domingo, 21 de agosto de 2016

Inexplicável morte violenta


Ainda se sentou
na escada
que dava acesso
à varanda
do primeiro andar
por ali ficou
a mão esquerda
perdida do corrimão
e da tinta lascada
por tanta intempérie
que queimara
a madeira de pinho
nas pétalas de sangue
no coração a adivinhar
os borbotões no peito
esteve pouco tempo
sozinho
antes que a morte
o acompanhasse
pera além
do horror do vizinho
e contudo
uma eternidade
esculpida no rosto
por instantes
ainda regressou
ao espanto e ao tiro
á queima roupa
a tinir-lhe nos ouvidos
e a pólvora nas narinas
e um silêncio húmido
e o tal caleidoscópio
a toda volta
se o investigador
agora se debatia
com descortinar
do móbil do crime
então que dizer
dele próprio
sua vítima
e os mortos
não falam.
Lisboa, 2 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Contumaz


Vivia nesse estado permanente de contumácia
de amar desmesuradamente
faltando a todas as citações e julgamentos.
Lisboa, 1 de maio de 2016
Carlos Vieira

A Solidão é Sempre Fundamento da Liberdade

A Solidão é Sempre Fundamento da Liberdade
A solidão é sempre fundamento
da liberdade. Mas também do espaço
por onde se desenvolve o alargar do tempo 
à volta da atenção estrita do acto.
Húmus, e alma, é a solidão. E vento,
quando da imóvel solenidade clama
o mudo susto do grito, ainda suspenso
do nome que vai ser sua prisão pensada.
A menos que esse nome seja estremecimento
— fruto de solidão compenetrada
que, por dentro da sombra, nomeia o movimento
de cada corpo entrando por sua luz sagrada.
Fernando Echevarría, in Sobre os Mortos

Não sei como dizer-te


Não sei como dizer-te que minha voz te procura e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta. Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos se enchem de um brilho precioso e estremeces como um pensamento chegado. Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado pelo pressentir de um tempo distante, e na terra crescida os homens entoam a vindima - eu não sei como dizer-te que cem ideias, dentro de mim te procuram.
Quando as
folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a
primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios,
sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milgares
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
que te procuram.
*Herberto Helder

Felicidade

"Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, 
guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol."

Fernando Pessoa

Não Deixeis um Grande Amor


Aos poucos apercebi-me do modo
desolado incerto quase eventual
com que morava em minha casa
assim ele habitou cidades
desprovidas
ou os portos levantinos a que
se ligava apenas por saber
que nada ali o esperava
assim se reteve nos campos
dos ciganos sem nunca conseguir
ser um deles:
nas suas rixas insanas
nas danças de navalhas
na arte de domar a dor
chegou a ser o melhor
mas era ainda a criança perdida
que protesta inocência
dentro do escuro
não será por muito tempo
assim eu pensava
e pelas falésias já a solidão
dele vinha
não será por muito tempo
assim eu pensava
mas ele sorria e uma a uma
as evidencias negava
por isso vos digo
não deixeis o vosso grande amor
refém dos mal-entendidos
do mundo
José Tolentino Mendonça, in Longe não Sabia

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Relatório de observação no sopé 1


as nuvens eram brancas
assomam nos contrafortes
e rastejam
pelas encostas poente
da serra
são um bom augúrio
nas vozes dos velhos anciãos
ecoando de antepassados
escuta-se da alcateia
os uivos tão próximo
e tão raros para a aldeia
como a sua fome
e a sua falta de presas
Serra da Estrela, Abril de 2015
Carlos Vieira

Volta


Volta outras vezes e domina-me,
frêmito amado, volta outras vezes e domina-me –
quando a memória do corpo despertar,
quando ao sangue retornar o desejo de outrora
e os lábios e a pele lembrarem e as mãos
sentirem-se como que tocadas de novo.
Volta outras vezes e domina-me, quando a noite
fizer com que os lábios e a pele se lembrem.
Konstantinos Kaváfis
(In: PAES, José Paulo. (org.: seleção, tradução direta do grego, prefácio, textos críticos e notas). Poesia moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986).

Lá fora...

lá fora
uma algazarra
ou dentro de mim
não sei
fui saltar ao eixo
e jogar à apanhada
no recreio da escola
só esse intervalo
me garante
a lucidez das palavras
e a certeza das contas
Lisboa, 29 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Um dia de férias comigo mesmo


Meti um dia de férias
e não sei porque o meti
e a quem interessa este assunto afinal?
um funcionário burocrata
manga de alpaca
que faz um intervalo no despacho
um átomo às voltas na galáxia
acontece
que não tinha nada de especial
nada pendente
não foi porque estava muito cansado
nem sei se já nasci assim
o que é um facto
é que estou cada vez mais cansado
preciso tirar férias
deste meu mundo hipotecado
não que alguém tenha culpa
tenho de tirar férias da minha culpa
das noites se confundirem com os dias
chegou momento em que contabilizamos
aquilo que deixamos por fazer
tanta coisa
sempre tive dificuldade em estabelecer prioridades
primeiro porque penso que tudo é prioritário
depois porque desvalorizo ou menosprezo
e tanta coisa se acumula
vivemos aquilo
que tanta gente considera muito importante
e nós onde nos perdemos de nós?
sento-me aqui
à espera que me apareça uma ideia
que venha ter comigo
como aqueles lavradores de pelo macio e tão dóceis
que vem lamber as mãos dos donos
estranho ocaso neste dia de férias
não me apetece ler
como costume
livros esquecidos na última prateleira da estante
e que um dia jurei ler
ouvir música clássica
nem ver um filme “noir” dos anos cinquenta
nem passear ou ir a um museu
essa coisas para as quais a normalidade nos impele
hoje não estou no mercado
e eu não sou eu
estou hoje disponível para essa coisas
classificadas de desinteressantes
gosto deste mundo
que vive na sombra
nos bastidores
onde apenas nós podemos entrar
entre o sofá e o nada
existe aquela almofada caída
e uma razoável falta de chá
vai ficando lassa essa corda que vibrava
e que dava outra emoção ao gesto
e um brilho único a um olhar
tudo enferruja ou se estraga
perante as intempéries e a falta de uso
hoje longinquamente uma vozes
na rádio sintonizada
a dizerem que gostam mais de bolos que de sexo
e dos tolos e dos fracos não reza a história
não tenho nenhum animal
no meu quotidiano
só a minha máquina de secar roupa
tem um estranho latido
qua acaba num ruído infernal
interpela-me perante a minha incapacidade
desses pequenos trabalhos
de reparação doméstica
de reparação de mim e dos outros
apenas consigo mudar um fusível
e usar uma chave e distinguir
um parafuso com cabeça de estrela
nunca fui bom de mão
que merda esta minha lassidão
de estar na sala de espera
da eternidade
quando ainda tanta coisa na vida nos convoca
confronto-me com a televisão
que uso desligada
e onde se reflete
a minha vida cinzenta
tanto esforço e sofrimento
para esta sensação mais frequente
de tão pouco prazer
felizes são os sado-masoquistas
deixam-nos ir
perdemos-nos nesse oceano
de inutilidade à deriva e do grande gesto fútil
que num certo momento
não soubemos
podemos evitar
não tenho a certeza se for por isso
que marquei este dia de férias
de qualquer forma já de poucas coisas tenho a certeza
um curto circuito nessa vida
de todos os dias
obrigou-me
a voltar para dentro de mim
e assim voltar a ocupar-me dos outros
pessoas de carne e osso
e coração
e não apenas essas sombras que convivem
com nossa sombra
sorrir sem ser por adereço
abandonar esses gestos a fingir
de voluntário e de boa pessoa
e de que é tudo boa gente
sem pecado
todos de humanidade à prova de bala
que raio hoje vou deixar-me vencer
e assim derrotar a máquina
que me canta as tretas açucaradas
da disponibilidade vinte e quatro horas
vou deixar de ter esse espírito
meticuloso e sagaz de detetar o erro
da iniciativa
estou farto de criar e dar novos mundos ao mundo
e "que ninguém me dê conselhos"
esgotou-se a minha capacidade de sofrimento
e isso que agora exponencia
como um qualidade superlativa
a resiliência
essa fantástica maravilha que é a assertividade
deixem-me a sós
com as minhas inqualificáveis
e saborosas fraquezas
tirei um dia para descansar
do mundo
ser inesperadamente associal
de ser o anti herói livre
e de servir para pouco
e ninguém servir.
Lisboa, 29 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Poema patra um herói ocasional


Nadou, nadou, nadou
e chegou, exausto
mas chegou
a esse mundo novo
e ocidental
e abraçou
a estátua da liberdade
ela de olhar
cheio de névoa
ele nunca se soube se chorava
se lhe ardiam os olhos
do sal.
Lisboa, 29 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Ver um mundo em um grão de areia...

“Ver um mundo em um grão de areia 
e um céu numa flor selvagem 
é ter o infinito na palma da mão 
e a eternidade em uma hora.” 
― William Blake

Liberdade I


Naquele dia
as janelas e as portas
estavam abertas de par em par
minha mãe limpava a casa
corria uma corrente de ar
a minha idade
eram catorze anos
uma estranha utopia
a que chamaram
liberdade
era anunciada
na velha telefonia.
Lisboa, 25 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Liberdade V


Revela o poema
essa singular contradição
em que se alcança a liberdade 
no limite do silêncio
na usura da contenção.
Lisboa,25 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Liberdade IV


o que demorou
a reaprender todas as cores
ainda existe teimosa 
por dentro
alguma vertigem
de cinzentos
Lisboa, 25 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Liberdade III


Perpassa ainda no vibrato
do seu canto
um desconforto clandestino
Lisboa, 25 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Liberdade II


na tua pele
que ao tocar estremece
ecoa ainda um medo ancestral
Lisboa, 25 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Posso escrever os versos mais tristes esta noite...

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.
Pablo Neruda

Observo...

observo
a bela estampa
do prado
com um cavalo
que no charco
se admirou
se enlameia
se sacia de si
Lisboa, 12 de Março de 2016
Carlos Vieira

Poema para um lar de todas as idades


Percorro
com o olhar
a floresta
a prata dos penteados
de cabeças coroadas
e lá está sozinha
reinando tão magra
na sua solidão
que não quis
interrompida
tão frágil
de uma tristeza
erecta e digna
mantêem-se à tona
olhando ainda
pela sua vida
e sua circunstância
e pela dos outros
da cadeira de rodas
injusto fim e trono
para tão amável
reinado
e no intervalo
da sua demência
do seu abandono
oiço-lhe o eco
das palavras
e da clarividência
“- Nunca gostei disto,
leva-me para casa!"
Lisboa, 23 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Language is never innocent


Enquanto a cidade dorme


Algures
se estimulasse
a minha hipersensibilidade
podia até distinguir as vibrações
deste prédio onde resido
nos seus doze andares
cada resfolegar
as aflições
e o frigir dos cozinhados
uma babel de sabores
e de razões muito razoáveis
contando com os seus 48 lares
e não sei bem quantos
corações devolutos
vivo por vezes amarrado
entre o presente e o passado
dos aromas
entre cada patamar
podia alimentar-me deles
da sua intensidade
aliás como muita gente
que desconheço
mas adivinho
que terá como primeiro
e único prato
o que os olhos comem
mas há estes dias assim
em que tudo me dói
e todos me doem
os que vivem por debaixo
e por cima de mim
sempre assim foi
as dores são mais
daqueles que me estão perto
por um lado a indiferença
de vizinhos
por outro a sua viscosa
intromissão
minha cidade à flor da pele
antissocial
neste domingo de manhã
luminosa
furada a berbequim
respeitando escrupulosamente
a postura municipal.
Lisboa, 24 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Mulher no banho


Aqui estás
tão esplêndida
e nua
debaixo
do chuveiro
tão tranquila
e tímida
que te esvais
pelo ralo
que existe
em ti.
O sabonete
é o poema
que te percorre
a superfície
da carne
e te escorrega
das mãos
e te leva
para perto
do fim
envolta
no silêncio
perfumado
que te acompanha.
Restam apenas
a memória
das palavras
afogadas
as borbulhas
são os únicos
sinais visíveis
e transitórios
que te ocorrem
e que vêem
ao de cima.
Bebes
sequiosa
a água fresca
precisas
urgentemente
de tomar banho
por dentro
de ultrapassar
o mofo
da pureza.
Vais
temperando
a culpa
vais sendo
engolida
pelo esquecimento
e pelo vapor
da água
agora tépida
perdes-te algures
na transparência
na espuma
dos dias.
Lisboa, 23 de Abril de 2016
Carlos Vieira


"Spirit of The Bath"
Painting by REQ

Let the rain kiss you...

“Let the rain kiss you. Let the rain beat upon your head with silver liquid drops. Let the rain sing you a lullaby.”
― Langston Hughes

"Bye Bye Blackbird" Grace Kelly


A cor possuio-me...





"A cor possuio-me; sendo assim não tenho que procurá-la, eu sei que tomou conta de mim para sempre. Este é o significado deste momento abençoado. A cor e eu somos um. Eu sou um pintor-" -Paul Klee
"Red Balloon"

Enigmas of quietud....


"enigmas of quietude in the midst of general becoming." - Dresden 1931

Franz Radziwill (preso pelo regime nazi)


"Houses"




“Art is not the application of a canon of beauty but what the instinct and the brain can conceive beyond any canon. When we love a woman we don’t start measuring her limbs." -Pablo Picasso
"A vida" Pablo Picasso"


Porque pertenço à raça...

"Porque pertenço à raça daqueles que mergulham de olhos abertos. E conhecem o abismo pedra a pedra, anémona a anémona, flor a flor."
Sophia de Mello Breyner Andresen

Poema para três nespereiras de todos os dias


Despir
com os dentes
tão brancos
a película
e a penugem
morder
a carne tão doce
e amarela
das nêsperas
sair à rua
escutando
o esturgir
ao pisar a nervura
das folhas secas
sucumbir
ao perfume
das nêsperas
cuspir
o carôço
redondo
húmido
de sumo
e de saliva
sobre a terra
e esperar
que dê
novas nêsperas
ao mundo
gosto
das deixar ficar
e de deixar-me ir
e no outro dia
elas estão
à minha espera
mais eloquentes
na Primavera.
Lisboa, 20 de Abril de 2016
Carlos Vieira


Blues para um desconhecido


Era um homem
nobre
que só levava
a sério a vida
ébrio
um dia
numa noite
em que estava
sóbrio
resolve jogar
à roleta russa
uma bala
desenhou-lhe
na parietal
do crânio
a auréola
de uma flor
vermelha.
Mais tarde
no funeral
da segurança social
do homem nobre
num dia de chuva
perguntaram-lhe
"- Quer despedir-se,
vê-lo uma última vez?"
acenou que não
guardaria do pobre
a imagem
do homem
desconhecido
que sorria,sorria, sorria
sem sentido.
Lisboa, 19 de Abril de 2016
Carlos Vieira

O copo é uma apagada lanterna

o copo é uma apagada lanterna
que repousa no balcão
a sua mão no vazio
sobrevoa a taberna
em voo inábil
eloquente e último
e tardio
Lisboa, 19 de Abril de 2016
Carlos Vieira

In vino veritas


ou da dificuldade
de perceber o copo
meio cheio ou meio vazio
Lisboa, 19 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Mais uma pequena história de um naufrágio irrelevante


A grande
mão nocturna
do farol
europeu
acende nos escolhos
uma coroa
de espuma
de morte
e sal.
É o seu uivo
de animal
ferido
que irrompe
seminal
neste lugar
de cinzento
e bruma
de visto
e tinta
permanente.
Aqui
os navios
comparecem
ao ritual
e se afastam
ou se afundam
no inox
das ondas
e das lâminas
mediterrâneas.
Náufragos
naquele uivo
que lhes desgoverna
o leme
e a vida
daquela mão
brutal
pragmática
que tanto treme
sentimental
e mata
de intermitente
cegueira
interior
continental.
Lisboa, 18 de Abril de “016
Carlos Vieira

Joseph Mallord William Turner "The Eddystone Lighthouse in a Storm at Night, with Shipping c."1813

Linhas no mapa

Linhas no mapa
Separam a fome da comida.
só linhas.
David Rodrigues

The Balance























“ The Balance ”, Christian Schloe

Amou tanto

Amou tanto
Agora era velha e não conseguia sentir-se tomada de qualquer sentimento em relação a coisa alguma, mas tinha amado muito. Esperava ainda encontrar-se com algum ser que se movesse sobre a crosta da terra.
Até que se enamorou pela fachada de uma igreja de Assis, decidindo mudar-se para aquela cidade. Era Inverno, e durante os temporais nocturnos, saía com o guarda-chuva para fazer companhia à igreja, plena de uma luz amedrontada.
Depois, chegou a Primavera, e todas as manhãs e todas as tardes, com as mãos, tocava as pedras quentes e enxutas. Foi um amor sereno e sem traições que durou até à sua morte.
Tonino Guerra, "Histórias para uma noite de calmaria"

MEDO


Medo de ver a polícia parar diante da casa.
Medo de ficar a dormir durante a noite.
Medo de não conseguir dormir.
Medo de que o passado volte.
Medo de que o presente levante voo.
Medo do telefone que toca no silêncio a horas mortas.
Medo das tempestades eléctricas.
Medo da mulher de turno que tem uma cicatriz no queixo.
Medo dos cães embora me digam que não mordem.
Medo da ansiedade!
Medo de ter que identificar o corpo de um amigo morto.
Medo de ficar sem dinheiro.
Medo de ter muito, embora seja difícil de crer.
Medo dos perfis psicológicos.
Medo de chegar tarde e de chegar antes de todos.
Medo de os ver morrer antes de mim e de me sentir culpado.
Medo de ter que viver com a minha mãe, na velhice dela e na minha.
Medo da confusão.
Medo de que este dia termine com tristeza.
Medo de acordar e de ver que foste embora.
Medo de não amar e medo de amar demasiado.
Medo de que o que eu ame seja letal para aqueles que amo.
Medo da morte.
Medo de viver demasiado tempo.
Medo da morte.
Isso já disse.
Raymond Carver

Citação Marguerite Duras

"[...] estar ao abrigo do fim do amor,
é a isso que eu chamo felicidade."
MARGUERITE DURAS

Tributo a André Tarkovski

"Andrei, ce ne sont pas des films que tu fais..." (Arseni Tarkovski)


Poema de Álavro de Campos

Álvaro de Campos


Esquisso para um auto-retrato


Aqui estou no cume
por cima das nuvens
o mundo todo
e os deuses
à minha volta
nos corações de pedra
batem furiosamente
os uivos do vento
e grasnidos de milhafre
alcandorado
aqui não sobrevive
nem o efémero líquen
ou as memórias
libertas de raízes
nem o perfume da urze
ou cintilações de quartzo
esta é uma porção
de terra nua
que por agora me pertence
que me dilacera árida e dura
a carne macia
vivo estribado nesse espigão
do amor pela vida
e nesta corda que a pendura
sobre o precipício
vivendo no limite
vivemos suspensos
sobre o inferno e o paraíso
aqui estou eu
no pico da montanha
com serventia
de vistas para Espanha
e passaporte
de cidadão do mundo
onde vivo
possuo um plano
imaginário da ponte
para um céu
aqui com pés no chão
nasce um rio
onde corre o sonho
de viajar iluminando
o medo
e as trevas
e o desconhecido
reinvento o abecedário
da solidão
e sou por um momento
pleno proprietário
da terra
antes que ela
me possua a mim.
Lisboa, 17 de Abril de 2016
Carlos Vieira


Pintura de Caspar David Friedrich

Auras


Gosto agora da aura
que dos objetos emana
gosto também da aura
das pessoas
que transformam
os objetos
e gosto da tua aura
de anjo sobrevoando
a Terra e a cidade
que me fizeste reconhecer
em mim
e nos homens
o poder de deuses
e demónios
de extraordinária
barbárie
ou de uma rara
humanidade.
Lisboa, 10 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Pequenos poemas de misericórdia ao homem boçal


Nestes novos tempos em todos nós habita esse homem que menospreza
na sua ancestral mediocridade:
I
a destreza da árvore
e das raízes a clarividência
e a demência
da ave
inutilmente
a golpear de asa
a fúria dos ventos
II
a inolvidável cintilação
e subtileza
das flores
arregimentando cores
que correm nas artérias
corpo a corpo
com o silêncio
III
a timída arquitectura
da luz
das palavras
e o murmúrio aceso
da sua seiva
na imensa
sofreguidão dos espaços
manietando
a ternura do gesto
IV
ignora
a cicatriz do granizo
na clorofila
da folha
que a palma da mão
áspera e rural
acaricia
no bulício
da manhã inquieta
V
desconhece
o trinado
da bicicleta do carteiro
no ocaso
das aldeias
despertando
outras tantas
campainhas
VI
que sabe ele
do ranger
dos gonzos
enferrujados
das portadas
da noite
e das mãos
retorcidas
de artroses
orações
e distâncias
dos que lhes são
próximos
Lisboa, 10 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Poema para um avistamento


I
Rio-se
sozinho
o louco
desta ponte
a passar
por cima
do destino.
II
Observam-lhe
uma última vez
o seu corpo nu
a boiar no leito
do rio
por debaixo
do tabuleiro
rio-se
finalmente
nu
é agora
negligente
perante
a inutilidade
do dinheiro
do mundo.
III
Haverá
melhor morte
que o tumulto
da corrente
ou um túmulo
de água doce
sem esquecer
as borbulhas de ar
essa magnífica
metáfora
das últimas
palavras
o seu peso
líquido
o seu final
fluvial.
IV
Claro
há um pormenor
que é raro
contar-se
nos afogamentos
água fria
falta de ar
e a dor insuportável
da ferida
causada
pelas arestas
das lágrimas
nos que ficam
eternamente
por sarar.
III
Ali estás
por cima
da ponte suspensa
da vida
a avaliar
a sua profundidade
ausente
observando
a tua chegada
de guindaste
a bailar
à superfície
a debater-se
contra a corrente.
Lisboa, 9 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Histórias de uma mulher ferida de melancolia


Deu início
à tarde
iluminando-a
ali
desfraldou
o seu sorriso
largo
último
da sua curta
vida.
Lembro-me
de por ali
ter ficado
ancorado
na visão de ti
eras o tranquilo
estuário
na desculpa
do café.
Nesse tempo
a tua mão
era a brisa
a dedilhar
a versão
matinal
de uma neblina
de verão.
A tua tez
clara
na leveza
das linhas
do rosto
não resistia
a um olhar
mais atento
e o rubor
indelevel
que o tingia
não coincidia
com o fogo
interior.
Podia-se
descortinar
a imperceptível
ondulação
de uma tristeza
a confissão
de um percalço
num passado
não muito
distante.
Prometia tudo
o que tinha
e o que não tinha
no seu olhar
podia adivinhar
a sua alegria
a subtileza
de um mistério
por revelar
o entreabrir
das pálpebras
de tristeza
ao cair
da tarde.
Percebia-se
a entrega
e a gratidão
nos olhos
semicerrados
e no arco
do espanto
o manto
do crepúsculo
cobria
a nudez
do seu dorso.
As palavras
eram frutos
agridoces
que se desfaziam
em silêncio
na boca
ávida do beijo
que lhe foi
negado.
Caminhava
distante
pelo perigosos
territórios
dos aromas
dos salgueiros
despiu-se
para se banhar
por debaixo
do chilrear
dos rouxinóis
e emergiu
um torso
em ouro de sol
no espelho
de água
fresca.
Os peixes
a escorregar
nos caracóis
dos cabelos
murmurando-lhe
o segredo
das nuvens
que espiaram
a vida toda
das naus
e de viagens
imaginárias.
No seu seio
amadureceu
o tempo
dos amantes
que ali foram
beber
seu doce
veneno
depois
foi o abandono
à melancolia
e a insensatez
da culpa
e da razão.
Lisboa, 9 de Abril de 2016
Carlos Vieira


Mulher azul de Picasso

Asas do desejo


Magnífico
e terrível
é o acto de sopesar
por um lado
a sensualidade
da matéria
devendo
para tal
permitir-se
um mínimo
abandono
a que falta a alma
e por outro
habitar
essa amendoeira
do espírito
a que falta o objecto
o fruto
o perfume
e sabê-la essencial
para sobreviver
ao caos
e no entanto
apenas os pássaros
que se libertam de si
esses objetos voláteis
tem a mais exata
percepção
da volúpia do voo
e do ramo
onde devem pousar
e do tempo
e do relevo
do timbre
do seu canto
para poder
evitar o vórtice
ou o silex
que nos cegam
nas asas do desejo.
Lisboa, 5 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Cirurgia a fractura da tíbio com epidural


Naquele desvio
o anestesista
criou um canal
de irrigação
inventou
um rio
a transbordar
de imaginação
a noite
corria-me
na veia difícil
e confundia-se
com o dia
de uma simples
operação
sóis benévolos
reguláveis
pendiam
do tecto
havia marcianos
verdes
de máscara
e sangue
impávido
na pendência
dos recipientes
naturezas mortas
de inox
reflectiam
as cenas
dos próximos
capítulos
e um sono
epidural
a espraiar-se
em delta
na larga foz
dentro de mim
sempre
muito mais
sentimental
que cirúrgico.
Lisboa, 4 de Abril de 2016
Carlos Vieira