sábado, 7 de dezembro de 2013

Pequenos feitos



Lembro-me que cavalgávamos as encostas, de sabermos todas as árvores de fruto pelo caminho, de dançarmos com as videiras e mergulharmos no Pego do Gaivoto, de “armarmos aos pássaros” nas Lameirinhas, da primeira única vez que vi e fui mordido por uma sanguessuga, naquele tempo e idade tenho registado essa aventura incomensurável, enquanto apanhávamos caracóis para dar aos patos.
Na minha memória tenho bem presentes, as abelhas saindo, repentinamente, de buracos do tijolo do terraço da tua casa e aqueles pequenos seres atacarem furiosas, os pequenos seres que nós éramos, depois o brilho do sol nas lâminas frias das facas de cozinha, a aplacarem a dor do ferrão das suas picadas, sinais inequívocos das suas investidas bem-sucedidas.
Sei da tua pasteleira antiga somente com os aros, do chinfrim que fazia pelo meio da aldeia, sem travões, naquela altura passava ali um carro de hora a hora, quando acabámos os dois e a bicicleta na lagoa e sei da enorme sova que levei, por ter assim sujado o fato de domingo.
Recordaste dos nossos ataques à escola primária e de nos apoderarmos dos cadernos arquivados dos alunos, troféus libertados do sistema, vitória sobre as reguadas da professora, no sótão da minha casa, recordo-me daquela caligrafia dos primeiros tempos e nunca me esqueci do aroma da tinta permanente, equilibrando-se periclitante nas linhas paralelas das folhas e dos números aprisionados nos cadernos quadriculados.
Lembras-te daquelas noites, em que distribuíamos o caldo de morcela aos vizinhos, uma mão no recipiente, outra para apanharmos pirilampos, a cabeça no céu estrelado e as fintas e saltos às poças de água.
Sei que um dia, tu, as tuas irmãs e toda a família desapareceram, rumo a uma aventura maior e apenas fiquei com todas estas memórias, recordações como se fossem jardins suspensos, de uma qualquer Babilónia, onde nas noites agora mais longas da aldeia, a todos vos revia, imaginando.
Certo é que as aventuras deixaram de ser as mesmas e tu foste talvez naquele tempo, o irmão mais velho, para junto de quem o meu pai foi meses mais tarde, tu agora tinhas encontrado nas trincheiras abandonadas da segunda guerra mundial, outras brincadeiras que me irias contar quando regressasses, no próximo Verão.
Já me esquecia que hoje fazes anos e depois de tantos anos meu amigo e primo Artur, não há maior alegria que podermos e termos tantos feitos para contar.
Lisboa, 7 de Dezembro de 2013

Carlos Vieira

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