domingo, 26 de outubro de 2014

Sem palavras



Há dias e dias
em que não há palavras
ao nomeá-las
elas não nos respondem
nem escutamos o eco
dos seus passos
que se afastam do vazio
em que habitamos.

Os pensamentos
são pardais de telhado
ariscos
desconfiados
nenhum pensamento
te vêm comer à mão.

Desvanece-se
esboroa-se
aquilo que designamos
por realidade
que muito dolorosamente
tínhamos construído.

Os objetos
tornam-se indefinidos
estranhos
fogem-nos das mãos
desajeitadas.

As pessoas e os animais
evitam-nos
mudam de passeio
com um sorriso
nos lábios.

O nada
é uma ave
que nidifica
fora de época
na nossa cabeça.

Parece-me entender
que existe aqui
uma certa dificuldade
de confronto
connosco mesmo.

Um cuidado atávico
na contaminação
a tendência do caminho
seguro e único
já trilhado
e com provas dadas
perante esta pandemia
de solidão.

Lisboa, 26 de Outubro de 2014
Carlos Vieira



Rene Magritte

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Poesia sem mãos a medir


Gosto 
do adejar das mãos
a desbravar
aromas e sabores
no corpo etéreo
das árvores 
na intransigência
dos espinhos
e das flores.

Gosto 
do que insinuam
e escondem
na mímica de Jean Cocteau
as mãos nuas
no seu mistério de prestigitador
ora abertas
ora fechadas
de em carne e osso
encenar
a vida.

Gosto 
da desenvoltura
dos pequenos trabalhos manuais
para os quais
nunca tive jeito 
dos pequenos objectos
nas mãos à aventura
que nos acariciam
e despem
mãos de viajar
que nos tocam  
e quando parece 
nos vão beijar
nos deixam.

Gosto daquela
forma atarantada
das mãos
ficarem sem jeito
e não saber onde metê-las
entarameladas
de meter
os pés pelas mãos.

Gosto das suas mãos delicadas
a percorrem o país da minha pele
de lés a lés
a tactearem em cada poro
um admirável mundo.

Gosto daquelas outras mãos
que partem e que apertam
e das outras sujas
pesadas, ásperas, enormes 
de pulso
sem relógio
tão precisas
sempre por perto
sempre ocupadas
do meu pai.

Gosto das mãos abençoadas
deitadas no colo 
de uma serena tristeza
da mãe paciente
mãos limpas
de unhas maltratadas
dos produtos de limpeza
que tem tudo para dar
e não esperam nada.

Gosto de mãos 
de criança inocente
penduradas
no meu dedo indicador.

Daquelas 
que empunham
utensílios
brinquedos
e fazem de escadas
e de baloiços
num prolongamento
num balanço
até ao coração.

De mão cheias de cimento
e generosidade
e ilusão.

Gosto 
daquelas mãos enrugadas
da minha avó
pousadas no silêncio
esquecidas
para sempre
afagando
o tempo subtil da ternura.

Gosto das mãos
que teceram o naperon
onde a moldura
de um menino de calções
sorri a preto e branco
e que esperam o namorado
que há décadas partiu
para uma guerra
que não era 
de alecrim e manjerona.

Mãos exaustas 
a cortarem
a sobriedade 
de uma fatia de pão alvo
e a espalharem 
só de um lado
a manteiga.

Mãos solícitas
a limparem 
as feridas das lágrimas
amparando-me
no desequilíbrio
de tantos primeiros passos
com saudades do tempo
em que empurravam 
as primeiras letras
animais domésticos
a que chamaram arabescos.

Não me lembro do perfume
da minha mãe daqueles tempos
lembro-me dela curvada
sobre mim
e de irem rente ao chão
suas mãos suadas de jardim
sossegando
os bichos e as flores.

Lembro-me
daquelas outras mãos
fincando nas minhas costas
as unhas desesperadas
dos dedos nos lábios
que não sabiam guardar segredos
travando as palavras
modelando o desejo.

Mãos de pequenas transgressões
e de impressões digitais
por revelar.

Mãos hábeis
sem luvas
nos laboratórios
manipulando substâncias perigosas
e experiências ousadas.

Mãos postas
das capelas
em busca de uma luz
que a terra lhes ne(s)ga.

Mãos de orador
a sublinhar a veemência
e a limpar um pingo de suor.

Mãos  de empunhar espingardas
crispadas de medo
e dedo no gatilho.

Mãos generosas
que respondem demasiado tarde
ou demasiado cedo.

Mãos de despedida
acenando, acenando
e que regressam inconsoláveis
à pátria
aos bolsos vazios da partida.

Mãos estendidas
de esmola
e de ponta e mola.

Mãos
animais que ruminam
a fome  e a penumbra
mãos sem mãos.

Mãos de pintor
na mistura dos pigmentos
tão discretas e tão de dar-se
para encontrar a cor
pela tela
a espalharem uniformemente
a dor.

Mãos sem pé
no desesperado
abraço
dos afogados.

Mãos de luva de pelica
mãos de luvas medicinais
de evitarem contaminar-se
com a irrespirável realidade
de todos os dias.

Mãos de pedra
lívidas
de moribundo
a caminho da eternidade.

Mãos sempre fechadas sobre si mesmo
e de rapina
alcandoradas nas escarpas
embriagadas no olhar
da solidão.

Mãos de fada
iluminadas e cegas
por esplendorosas madrugadas.

Mãos
içando velas de navio
mantendo rumo
decifrando o vazio.

Mãos de pescador
de cana imóvel na falésia
pendurado
numa tarde
de Verão fora de tempo
em que nada
nenhum peixe acontece.

Mãos
que são penas
com a subtileza  dos poemas
violentamente
presas à vida.

Lisboa,  Outubro de 2014

Carlos Vieira

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Vigilância I



Uma luz 
acendeu-se
no 2.° Dt.º
do n.º 48
subiu o estore
delicadamente
alguém
abriu a janela 
acendeu
um cigarro
fumou-o
pausadamente
ageitou
o cabelo
que esvoaçava
e abotou a blusa
insinuante
percebia-se
uma mulher
de meia idade
um sorriso 
desprendeu-se
dos lábios
o seu olhar 
estremeceu
em direção
a um vulto
que denunciou
agachado 
nuns arbustos
ali em frente
uma respiração 
ofegante
não foi perceptível
se era lágrima
ou pingo de chuva
que resvalava
pela sua face
se aquela
auréola 
provinha 
de alegria interior
ou de resquícos de lua
que nuvem
escondera.
Em face daquele
absurdo
confirma-se
a suspeita
hoje já
não se ama
mais assim
por sinais
de peças de roupa
no estendal
e o homem
que é homem
não finge
de flor no jardim.

Lisboa, 20 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

sábado, 18 de outubro de 2014

Chiaroscuro



No mobiliário branco de design contemporâneo à minha frente, sentaram-se duas mulheres de óculos escuros, pediram dois galões, um claro e o outro escuro, as suas roupas eram desportivas e escuras.
Somente os generosos decotes das suas camisolas de tecido leve, de onde ressaltavam seus peitos ebúrneos, contrastavam com a sua atitude recatada e cúmplice, iluminava-as a sua atitude despretensiosa, depois apercebi-me da clarividência dos seus comentários, aconteceu seu riso cristalino.
Não olharam uma vez para mim que era o único cliente do café, omnipresente na ilha da minha mesa branca com os poemas espalhados como barcos numa planície gelada.
A verdade é que para algumas pessoas, nós não somos mais que uma noite escura como o breu, algo que existe na penumbra, na sua sombra ou então somos transparentes.
Tenho ainda uma outra explicação, existem pessoas que tem um raro faro para evitar os solitários e uma aversão incontrolável ao mistério.

Lisboa, 17 de Outubro de 2014
Carlos Vieira


Foto de Lloyd K. Barnes

Fui a Matosinhos...



Fui a Matosinhos, em dia de aviso laranja, o mar erguia castelos de espuma, ninguém conseguia
descortinar nem novos, nem velhos  horizontes, as rajadas de vento varriam das ruas, os papéis e os mais corajosos transeuntes.
Nem me reconhecia de cabelo desgrenhado, reflectido na montra, um perfil actualizado de Ernest de gravata e muito menos génio.
Só voltei a mim, a alguma serenidade na admirável textura do arroz de polvo e dos taninos alentejanos. 
Diria pois que não só se morre pela boca mas também se renasce naquele restaurante de que não me lembro o nome em Matosinhos.

Matosinhos, 16 de Outubro de 2014


Carlos Vieira

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Quatro crónicas para uma morte anunciada



I
Aqui estou
numa área de serviço
de regresso
à solidão profissional
de caixeiro viajante
nos subúrbios da grande cidade
a gozar
um merecido descanso
pedi o pequeno almoço
habito o lusco-fusco da manhã
ergo um sumo de laranja
em cima da mesa
a fumegar  
uma merenda e um café
devoro esta bela poesia matinal
em forma de menu
de cheiros e sabores
e cores
neste lugar impessoal
nesta vertigem de néones.

II
Lá fora os condutores
umas vezes dançam
outras tropeçam
engalfinhados nas mangueiras
das bombas de gasolina
alguns entram em êxtase
aspiram os fluidos do combustível
outros olham boquiabertos
o fluxo dos números
ou a relevância dos preços
sempre com o dedo no gatilho
do diesel sem chumbo.

III
Ali ao lado
na via rápida
circula gente mais ou menos apressada
balanceados
vão à sua vida
de mãos dadas com uma morte lenta
escravos de manivelas e botões
não deixam saudades
fecharam a porta
a qualquer entendimento
numa viagem sem retorno
mas ergue-se um pequeno bafo quente
à sua passagem
uma alusão ao inferno ou ao Diabo
sem enxofre.
IV

Alguns clientes
visitam os escaparates
outros vão diretamente para a fila
todos desinteressados
indiferentes ao outro
que por acaso está ali mesmo ao seu lado
aves de passagem
pela estação de serviço
com colorido de festa
e algumas travagens
e escape livre
sinais de um novo mundo
dos novos tempos
reabastecem
reabastecem
dão movimento
à precariedade da vida.

Lisboa, 17 de Outubro de 2014
Carlos Vieira



quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Esta claustrofobia...

esta claustrofobia
geométrica do betão
sem telhados nem chaminés
nem gatos
esta falta de altura 
e de chão
de um primeiro andar
Lisboa, 15 de Outubro de 2014
Carlos Vieira