserta na sombra de um homem
levantar os muros e os poemas salpicados de sangue
do ricochete dos projécteis e da defesa das ideias
“graffitis” da liberdade e outras incivilidades
fazer betoneiras de versos e de cimento e tijolo a tijolo
poder edificar outro espaço e tempo a tiracolo
na resistência das construções clandestinas
fazer que pairem por instantes interjeições na grua
a morte da metáfora no acidente de trabalho
a encher de ruidoso silêncio os alicerces
ligar uma cirúrgica malha de estrofes e betão armado
depois sobre a laje dançar o incêndio de um tango
à volta do poema pilar e tronco que não cede
desenhar o caminho como quem observa um filho
que começa a atravessar o tráfego da vida
balbuciando a primeira palavra da poesia
depois deixar que fiquem bem secas as sílabas
e abandonar as rimas à solta no poema
inalar e beber as suas tintas
subir a pulso os andaimes e descer nas roldanas dos versos
no instável equilíbrio do sentido
ousar o golpe de asa
abrir a torneira e deixar que se liberte a inspiração
palavra a palavra ir moldando
a abóbada e a cisterna
ajustar a madeira de cofragens e adjectivos graves
de suor e de paciência bem escorados
bem tensa a subtileza do arco
grandes são as superfícies e altos os pés direitos
a poesia será desassombrada
cruzada de correntes de ar
segurar nas pedras rústicas e nas palavras e limpá-las
acariciá-las escolhendo a sua face mais tranquila
na evocação da dor dar-lhe a beleza possível
ficar debruçado no peitoril de cantaria de outros cantos
onde se pode erguer a persiana e o discurso amoroso
onde se esconde o olhar
lanço o texto como quem ergue uma ponte entre margens
e nos esticadores côncavos das figuras de estilo
acendem-se a obra de arte e os candeeiros
neste cálculo da resistência dos materiais aos tremores
de terra e à catástrofe dos sentimentos
de terra e à catástrofe dos sentimentos
o poema deve possuir nervos de aço
depois espalhar pela poesia pela casa pela cidade a terna mobília
das mesas e cadeiras e camas inúteis de gente com fome
por dentro e antes do amor
o poeta elabora as plantas onde sangra e cuida o seu coração
onde distingues a arquitectura dos mundos que constrói
em cada verso o jejum e o sonho de Afonso Domingues
Lisboa, 22 de Março de 2012
Carlos Vieira
“the dictator’s architect” Harold Davies
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