domingo, 27 de março de 2016

Flor eterna (Dente de leão)


Lembro-me
dessa flor
sem nome
nas puras
manhãs
da infância
a tão precária
e perfeita
construção
lembro-me dela
depois do sopro
antes do caos
da efémera visão
da penugem
do seu corpo
em voo
a entrar na nuvem
mínima
flor de desalento
da esperança
breve
de quase nada
da sua queda suave
em silencioso
espanto.
Lisboa, 22 de Março de 2016
Carlos Vieira


Que sentido para as palavras


Explodem bombas pela europa
pelo mundo e nos poemas
há palavras embargadas 
são agora fragmentos
tábuas de salvação
réstias de ternura
que sobrevivem
e dão ou não
sentido
à dor.
Lisboa, 22 de Março de 2016
Carlos Vieira

De súbito amortalhada...

De súbito
amortalhada
de um manto branco
de pedras de gelo
e em rosa pálido
a primavera
que acabava
de despontar
sucumbiu.
Lisboa, 21 de Março de 2016
Carlos Vieira


Granizo, hoje em Lisboa, no Público, de Inês Farinha

Esquilos


Gosto do esquilo
da sua ágil elegância
gosto do estilo
do seu brilho esquivo
nas florestas
gosto de frutos secos
e os esquilos também!
Lisboa, 20 de Março de 2016
Carlos Vieira


Squirrel por DIMDI

Uma imagem vale mais...

uma imagem vale mais
que mil palavras
assim começaram
muitas ditaduras
Lisboa, 16 de Março de 2016
Carlos Vieira

Crisálida


Crisálida
mistério oculto
cárcere de melancólica 
perfeição
das sombras sortilégio
cápsula da viagem
e exaltação do futuro.
Lisboa, 20 de Março de 2016
Carlos Vieira


O síndroma de Estocolmo de um piriquito


De súbito
desafiando
o sol de inverno
uma cruz verde
de asas
contra o azul do céu
a crocitar
numa azáfama tropical
um piriquito
que não sabe do Sul
nem quer saber do Norte
busca extenuado
a alpista
o ar condicionado
uma gaiola
e um dono.
Lisboa, 15 de Março de 2016
Carlos Vieira

Hino ao pão


Este é um poema
singelo
em pão fresco 
de trigo
sob a toalha
de linho branco
dourada
é a côdea dos versos
por vezes
feitos do pão
que o diabo
amassou
outras
é pão quente
saído
do forno do olhar
da minha mãe
a rimar
com seu coração
de manteiga
e de silêncios.
Lisboa, 14 de Março de 2016
Carlos Vieira

Amolador



Do amolador
oiço o gume
da faca de cozinha
na pedra de água
e o realejo
pudesse também
um beijo meu
afiar
no teu coração
um renovado
desejo
desgastar a usura
da mágoa
e do concerto
de varetas
resultar
voltares de novo
para debaixo
do guarda chuva
da ternura.

Lisboa, 13de Março de 2016
Carlos Vieira



sábado, 26 de março de 2016

Nas suas mãos...

nas suas mãos em concha
recipientes do amor
saciei a minha sede
Lisboa, 13 de Março de 2016
Carlos Vieira

Aqui estou...

aqui estou
que aguardo em silêncio
a luz da palavra
imperceptível
que nos teus lábios
pode surpreender
a madrugada
Lisboa, 13 de Março de 2016
Carlos Vieira

Amando-te


Sei de cor os teus olhos
se olho para ti ou por ti
de tanto decantar a cor
e a sombra do teu olhar
de te cegar de beijos
de beber o veneno
da convulsão do pranto
do suado elixir de alegria
cresce a erupção de raiva
no teu corpo em arco
e a vibrante ereção solta
uma flecha do êxtase.
Lisboa, 12 de Março de 2016
Carlos Vieira



Vende-se casa assombrada

Vende-se casa assombrada
Esta noite
outra vez
este retângulo
de um sonho recorrente
de quatro paredes
hipotecado
uma casa mãe
sem telhado
e sem janelas
de água
à volta
da cintura
a precisar de obras
lembro-me
o mesmo assobiar
do vento
a mesma porta
a gemer
pequenas surpresas
acordo
na minha antiga
cama de ferro
que flutua
outra vez
ancorada no tempo
era dos meus bisavôs
na chaminé
uma pirâmide
de fumo
vai até ao céu
pode ouvir-se
o rumor
da tua voz
a crepitar
no fogão de sala
na manhã
uma estranha ausência
de fogo
como se alguém
tivesse desistido
da infância
não tenha dúvidas
você não está
a comprar uma casa
vai viver
a história.
Lisboa, 12 de Março de 2016
Carlos Vieira


Foto de Luigi Ghirri

A folha

A folha
efémera filigrana
à deriva na corrente
que foi estandarte
de sangue verde
que o imperceptível
sopro no respirar
da palavra sol
soltou do pecíolo

Lisboa, 12 de Março de 2016
Carlos Vieira


"Drifting" Luigi Quarta

sem passado nem futuro...

sem passado nem futuro
nas linhas das tuas mãos
fiquei preso
Lisboa, 12 de Março de 2016
Carlos Vieira


Nota epistolar II


O homem
desempregado
é uma silhueta
ou uma transparência
“a idade não ajuda!"
caminha todo nu
com as mãos
nos bolsos vazios
é uma ilha
frágil embarcação
tem o rumo das filas
“dos desempregados
de longa duração"
em direção ao guichet
do centro de emprego
na sua cabeça
tudo anda à roda
enquanto preenche
o formulário
as palavras dançam
juntamente
as prestações da casa
por pagar
"desculpe podia repetir!"
há um cisma na família
antes éramos tão unidos
é claro que há sempre
uma tendência
para a fragmentação
é a física
"oh criatura
onde é que você
está com a cabeça!"
há sonhos em ruínas
“tem que ter
um espírito empreendedor!"
podemos sempre
reerguer-nos
subir a pulso
“desça à terra
senão não saímos daqui!"
há sempre alguém
que lhe bate nas costas
com as palavras
de incentivo
que ouve já longe
"vai ver que aparece
qualquer coisa!"
foge de casa
e a casa vem atrás dele
“ o seu problema
é que tem demasiadas
qualificações!"
e tem fome também
sem palavras
outro problema
sempre viveu entre
a realidade e a fição
sem as distinguir
uma certa loucura
uma certa falta
de pragmatismo
“só não trabalha
quem não quer trabalhar!"
o homem desempregado
prosseguiu
uma testemunha ocular
ainda o viu
pela última vez voar
da ponte até ao rio
e assim desceu
o desemprego
"também não andava
cá a fazer nada!"
Lisboa, 12 de Março de 2016
Carlos Vieira


Foto de Carlos Spottorno

Nota epistolar I


Naquele tempo
o homem caminhava
por atalhos
cozido pelos alpendres
e esquinas
olhares emboscados
apedrejavam-no
como a um cão vadio
escorraçado
e pareciam dizer
ali vai aquele
que mordeu a mão
a quem lhe deu
de comer
por amor à justiça
algo no entanto
na cidade
ficou por saber
se este era um caso
de ingratidão
ou o preço a pagar
pela liberdade.
Lisboa, 12 de Março de 2016
Carlos Vieira


Imagem Argyle Palias em Flickr

Por entre o garatujar

Por entre
o garatujar
de um intrincado
despacho
vou sopesando
observo
o gato prateado
emboscado
atrás do tronco
de uma faia
em suspenso
o gesto felino
e o burocrata
sem golpe de asa
cercados
por um amável
muro
cor de rosa.
Lisboa, 10 de Março de 2016
Carlos Vieira

Entre teias...

Entre teias de aranha
procuro despojos
esquecidos de infância
vasculho no sótão
antecâmara das noites
de tempestades
e de sonhos perdidos.

Carlos Vieira
Lisboa, 10 de Março de 2016

Pessoas de família

Não cuido muito
das flores
da minha varanda
umas
as exteriores
crescem espontaneamente
vão à procura
da luz
outras
as do interior
alimentam-se
na penumbra
dos murmúrios
e do humor
umas e outras
me parecem
no seu silêncio
atento
no seu gesto
invisível
pessoas de família.

Lisboa, 10 de Março de 2016
Carlos Vieira

As longas baionetas do sol...

As longas baionetas
do sol de inverno
cauterizam
as mais profundas
feridas da ausência
e travam a progressão
dessimulada da solidão.
Lisboa, 10 de Março de 2016
Carlos Vieira

Praça do Marasmo XIII


O cavalo
boceja
na estátua 
o herói
está agastado
com teias
de aranha
no bigode
um miúdo
do nada
de skate
é um raio
de luz
a resvalar
pelo dorso
do poema.
Lisboa, 7 de Março de 2016
Carlos Vieira


Praça do Marasmo XII


Na montra
os relógios
marcam todos
a mesma hora
e estão todos
adiantados
cintila a poalha
no mostrador
branco
esquecidos
do tempo.
Lisboa, 7 de Março de 2016
Carlos Vieira


Praça do Marasmo XI


Os comerciantes
calam-se
que no segredo
é que está
o negócio
a coberto
dos balcões
e das antigas
balanças
espreitam
por detrás
dos tapetes
dependurados
voltam
aos números
dos novelos
das lãs macias
e ao silêncio
das agulhas
tranquilas
repõem açafrão
e pimenta e caril
os especialistas
das especiarias.
Lisboa, 7 de Março de 2016
Carlos Vieira






Praça do Marasmo X


Os botões
das flores
rebentam
nas varandas
e canteiros
apregoando
perfumes
olhares velados
silenciados
queixumes
passageiros
amores
proibidos
alcandorados.
Lisboa, 7 de Março de 2016
Carlos Vieira


Praça do Marasmo IX


Um bando
de estudantes
em indecifrável
algazarra
e em paralelo
assimétrico
com um velho só
descem a calçada
ele circunspeto
em paz
consigo mesmo
uns soltam
gritos de guerra
ele agarra-se
à bengala.
Lisboa, 7 de Março de 2016
Carlos Vieira

Praça do Marasmo VIII


A jovem mãe
empurra
o carrinho de bebé
empurra o futuro
e sem nunca
se pensar perdida
pergunta
uma vez mais
com o olhar
se respira
se está vivo
e volta
a empurrar a vida.
Lisboa, 7 de Março de 2016
Carlos Vieira

Praça do Marasmo VII


Um taxista
rompe em furiosa
velocidade
ao mesmo tempo
que irrompe
é escoltado
por enxurrada
de insultos
todos temos
pressa
de chegar
a lado nenhum.
Lisboa, 7 de Março de 2016
Carlos Vieira

Praça do Marasmo VI


Como invejo
este casal
do beijo 
sem pressa
no tempo
de serem
namorados
dos olhares
demorados
e sempre
por mais
uma carícia
atrasados.
Lisboa, 7 de Março de 2016
Carlos Vieira


Praça do Marasmo V

Há gente
inquieta
na paragem
do autocarro
e inquieta
no fim
da viagem.
Lisboa, 7 de Março de 2016
Carlos Vieira

Praça do Marasmo IV


Turistas
disparam
as suas reflexes
a tudo o que mexe
e ao que não mexe
disparam
contra si próprios
voltam a focar
que a foto anterior
é de um passado
que não tem futuro
e de um presente
que ficou
muito tremido.
Lisboa, 7 de Março de 2016
Carlos Vieira

Praça do Marasmo III


Ajoelha-se
o engraxador
empertiga-se
o cliente
e o futuro
é uma estrela negra
nos sapatos
de verniz reluzente.
Lisboa, 7 de Março de 2016
Carlos Vieira


Praça do Marasmo II


Aqui
neste "happycentro"
da cidade
cosmopolita
há gente
de todos os sexos
e quadrantes
para todos os gostos
que vegeta
inteligentes e tolos
comem de boca aberta
crocodilos
de esplanada
regurgitam bolos
e bebericam
cristais de açúcar
nessa luz
translúcida e viscosa
de refrigerantes
e nesses momentos
aquecidos
das chávenas
e dos cafés
gente
de hoje e de antes
desempenham
cabalmente
o seu papel
transportando
as suas carapaças
durante o dia
pousam nas esplanadas
e mudam de penas
e de pele.
Lisboa, 7 de Março de 2016
Carlos Vieira


Praça do Marasmo I


Um pombo
imaculado
desfila 
pelo mármore
branco sujo
noivo
abandonado
na praça
onde andrajosa
uma idosa
distribui
grãos da
tristeza
amealhada.
Lisboa, 7 de Março de 2016
Carlos Vieira


Na berma da estrada...

na berma da estrada
uma cama de espargos selvagens
um caleidoscópio de emoções
Ponte se Sor, 2015
Carlos Vieira

Princípio da época do degelo




Oiço
vozes
o canto liquido 
dos pássaros
que escorrem
do musgo
das telhas
para a cisterna
após o tamborilar
da chuva
do lado de fora
da renda
das cortinas
adivinho
o destilar
do perfume
das tílias
suave
prenúncio
da loucura
nas manhãs.
Lisboa, 6 de Março de 2016
Carlos Vieira


Antílope...

antílope de hastes
florindo no horizonte africano
subtil ruminador de crepúsculos
Lisboa, 6 de Março de 2016
Carlos Vieira


Fogo-fátuo


Sei
o que foi
um dia 
o fogo-fátuo
do teu corpo
a levantar
o mar chão
um frémito
de borboleta
que acendeu
o teu sorriso
incomum
a tua sombra
que se distanciava
onde diáfano
cuidava
da construção
desse sonho
e nele te beijava
me deixava ir
correndo o risco
para quê acordar
ou resistir
não fosses
tu descobrir
o artifício
do deslumbramento
de que eu
apenas existia
em pensamento.
Lisboa, 6 de Março de 2016
Carlos Vieira


Flechas de sol


Flechas de sol
trespassam
o céu cinzento
e as ranhuras
da persiana
ao coração
das palavras
já regressaram
os animais
noturnos e hábeis
caçadores
das madrugadas
nos teu lábios
permanece aceso
o seu rubor
e uma flor mínima
de sal
no delírio de búzio
do teu sexo
onde calaste
a sede
e o insaciável desejo
o meu olhar
vai em teu redor
proteger-te
das intempéries
e dos deuses
autorizo
que as flechas de sol
apenas te beijam
e a dourar teus seios
e que o calor
amorne um pouco
o teu gesto
sobrevoando
o lençol
sem sentido
desvanecendo
a sua irreversível
insensatez.
Lisboa, 5 de Março de 2016
Carlos Vieira


Sleep of the Beloved,” the photographer Paul Schneggenburger

Travessa da Espera

Aqui estou eu, oito da tarde, no lusco fusco da Travessa da Espera.
Na verdade passamos uma vida inteira à espera. Desde logo, de saber se é menino ou menina, de sair do conforto da bolsa de líquido amniótico, de conhecer o agreste contacto com a atmosfera e todas as minudentes contingências da vida. Enquanto isso, um pai explora na sala de espera, meticulosamente os ângulos mortos e metros quadrados, rói as unhas, aguardando o seu primeiro filho, outro na sala de partos, olha de olhos arregalados, para a sua esposa que estrebucha e grita desalmada, enquanto o pessoal médico e auxiliar se engalfinha, à volta da marquesa e das pernas abertas para extrair, de uma amalgama informe, de placenta, o ser humano mínimo e cortam definitivamente, o cordão umbilical, tudo e todos ensanguentados, e a seguir eis algo que berra, extraordinariamente.
Depois, bem depois, podemos vê-los, esses seres nascidos mais sou menos renitentemente, esperando que não nos dêem trabalhos e preocupações, apenas alegrias e redenção, após esperas de horas sem dormir ou de fazê-lo aos solavancos, em casa, nas urgências dos hospitais a dormitar.
No fundo, o mundo transforma-se para muitos de nós uma enorme sala de espera e num somatório de momentos de esperança, porque mesmo nos momentos em que já a perdemos, e estamos no corredor da morte de todos os sonhos, uma chama continua acesa dentro de nós, uma flor bruxuleante, intrépida, resiste à brisa que não se fez anunciar.
Lembras-te quando te esperava no altar, eu e Cristo ambos pendurados à tua espera, num ridículo smoking, aba de grilo para a cerimónia alugado, ainda hoje, estava ao mesmo tempo desesperado, não fosses tu desistires à última hora ou seria esse o meu secreto desejo, perante a dúvida, de uma vida de casado que não sabia, se iria aguentar ou estava preparado!
Depois veio tempo das viagens, de aguardar o voo da TAP, das 20h00, no Aeroporto de Shipool, de aguardar nas filas os procedimentos de segurança e despejar dos “ necessaires" os objetos pessoais, expostos espalmados na máquina do raioX como robalos escalados, naquele despe e veste de mais uma revista de segurança, antecedido, por um “ por favor não se importa!" e de nós que só esperamos que não nos leiam os pensamentos, ali ao lado confinados com o olhar de desespero das raparigas correio, recém chegadas, de um qualquer aeroporto da América do Sul.
Entretanto, dirigimo-nos à porta, lá fora,esse draft imenso de um arquitecto paisagístico louco, esse grande jardim de geometria variável, de luzes e néon e pistas com cores de noites solitárias acompanhadas de gin, azul turquesa e do roncar dos aviões, aterrando ou a levantar, interrompidos por uma voz pueril e feminina, traz-nos de volta à realidade, pede a todos desculpa pela chegada tardia da aeronave, nós aguardamos, compramos mais uma inutilidade, nessa terra de oportunidades que são as “free-shops”.
Esperamos no dia seguinte, a consulta que tinha sido adiada, já com a carapaça das inúmeras esperas, em que raramente fomos surpreendidos, ali sentados frente aos bebedouros da sede de vida vivida, de água fresca ou natural, das línguas pendentes das senhas, da democracia organizada, em fila e com os olhos no placard da consulta de oftalmologia. Ali estão sossegados os cidadãos utentes, os que vêem mal ao perto ou ao longe, os que nunca viram e os que deixaram de ver, entre muita gente invisível, estamos à espera uns dos outros, esperamos a nossa vez!
Muitos são os chamados e poucos são os escolhidos!
As funcionárias com seu sorriso administrativo, por detrás dos balcões, percorrem com destreza o teclado, sem deixar de estarem atentas ao écran do computador, depois o seu olhar regressa do espaço sideral ao nosso contacto,debitando as suas mensagens claras, o preço , os seus exames e a próxima consulta, concluindo com “As suas melhoras!"
"Espere sentado ou você se cansa!”, verdade que tenho seguido à risca esse Bom Conselho, de Chico Buarque, claro que a tal acrescento a minha grande preguiça, algo que ajuda a ter paciência e a ser um pouco mais resistente à espera. Deixo para amanhã o que posso fazer hoje, isso precipita os prazos e a necessidade de correr atrás dos autocarros.
Saber esperar nem sempre é uma grande virtude, porque entretanto a vida vai-se esvaindo e nós desperdiçamos todo esse tempo, a aguardar o impossível e o improvável.
Também é certo que a ignorância nos atraiçoa, pois o tempo da maturação, leva-nos a sofrer antes de tempo e a esperarmos na paragem, quantas vezes a horas o comboio errado.
Estamos agora à espera da Primavera, essa estação da esperança, no entanto quantas vezes esperamos mais do que aquilo que ela nos pode dar, nestes tempos em que tudo, parece estar mais previsível, as estações nos surpreendem com os fenómenos mais desagradáveis e inesperáveis.
Aqui vamos no caos do tráfego da grande cidade, navego não conduzo, nos automóveis do crepúsculo muitos solitários, enlouquecidos, regressam a casa, ás suas zonas de conforto, mal podem esperar ou será que fogem do que os espera?
Os semáforos lá vão levando a sua vida de alternar as cores, testemunhas de insultos, buzinas, do pára arranca, flores de metal resistentes às pequenas nuvens de fumo, esses legados rasteiros que os escapes deixam em branco, sem legendas.
Aqui estamos todos à espera da morte ou que morte nos liberte deste compromisso de cumprir a vida e de gerirmos tantas expectativas, de levarmos de vencida o tempo, esquecendo-o, tornando-nos assim imortais desconhecidos, nas travessas das esperas dos bairros altos deste mundo.
Lisboa, 5 de Março de 2016
Carlos Vieira


sexta-feira, 25 de março de 2016

Apenas e sol


Gosto deste sol
inteiro
coroando
a madrugada
que fugiu
dos calabouços
da noite
que sem sofismas
afirma
o preço
que custou
a liberdade
que nos aquece
e ontem
nos faltou.
Lisboa, 1 de Março de 2016
Carlos Vieira


The red sun, Juan Miró

Amor platónico


Gosta da lua que uiva
que ladra
sem seita
e sem coleira
desse amor
que vai da terra
ao céu
num segundo
gosta
de sexo seguro.
Lisboa, 29 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira

No relvado à noite...

No relvado à noite
cruzam-se a lua, os cães
e os donos, os olhares,
as necessidades,
urgências e desejos 
murmúrios
circunvizinhos
animais amáveis
e bagatelas de amor
nas reentrâncias
dos condomínios
Lisboa, 29 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira

A caixa de Pândora


A caixa de correio
é também de Pândora
entre os “flyers"
da proposta tentadora
e dinheiro fácil
sem porquês
existe a dura realidade
das contas caladas
e de bocas que gritam
no fim do mês.

Lisboa, 28 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira



Desempoeirado protesto


Espanto
depois do declive
traiçoeiro
da história
o regresso
dos fantasmas
a coberto
de tempestades
de pó
silenciando
a urgência
de inteiros
nos erguermos
em sólido
pensamento
surpreendendo
a morte
no presente
festejando
em espanto
os átomos
do futuro.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira

Chovem...

chovem
pérolas de granizo
efémeras preciosidades
Lisboa, 25 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira

Subitamente...

Subitamente
o seu riso
era esse terramoto
ao avesso
de réplica em réplica 
até à madrugada
do sorriso
reconstruir de vez
o seu abalado
mundo.
Lisboa, 26 de Fevereiro de 2026
Carlos Vieira

Romãs


I
sonho
o corar das romãs
nas mãos da minha avó
ardendo sobre o papel pardo
sobrevoando a balança decimal
II
sonho
uma romã nas mãos
da minha mãe
no paraíso do quintal
ao fundo precário
um equilibrio horizontal
o azul do céu
e o verde do pinhal
III
sonho
a romã e o pecado
a pintarem de sofreguidão
os teus macios lábios
rubros e insaciáveis
e tuas mãos
desesperadas.
Lisboa, 26 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira


pela janela espreita...

pela janela espreita
escorre o olhar de humana solidão
acentuada pela companhia de flores artificiais
Lisboa, 26 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira

Poema para uma criança síria



No seu rosto
é possível vislumbrar
o deserto
num grão de areia
lavado de lágrimas
mesmo ali
por debaixo da pele
a inquietude
o rasto das lagartas
jogar às escondidas
nas sepulturas
cavadas pelas bombas
chove violentamente
no seu olhar perplexo
sucedem-se elipses
de pássaros e mísseis
frenéticos os ramos
e a paz indiferente
das oliveiras
nessa perigosa estrada
que os leva
para longe
das longínquas
brincadeiras
dos antigos jardins
ocultos
agora numa Damasco
a quem vai faltando
às crianças
o conhecimento
das flores.

Lisboa, 26 de Fevereiro de 2016
Carlos Vieira