quarta-feira, 24 de agosto de 2016

O fiasco


que o fiasco
seja apenas o momento triste
de um reencontro
com a nossa frágil condição
e da beleza
que existe escondida
na perspetiva
Lisboa, 11 de Junho de 2016
Carlos Vieira

Um lince de papel


De súbito
um salto felino
dos caracteres dos jornais
numa breve
o reflexo de um avistamento
a distância em silêncio percorrida
surge-nos na densa mata
das notícias
ao mudar de página
e nela desaparece
entre imagens de destroços
de um morteiro na Síria
o fogo da sombra sarapintada
no lince da serra da Malcata
preenche de espanto
dos apartamentos
de animais domésticos
e homens mansos e dos outros
em vias de extinção
e devora a boa consciência
das manchetes
Lisboa, 11 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Ella Fitzgerald - Between The Devil & The Deep Blue Sea (Verve Records 1961)



I don't want you
But I hate to lose you
You've got me in between
The devil and the deep blue sea
I forgive you
'Cause I can't forget you
You've got me in between
The devil and the deep blue sea
I ought to cross you off my list
But when you come knocking at my door
Fate seems to give my heart a twist
And I come running back for more
I should hate you
But I guess I love you
You've got me in between
The devil and the deep blue sea
I ought to cross you off my list
But when you come knocking at my door
Fate seems to give my heart a twist
And I come running back for more
I should hate you
But I guess I love you
You've got me in between
The devil and the deep blue sea






O mar dos meus olhos


Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes...
e calma
Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6/11/1919 – Lisboa, 2/7/2004)

Memória dos amores de Verão


O cerzir do véu
do olhar
temperado
por um solfejo
de espuma
essa fragância
da maresia
que se escondia
no sabor
das partículas
do seu corpo
eram também
a breve memória
da resplandecente
constelação
de um amor inominável
e fecundo

do marejar nas noites
de insónia
a infinita solidão
lançadas ao mar
as cinzas
do seu mundo
Lisboa, 10 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Nu Azul - Picasso

Poema para o mar interior


Dentro de mim
um mar encrespado
uma iminência de naufrágio
do navio uma pungência
não te vou acordar
agora que temos a vida
por um fio
não possas tu
confundir o amor
com esta nunca resolvida
urgência de partir
uma espécie de música
de oceano dentro de nós
aprisionado
manancial de vida
feita de outras tantas mortes.
Lisboa, 10 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Pintura de Maelo Tarkin

La Poesia


Provérbio japonês


Federico Garcia Lorca II


Federico Garcia Lorca


Sinfonia da insónia


Sentavas-te
ao meu lado
eu sentia
a brisa que afiava
as arestas
do teu silêncio
as palavras
parcimoniosas
desciam devagar
para o lençol
sopesadas
como bichos
maliciosos
ou batiam contra
a face da tristeza
golpeando-a
e desafiavam
janelas de música
sobre mares interiores
de par em par
desvairadas
na curva côncava
do teu olhar
deambulavam
pássaros
vislumbrava-se já
estâmpidos de cor
finais de festas
em êxtase
no recôndito
das noites
anunciava-se
um início
de uma guerra santa
e a chegada da viagem
o vício estenuante
da tua pele
a enclausurar
girândolas de luz
segregando
o sabor austral
e extraordinário
do teu corpo
a entregar-se
derrubando
as últimas muralha
do quarto
do nosso longo exílio
as armadilhas
de preencher o vazio
ferindo a melancolia
estremecendo
a estralejar de prazer
no vértice do futuro
de um novo dia
que irrompe
até se abater
sobre nós
um sono
de uma leveza
inevitável
em equilibrio
instável
com o peso
do perdão
e a grandeza
do esquecimento.
Lisbo, 7 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Gostava de me abrigar

Gostava de me abrigar
à sombra
das tuas mãos hábeis
e debaixo delas
ouvir teus longos dedos 
simultaneamente
a tamborilar
acompanhando
a chuva a cair a cair
desalmadamente
e a partir
desse momento infeliz
de amar em excesso
ser a um tempo
possesso e lúcido
e inventar
a ilha a emergir
a emergir
num país
como se fosses
receber de novo
um ramo de flores
e de espinhos
e lume
e as tuas mãos luminosas
de Primavera
a inventarem
outra vez
o veneno
e o perfume.
Lisboa, 6 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Escultura de autor desconhecido

Leonard Cohen ~ You Got Me Singing


Ladrões de Bicicletas (Tradução)


segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Thomas Moore

Um homem derrubado por um adversário pode levantar-se outra vez. Um homem derrubado pela conformidade fica para sempre no chão.
Thomas Moore

À deriva na água doce


Sento-me
à popa deste navio
cansado de mim mesmo
e deixo o olhar ir para além
daquela esteira de espuma
e de esquecimento
pela bifurcação das ilhas
para onde a corrente
arrasta o pensamento
pairo com aquela gaivota
sobre o silêncio impenetrável
da floresta nórdica
ao longe a distante Estocolmo
observa indiferente
a confrangedora
falta de perícia e rumo
do navegador
em espelho de água doce
e de vida tão pouco exigente
perante a dor dos espoliados
e o tão pouco profundo
amor pelos outros
tanto abraço de afogados
e náufragos à deriva
que se querem salvar
a si próprios ou de si mesmos
ou deste mundo.
Estocolmo, 2 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Fotografia de autor desconhecido

Poema da tua ausência

Poema da tua ausência
Vejo-te
de costas
o mar de turquesa 
ao fundo
pudesse ser eu
o grito
e a onda
e a gaivota
contra o teu silêncio
a rajada de vento
o ranger do mastro
e a vela
que te fizesse
voltar ao mundo
nem que não fosse
o meu
se os teus beijos
pudessem ter sido
a espuma
que agora são carícia
nos pés descalços
e o perfume da maresia
te despisse ainda
o véu da ausência.
Lisboa, 29 de Maio de 2016
Carlos Vieira


Pintura de Will Barnet

Friedrich Nietzsche

Nos indivíduos, a insanidade é rara; mas nos grupos, partidos, nações e épocas, é a norma;
Friedrich Nietzsche

Inventário de Lugares Propícios ao Amor (Angel Gonzalez


São poucos.
A primavera tem muito prestígio, mas
é melhor o verão.
E também essas frestas que o outono
forma quando interfere com os domingos
em algumas cidades
já de si amarelas como bananas.
O inverno elimina muitos sítios:
gonzos de portas orientadas a norte,
margens de rios,
bancos de jardins.
Os contrafortes exteriores
das velhas igrejas
deixam às vezes vãos
a utilizar, ainda que a neve caia.
Mas desenganemo-nos: as baixas
temperaturas e os ventos húmidos
dificultam tudo.
As leis, além do mais, proíbem
as carícias (à excepção
de determinadas zonas epidérmicas
sem qualquer interesse -
em crianças, cães e outros animais)
e "não tocar, perigo de ignomínia"
pode ler-se em milhares de olhares.
Para onde fugir, então?
Por todo o lado olhos de viés,
córneas torturadas,
implacáveis pupilas,
retinas reticentes,
vigiam, desconfiam, ameaçam.
Resta talvez o recurso de andar sozinho,
de esvaziar a alma de ternura
e enchê-la de fastio e indiferença,

Indisciplina (Cesar Pavese)


O bêbado deixa para trás as casas estupefactas.
Nem todos se aventuram a passear bêbados
à luz do sol. Atravessa tranquilo a rua,
e poderia entrar pelas paredes dentro, pois as paredes estão ali.
Só os cães deambulam assim, mas um cão pára
sempre que sente uma cadela e cheira-a cuidadosamente.
O bêbado não vê ninguém, nem mesmo as mulheres.
Na rua, as pessoas que se perturbam ao vê-lo, não se riem
e gostariam que não estivesse ali o bêbado, mas os muitos que tropeçam
ao segui-lo com os olhos voltam a olhar em frente
com uma praga. Passado que foi o bêbado,
toda a rua se move mais lentamente
à luz do sol. E se uma pessoa começa
a correr, é alguém que não o bêbado.
Os outros olham, sem distinguir, o céu e as casas
que nunca deixaram de estar ali, ainda que ninguém as veja.
O bêbado não vê as casas nem o céu,
mas sabe que estão ali, pois num passo pouco firme percorre um espaço
tão claro como as franjas do céu. As pessoas, embaraçadas,
deixam de compreender o que fazem ali as casas,
e as mulheres já não olham para os homens. Têm
todos, dir-se-ia, medo de que de repente a voz
rouca se ponha a cantar e os persiga pelo ar.
Cada casa tem uma porta, mas não vale a pena entrar.
O bêbado não canta, mas mete por uma rua
onde o único obstáculo é o ar. Felizmente
não vai dar ao mar, pois o bêbado,
caminhando tranquilo, entraria também no mar
e, deixando de se ver, prosseguiria no fundo o mesmo caminho.
Cá fora, a luz seria sempre a mesma.

Florestas antecedem as civilizações...

Florestas antecedem as civilizações, desertos sucedem-lhe!

Existencialism

Existentialism
WOODY ALLEN: That's quite a lovely Jackson Pollock, isn't it?
GIRL IN MUSEUM: Yes it is.
WOODY ALLEN: What does it say to you?
GIRL IN MUSEUM: It restates the negativeness of the universe, the hideous lonely emptiness of existence, nothingness, the predicament of man forced to live in a barren, godless eternity, like a tiny flame flickering in an immense void, with nothing but waste, horror, and degradation, forming a useless bleak straightjacket in a black absurd cosmos.
WOODY ALLEN: What are you doing Saturday night?
GIRL IN MUSEUM: Committing suicide.
WOODY ALLEN: What about Friday night?
GIRL IN MUSEUM: [leaves silently]
"Play It Again, Sam", Paramount Pictures, 1972;




image of "The Scream," 1893, by Edvard Munch

Douglas Coupland


Os bois...

Os bois
prosseguiam
vagarosamente os dois
sem saber
e sem olhar para trás
rasgavam a terra
e naquela nesga
exponham os vermes
seduziam os pássaros
animavam as sementes
hoje não são mais
que memórias ancestrais
na sua mansa bestialidade
dinossauros do futuro
Lisboa, 25 de Maio de 2016
Carlos Vieira


Lorraine Semesh . Ctyscapes







Lorraine Semesh . Ctyscapes

Teresa Knight The Boat








Teresa Knight -The Boat

Noites de breu à procura III


No princípio
eram os pássaros
de fogo
emboscados
nos misteriosos
interstícios
a latejar
na tua pele
numa ânsia
de vulcão
num secreto
prazer
a fervilhar
armando-me
ciladas
nessa noite
as explosões
e as réplicas
do teu ser inteiro
inventaram
em mim
múltiplas
madrugadas
e tuas unhas
afiadas
a sulcarem
o meu dorso
riscando
caligráficas
as assinaturas
das constelações
em sangue e em luz
foi então
que nos perfumados
promontórios
do teu corpo
saboreei
o sal e o mel
do êxtase
enquanto a lança
incandescente
ía em busca
do coração
e acendia
divina a chama
e depois
do amplexo final
regressaste
àquela solidão
olímpica
e sem sexo
de ternura
asséptica.
Lisboa, 22 de Maio de 2016
Carlos Vieira


Nu Azul III - Henri Matisse

Noites de breu à procura II


Jogamos toda a noite à cabra-cega
na dupla escuridão que habitamos
na câmara escura da nossa dupla solidão
desfiando a teia e a luz ténue e bruxuleante
que nos tolhe e incendeia e vai decompondo
com o ácido da nossa paixão desesperada
os negativos da nossa eterna procura.
Lisboa, 21 de Maio de 2016
Carlos Vieira

VOZES


Vozes queridas, vozes ideais
daqueles que morreram ou daqueles que estão
perdidos para nós, como se mortos.
Eles nos falam em sonho,algumas vezes;
outras vezes, em pensamento as escutamos.
E, quando soam, por um instante eis que retornam
os sons da poesia primeva em nossa vida,
qual música distante que se perde noite afora.
Konstantinos Kavafis
Tradução: José Paulo Paes

O HAVER


Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
- Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...
Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.
Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.
Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.
Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história.
Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e o mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.
Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.
Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.
Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante
E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.
Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.
Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...
Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.
15/04/1962
Vinicius de Moraes
A poesia acima foi extraída do livro "Jardim Noturno - Poemas Inéditos", Companhia das Letras - São Paulo, 1993, pág. 17.

Cai a lua, caem as plêiades ...

Cai a lua, caem as plêiades e
É meia-noite, o tempo passa e
Eu só, aqui deitada, desejante.
Safo


Norah Jones - What Am I To You?



Madrigal de um tímido


I
emboscado no canavial
estremece ao ver 
os pés descalços
que agitam
as águas do açude
irão despertar
nas profundezas
da alma
imprevisíveis monstros
II
no salgueiro
há um rouxinol aceso
uma boga beija
os lábios dela
no espelho de água
refletidos
apenas ele desconhece
os segredos
que se escondem
na sua boca
III
uma rã descansa
sobre o veludo verde
do nenúfar
ela entre os dentes
trinca uma flor silvestre
só quem pode
aproximar-se
pode distinguir
o alcance
dos seus perfumes
e sossegar
IV
entretanto a rã
pressentindo
o agitado coração
no canavial
coaxando
atira-se à água
como quem se despede
da vida
e a rapariga
por nada começa
a trautear
uma canção
de encantar
Lisboa, 19 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Que ilação podemos retirar...

que ilação podemos retirar
de um cão rafeiro e vadio
que passa por nós a correr?
Lisboa, 16 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Garatujar

um dia
hei-de voltar
aos rabiscos
e arabescos
a essa frugalidade
de garatujar
o mais incipiente
conhecimento
do mundo
Lisboa, 16 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Poema a propósito do equilibrio inútil


Busco o incessante
equilíbrio
a emoção
sobre a prancha.
Navego a onda
que se desenrola
abraço o seu pescoço
de corola e de mulher
ausente.
Aspiro a fragrância
sou engolido
pela paz profunda
e por marítima revolta.
Percorro os verdes
e os azuis vários
a líquida transparência
e o caos nos sonhos
de sereia.
Triunfo sobre a espuma
que beija minha pele
cravejada de escamas
do ouro da praia.
Meu corpo cuspido
pelo oceano
enfeitado de algas
adquiriu o esplendor
do sal devastado
de solidão.
Lisboa, 16 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Imagem de autor desconhecido

domingo, 21 de agosto de 2016

Miles Davis & John Coltrane - Kind of blue


Árvore do fruto permitido


Uma a uma te desfolho
árvore do esquecimento
sem saber do teu nome
sei de ti no sangue incendiado
onde te afasto te escolho
abraço-te no pensamento
que me alegra e consome
és a sombra e a fome
que me consola e me cerca
mulher que me desperta
e a seguir me apunhala.
Lisboa, 15 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Que mistério quis desembrulhar

que mistério quis desembrulhar
quando comprei o teu olhar tão doce
com três rebuçados
Lisboa, 15 de Maio de 2016...
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Pedras com sonhos de curta duração


Chegou ao lago
escolheu uma pequena pedra
fez-lhe um afago
memória esguia e abaulada
que colocou
entre o indicador e o polegar
fez o gesto antigo
de infância
deu-lhe um seco impulso
de chicote
ouviu-se o eco no ar
do pequeno seixo
a palpitar
sobrevoando
ou a chapinhar
mais à frente
ali fez meia dúzia
de círculos
no espelho de água
por momentos levemente
encrespado
o pássaro pedra
após o voo rasante
por fim exausto
mergulhou profundamente
voltando
à sua vivência mineral
agora em águas profundas
na sua mão
ficou uma leve
sensação de vazio
um pequeno resquício
de lama
e sopro de vida
que partiu.
Lisboa, 15 de Maio de 2016
Carlos Vieira


Tempo quase morto


Está um tempo de trovoada
de interlúdio
de antecâmara
de véspera de água
de orquestra e respirações
tempo em suspenso no início
da submarina sinfonia
de regresso a um silêncio
de insectos a adivinharem emboscadas
tempo de clarividência de moribundo
de nós na garganta de um amor que se desfaz
que se extinguiu na incandescência
da palavra inventada para aquele momento
tempo do estertor nas entranhas de um mundo
que certamente se vai desmoronando
segundo a segundo
enganamo-nos nesta tépida solidão
de cada um sermos
ao fim e ao cabo únicos
e ao mesmo tempo todos
deslocados
tempo de sorrisos
e melancolias e penumbras
de alguns sobreavisos e de relâmpagos
cintilando nas almas e corações
construímos um tempo do conforto
servindo a Deus e ao Diabo.
Lisboa, 15 de Maio de 2016
Carlos Vieira

As flores estão mais belas no jardim...

as flores estão mais belas no jardim
será porque dantes passava por elas
e agora elas passam por mim?
Lisboa, 13 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Uma andorinha...

uma andorinha na manhã
dá cambalhotas de asas molhadas
onde irá cair?
Loures, 12 de Maio de 2014
Carlos Vieira

Fado Loucura - Ana Moura


Delação


Enquanto dou o despacho
vespertino
absolutamente neutro
“Visto.
Prossiga.”
desce pela chaminé
da lareira
no arrulhar da rola
um incandescente
segredo
a caneta sucumbe
sob a secretária
do aparo
aspiro o aroma
familiar
de tinta permanente
de um azul inquisidor
no murmúrio
menos abundante
da chuva de primavera
sou um espectador cego
perante o silencioso
desabrochar
glorioso da flor
e enlouquece-me
na seiva
o seu secreto rumor.
Loures, 13 de Maio de 2016
Carlos Vieira

O vazio desenhava desde sempre


O vazio desenhava desde sempre a forma do teu rosto
Todas as coisas serviram para nos ensinar
ardente perfeição da tua ausência
Sophia de Mello Breyner Andresen

Napalm


Hoje pensei em napalm
naqueles campos de infância
de búfalos e de gazelas
que há muitos anos se cobriram
de fogo e de cinza
e penso naqueles que hoje
ainda padecem de insónia
e das queimaduras de 1º grau
e todos os que ficaram de vigília
a zelar por um inútil rescaldo
reacenderam-se do nada
no pensamento.
Lisboa, 11 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Diário do discreto cidadão


Fazia tudo
com muita reserva
não gostava de dar nas vistas
e tal era muitas vezes confundido com timidez
no entanto a sua vida sempre se alicerçou
na ousadia e na coragem silenciosa
no gesto subtil de misericórdia e não na astúcia
não no ardil sibilino mas na delicada atenção
nessa discreta generosidade
sopesava que fosse mínima a presença
que a sua sombra não o denunciasse
inventava a ausência em cada passo
era meticuloso e não descuidado
sem pisar ninguém deixava que a sua palavra
se espraiasse luminosa como o ar
que se respira com ela criava abrigos
para os que fugiam das tempestades
acendendo um farol de rara lucidez
sem que se pusesse em bicos de pés
do seu olhar deprendia-se uma alegria contagiante
e uma tábua de salvação
adivinhava-se uma serenidade nunca resignada
com uma pincelada de tristeza solidária
saía com a mesma discrição
de quem entrara e sem deixar rasto
que se notasse ou vazio inquietante
apenas um perfume de inequívoco bom senso
ninguém se apercebera que se quebrara
a completetude do círculo ou que a corrente de ar
pudesse perturbar aquela consertação
das solidões e vacuidade ali reunidas.
Lisboa, 8 de Maio de 2016
Carlos Vieira


Homem em Azul, Pablo Picasso

Aguarda no carro...

Aguarda no carro
alguém que tarda
a chuva cai inclemente
é como se tivesse
dentro de um piano
onde a música
no exterior
é de água e metal
de vidro e isolamento
e uma flor ao volante
Lisboa, 7 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Desculpe mas preciso de respirar


desculpe
mas esta é uma zona de não fumadores
diz o barman
com o olho azul imperturbável
a boiar no gin
enquanto converso com um amigo meu
que há muito não vejo
e que decorava alegremente
o ambiente com argolas de fumo
e recordava-me vagos sofás
de veludo vermelho
desculpe
mas nesta zona não pode falar
pode-se ciciar
é o mais longe que se pode ir
e os vestidos de noite das senhoras
podem varrer o chão
num roçagar mais ou menos
interrompido
alguém pode deitar o lixo
e a vã humanidade
para debaixo da carpete
para longe de si
desculpe
pode escrevinhar um verso
com rima com ritmo
com o peso que lhe permita o voo
descontando a intensidade da corrente de ar
em que se perceba que queimou as pestanas
para o levantar
a cinquenta pés de altura
para chegar aqui
não se pode sacar de um poema
de versos brancos
e pé quebrado
com um toque modernaço
e desatar a incomodar
os nossos sofisticados clientes
desculpe
mas há espaços próprios para poesia
e momentos
por exemplo nesta zona é proibida
não rima
com um belo Cohiba
não se podemos dar a esses luxos
de demonstrações excessivas
de sensibilidade
a secretas e subversivas alegrias
não damos tréguas ao absurdo e inexplicável
e temos uma política de contingência
e condicionamento
de evitar o contágio dos instintos
desculpe
mas aqui no nosso clube
abominamos
o que é controverso
e não contemporizamos
com discussões serôdias ou de detalhes
estamos imbuidos
de uma curiosidade tranquila
funcionamos em equipa
com incentivos
estamos todos no mesmo navio
a remar todos para o mesmo lado
e quem não é por nós
é contra nós
desculpe
mas não pode entrar de ténis
são normas da casa
o saber estar e a contenção
o beber de uma forma moderada
a apresentação
conta muito para nós
saber comportar-se
não toleramos
o livre arbítrio
desculpe
optar por esse abordagem
tão direta e linear
sabemos
que é um pouco perverso
o entendimento
mas a eficácia
o não perder tempo
a máxima racionalização de recursos
impõe-nos
um certo distanciamento
perante algumas minudências
de personalidade
e de ocupação de território
desculpe
mas aqui não é permitido o beijo
nem outras manifestações de afeto
não é próprio
este é um local de respeito
e de simpatia velada
e subtilezas
temos que lhe pedir
que se contenha
ou que abandone
o estabelecimento
desculpe
mas não pode tirar fotografia
nem flashs
preservamos o ambiente muito peculiar
o controlo científico
para que a exposição
apresente as melhores condições à arte
de que nos orgulhamos mostrar
preservamos
que os visitantes não fiquem afetados
não se intimidem
nem fiquem encadeados
a razão está acima de tudo
desculpe
mas o contexto era muito adverso
pelo que aí pode encontrar
a explicação cabal
não podemos fazer mais nada
não nos estamos a furtar
ás nossas responsabilidades
gostaríamos muito de poder satisfazê-lo
esse não é esse o nosso “core"
a nossa área de negócio
Lisboa, 3 de Maio de 2016
Carlos Vieira