segunda-feira, 26 de maio de 2014

O voo da perdiz



Estávamos em Agosto
do meio das videiras
a perdiz levantou voo
ruidosamente
era manifesto
estar embriagada.

O caçador
fora do período
legalmente permitido
assentou a coronha
da espingarda de dois canos
e o voo da perdiz
tremeu no ponto de mira.

Entre uns e outros
o dono da vinha
ia rente à madrugada
e no voo baixo da perdiz
percebia o seu peso
a maturidade da uva
e a qualidade do vinho.

Perdiz e caçador
e dono da vinha
cada um cambaleando
já tiveram um momento
em que se elevaram
brevemente
ao cimo da terra
ignoram-se
em pontos de vistas
e ângulos de visão.

Lisboa, 26 de Maio de 2014

Carlos Vieira

domingo, 25 de maio de 2014

zona de perigo


a morte
espreita
a cada esquina
um pequeno
descuido
e morre-se
estar de olhos
bem abertos
é matar
ou morrer
não pestanejar
no momento
de atirar
quem poupa
o inimigo
às mãos 
lhe morre
devemos
ser sagazes
não descurar
o mínimo sinal
aqui impera
a lei da selva
neste lugar
não existe
o cinzento
quando
muito 
o cor de rosa
pálido
e uma mancha
vermelha
de sangue
que alastra
silenciosa
vencendo
o amor
afogando
a poesia

Lisboa, 24 de Maio de 2014
Carlos Vieira



Marquise



gosto desse teatro
de marionetas
que são as marquises
de rostos
infelizes
que entre cortinas
vislumbro
sombras diáfanas
por trás
dos vitrais
a leveza dos corpos
nas roupas
penduradas 
nos estendais

Lisboa, 24 de Maio de 2014
Carlos Vieira



sábado, 24 de maio de 2014

na falta de esquadria



na falta de esquadria
a luz criava 
uma espécie 
de trapézio
oblongo
na confluência
do betão
separando
o presente
do passado
com uma trave
de castanho
pendurado
um pedaço
de mar 
a devorar
uma laranja
imaginária

Lisboa, 24 de Maio de 2014
Carlos Vieira





sexta-feira, 23 de maio de 2014

Amor ficção e realidade



Dá-me muitas vezes
este frenesim
de estrangular a realidade
e deixá-la cambalear
em estertor até ao fim
e depois ao vê-la
revirar os olhos
beijá-la com despudor
e com compaixão
ressuscitá-la
só assim será então
o amor nos meus braços
a libertação
da vida e da morte
mais do que faz de conta
que te amo
mais do que performance
e avaliação final
ao preço de saldo
e em liquidação total
este é um amor
de todas as ondas
de toda a palavra
e de todo o lugar
de onde te arrasto
e afinal
apenas batida realidade
da maresia e do sal
corpo que abraça
a espuma e o vazio
 no meio da praia
amor fácil
de contentar
e que caminhando
se apaga
à beira-mar.

Lisboa, 23 de Maio de 2014

Carlos Vieira



O meu Alqueva



Contemplo
em antecipação
este meu pequeno
projeto de regadio
o fascínio
de levar a passear
a água
pela horta sôfrega
ela entrega-se
ao seu percurso
de contornar
os caules das couves
e penumbras
de clorofila
de inundar
os canteiros
de fazer
tartamudear
as borboletas
que levantam voo
aflitas
e fazem sussurrar
na pequena corrente
as folhas secas
que leva consigo
de um tempo e lugar
onde os insetos
inventaram a filigrana
e agora navegam
pelo meio do pomar
feitas barcos
onde pequenos bichos
periclitantes
sobrevivem
viajantes
neste pequeno dilúvio
a hora marcada
da rega
e dos território da sede
em dias
de um Verão
que virá
de encontro
a este nosso Alqueva
de irrigar
a imaginação
sinto-me
de súbito
com os pés molhados
e de repente
a corrente da poesia
também me levou
a mim.

Lisboa, 23 de Maio de 2014
Carlos Vieira



quinta-feira, 22 de maio de 2014

Portugal, terra de descobridores



Aqui estamos
na periferia
desta já gasta
Europa
madrasta
que se dizia
solidária
de vista larga
percebemos
de gustação
amarga
de vista grossa
terra
que nos diziam
da salvação
que para nós
tem sido
quase sempre
lugar de exílio
de emigração
só agora que
aqui regressados
já tarde
percebemos
que sendo esta
a Europa
a que rumámos
nunca foi
esta a que sonhámos
e muito embora
caídos na armadilha
que nos montaram
querem ainda
fazer-nos crer
que tudo foi
erro nosso
da nossa pequenez
do nosso ser
vítimas
do “amor ardente”
de sermos sempre
entrega cega
personificação
a um tempo da preguiça
e a outro da ambição
eis-nos aqui chegados
e ainda cansados
e já desejamos
partir de novo
para outra terra
que não faça de nós
os novos escravos
uma nova espécie
de sem terra
nem continente
como dizia o poeta
“cidadãos do mundo”
de outro mundo
de outra Europa.

Lisboa, 22 de Maio de 2014

Carlos Vieira