sexta-feira, 24 de maio de 2013
Reminiscência ou déjà-vu
Senta-se
numa dobra cega da tarde
à espera da morte
na sua torre
um sino
interrompe-lhe
a linha de água da memória
o tempo de bronze
e do medo
espantam-se
duas aves pernaltas
que pela calada
foram levando o horizonte
ouve
entre murmúrios
depois de ter morrido
o sino
que vergasta a natureza
quase morta de tédio.
Lisboa, 24 de Maio de 2013
Carlos Vieira
segunda-feira, 20 de maio de 2013
Paisagens interiores
Navega uma estrela
de fogo posto
num espelho azul
em labaredas
nesse lago impávido
a lágrima cai
tolda-lhe o sul
sulca-lhe o rosto
decantando
a luz do sal
apaga-se o olhar
âncora no tempo
no gume da pedra
os sinais de fumo
na esquina do vento
paciente a espera
de páginas de espuma
num silêncio adiado
do recôndito país
de inflamados rios
todos conspiram
secretamente
num lume brando
em suores frios
num calmo estupor
no ténue ânimo
naufrágio interior
uma vela trémula
o coração alberga
a lâmina tempera
liberta um balão
descuidado sonho
ou gesto pueril
assim nos devolve
ao acaso de cinzas
num céu de estanho
cruzamos o deserto
uma noite
uma noite
de profícua solidão.
Lisboa, 20 de Maio de 2013
Carlos Vieira
sábado, 18 de maio de 2013
Constelação
neste recanto
no beco do tempo
surpreendo
o fogo efémero
dos teus pés descalços
a pousar
o chão de cortiça macia
foi ali que me debrucei
na tua febre
e poderia beijar-te
o teu sono
e a seguir entregar-me
pôr fim
ao teu infinito exílio
relembro-te
luminosa ou tutelar
o manto diáfano
de um teu olhar
que me descobriu
no palco
onde cresci
na mentira do mundo
e de mim
verdade nua
e etérea
ora furtando-se
entre dedos
ora de unhas rasgando
a carne
esconjurando medos
reabro
a gaveta
que range
no vazio de dantes
onde indagavas
a ternura
e também o desejo
intrépido
um colar de pérolas
agora tão frio
pendurado na memória
do teu pescoço
de âmbar
descortino-te
no recato da espera
a tua mão
destemida viajando
na penumbra
do armário e o toque
do tecido
que era precisamente
antes da seda
da tua pele
dispo-te de olhos
fechados
enquanto repousa
na cama desfeita
apenas o rascunho
do poema
estás algures
ou em toda a parte
única explicação
porque se prolonga
a minha sede
até ao limite reflexo
exasperado
da tua auréola
estou refém
do teu esquecimento
amarrado
à constante assiduidade
dos pássaros
furtivos
a casa respira
depois que desenho
de cor
os teus lábios
molhados
sublinhando o gosto
de tuas palavras exíguas
que me levaram
de regresso
em perspectiva
à sofreguidão
do teu corpo
desgovernado
e à máscara de prazer
inaudito
do teu rosto
fragmentos
do teu perfume
resvalam
na melancolia dos objectos
quotidianos
com que me deixaste
cercado
e onde tropeço
minha doméstica
e mais nobre
causa
espelho diário
da tragédia
canto e abismo
e ânsia
de voando
só assim poder abraçar-te
íntegra e inteira
serena e sentada
estás tão longe
nesta cadeira de balouço
Lisboa, 18 de Maio de 2013
Carlos Vieira
“Sleeping
woman (Meditation)” de Pablo Picasso
segunda-feira, 13 de maio de 2013
Vidas estreitas III
O quarto e a cama
lençóis de linho
e silêncio de cal
fotogramas
estilhaços do céu
toda a via láctea
onde contava sonhos
e nódulos
da madeira de pinho
que faziam ora de estrelas
ora de lobos
no coração desta galáxia
onde um repentino
estertor da porta pintada
a tinta de água
fazia de represa
de toda a angústia
na iminência
da declaração de guerra
aberta
pela censura das tuas mãos
sempre delicadas
onde germinavam frágeis
as flores
de tantos pensamentos
numa pétala
num fugaz aroma
vencia-se a distância
e podia ganhar-se a paz
ou crepitar
o fogo no inverno
quando alastrando no peito
tinhas a medida
do mundo todo
que cabia numa só palavra
trânsfuga dos teus lábios
onde adormecia
e por vezes era a gota
rumor de um sonho
que extravasava.
Lisboa, 13 de Maio de 2013
Carlos Vieira
quinta-feira, 9 de maio de 2013
Estreito de Ormuz
I
Estreito
de qualquer viagem
cujo rumo
num momento
nos confronta
com o homem imperfeito
esses deuses com defeito
nas tréguas
lambendo as feridas
feitas a colher pérolas
da ilusão
do livre pensamento
contra recifes
os remoinhos e as ideias
e todas as correntes
ávidos de especiarias
ainda assim
destilado da humana espuma
dos dias
ergue-se o manuscrito
de uma desconhecida
coragem
um último testamento
numa folha de papel cavalinho
por cima das vagas
onde se escreve a pulso
se ouvem os gritos
de tanto condenado
às tormentas da vida
enquanto ao longe
na miragem
das colinas contíguas
a brisa traz-nos
o canto dos pastores
e aromas
de uma antiga Pérsia
Lisboa, 9 de Maio de 2013
Carlos Vieira
domingo, 5 de maio de 2013
À timidez dos gestos na penumbra
I
a noite
nasce na febre das sementes
um fruto
de coração franco e aberto
II
na orla breve
do fósforo bruxuleante
uma forca de luz inquisidora
ou um foco da ternura que anoitece
III
por uma fresta
esgueira-se a lua insolente
acorda a fera
a carícia nocturna em quarto crescente
IV
escuro como breu
um estertor no seio da floresta
a fatal faísca
ateou a tragédia de um fogo interior
V
a fénix renascida
das cinzas
no trilho da insónia
adiciona ao silêncio a solidão fecunda
VI
a esfera imóvel a contraluz
forja de cócoras uma figura
o planeta segue o rumo das trevas
em câmara lenta sem coragem esconde-se um homem
VII
a frescura de uma abóbada de folhas
a luz tépida da clorofila
uma frase lapidar
o ocaso de uma ideia
VIII
a fibra e a sombra de um princípio
no fim do túnel a claridade
a beleza do instante
que antecede o ataque do felino
IX
uma fenda secreta no muro
a farpa do tempo
a clarividência dos peixes
por cima do mar devorando as nuvens
X
o silêncio putrefacto
de tantas cores e frutos sonhados
o regresso à fertilidade
da fé nas palavras agridoces
Lisboa, 5 de Maio de 2013
Carlos Vieira
sábado, 4 de maio de 2013
Voo em flecha e queda em espiral
Flecha
flor de vertigem
hélice de espanto.
Alforria
do arco do tempo
na elipse de um sonho
de mão firme.
Vai seu sibilino canto
serpenteando
premente
viagem sem palavras.
Escutando
no seu murmúrio
o restolhar da memória urgente
no fim da floresta.
Ali
desferes o golpe fulminante
na maçã
de um louco amor.
Ali
tombou aniquilada
a ilusão dos pássaros
do livre pensamento.
Foi ao encontro
do esperanto da morte
agora
única expressão da liberdade.
Nessa fresta
apenas franqueada
ao eco da última palavra
que se soltou.
Na queda em espiral
reinventaste
o voo eterno
no espírito cego da flecha.
Carlos Vieira
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