terça-feira, 24 de setembro de 2013

Comer o pão que o Diabo amassou…



o pão alvo 
no silêncio inoxidável 
antes dos banhos da manhã

o fermento
leveda secreto e inexorável 
num tempo de arame farpado

o forno calado
na boca a cinza imperdoável
das almas incineradas

na toalha sem pão
tremeluz  a estrela imaculada 
se apita o comboio do subúrbio

oiço o cristal
na pedra que atravessa a janela
por ali a noite entra em sua casa

vive no sótão
todo o tempo de infância
que é todo o tempo da sua vida

parte a mãe
apenas por causa da burocracia
o pai foi atrás da mãe e ela não pode ficar sozinha.

Lisboa, 24 de Setembro de 2013
Carlos Vieira


domingo, 22 de setembro de 2013

Analepse para pequenas coisas






A partir de agora só vou falar de coisas mínimas

insetos quase ausentes com seus gestos tímidos.


O movimento invisível de um olhar para a ternura

de um pássaro desdobrando a sua asa em contraluz.


O fulgor de um rosto no apressado rumor do lago

na mais desconhecida angústia das palavras caladas.


E daquelas que em surdina dissemos fora de tempo

até há doce cumplicidade das vozes na porta entreaberta.


A mão pálida é um pássaro pousado sobre o cromado

enquanto a chave roda e desfaz o doméstico equívoco.


Depois sobre as pontes ocorre-me uma ilusão de viagem

uma súbita vertigem de que ali venceremos o tempo.


Vou pelo jardim público e escondo-me na fresca penumbra

circulo cego de cores guiado pelo solfejo das folhas e aromas.


Descortino entre caos o golpe de mestre do carteirista

e a sua dramática desolação perante o vazio do porta moedas.


Emociona-me a mulher com seu pé descalço e sapato na mão

de tacão alto sob a armadilha da calçada portuguesa tão frágil.


Não imaginam como me dói o Corneto derramado da criança

a profunda tristeza do seu olhar deixa-me o coração gelado.


Vou pelas ruas desertas e esmolas no rés de chão do fim das vidas

sorrio aos olhos enrugados de esperas por amores e gatos e gaiolas.


Enfim fico em êxtase no encontro com a imagem de um grão de areia

ali anónimo e indiferente à convulsão que provoca na engrenagem.


Os turistas da grande solidão disparam a tudo quanto mexe ou fica quieto

na grande guerra de roubar e levar para casa toda a beleza do mundo.


Lisboa, 22 de Setembro de 2013

Carlos Vieira

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Praia do Norte



Voltei de novo
a essa visão vestibular
cor de pêssego
em que te desfrutei
articulando
a penugem e o perfume
do teu corpo
onde se acendia uma luz difusa
um sequioso
itinerário da saliva
no papiro da tua pele
de letra cuneiforme
eu era intérprete do crepúsculo
vencido pelo alabastro
dos teus ombros
depois repousava
no delta movediço dos teus seios
e deixava-me levar
na corrente do teu olhar
acossado e límpido
até voltarmos
a ser de novo rio e céu e mar
viajantes da bruma
doce sabor a orgasmo e sal
corpos seminus
debatendo-se em lençóis de espuma
tudo tão extraordinário
e tudo tão previsível
na ida e volta das cartas
e das ondas.

Lisboa, 19 de Setembro de 2013
Carlos Vieira



                                        “Lendo uma carta na praia” de Dominique Amendola

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Eixo Norte-Sul



Oiço o tráfego de regresso a casa
no Eixo Norte-Sul a horas mortas
não há nada de novo na frente ocidental.

Oiço gente que regressa a casa 
mais morta do que viva no Eixo Morte-Sul
não é nada de novo na frente ocidental.

Oiço a longínqua e antiga frente ocidental
no tráfego do Eixo Norte-Sul
gente morta de cansaço de regresso a casa.

Oiço este tráfego de gente quase morta
que vai para a frente ocidental
para o hospital via Eixo Morte-Sul

Oiço o Eixo Norte-Sul dentro de mim
o diálogo de gente quase morta
lâmina do ocidente que leva tudo à frente.

Oiço o tráfego do Eixo Morte-Sul
A sua eternidade dia e noite na minha casa
e o número de baixas na frente ocidental.

A minha casa é a frente ocidental
é desta gente que a ela regressa
eixo de um poema e diálogo Norte-Sul.

Lisboa, 16 de Setembro de 2013
Carlos Vieira

domingo, 15 de setembro de 2013

Um país à procura de si




Matsuo Bashô: "Não esqueças nunca/ o gosto solitário/ do orvalho".

  

Orvalho

sementeira de reflexos

num país de ausências

e de viagens

que se desvanece

onde os arbustos

se empertigam

de intolerância

e estremecem as sombras

de memórias com punhais

num alarde de bichos

pelos atalhos

ao rural retorno

onde se mordia a poeira

e erravam reflexões graves e secas

e elementares

como este dia que nasce

com o sol a prumo

e que se volta sempre

ao princípio de todas as coisas

como os reclusos no pátio da prisão

que reconhecem

o rigor matemático dos objetos

e dos pensamentos

com juros

não se esquece

que nada por si só faz sentido

já lhe cansam

todos os átomos que conhece

os imperativos categóricos

o milagre económico

e a ignorância

de andar em busca

da retidão dos caminhos

a meias com o sucesso

de bom aluno

nação de regresso

a uma velha história

moveram-lhe

uma ação de despejo

agora somos um país de apátridas

onde sobram “duas lágrimas de orvalho”.

 

Lisboa, 15 de Setembro de 2013

Carlos Vieira

 


                                                            Imagem de autor desconhecido

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Canto afinal



De repente
tudo pode ser
o mais puro encanto
que se esconde
num cristal
que desencanto
no anónimo
e manso recanto
de esquecimento
ou memória
de um subtil
momento.

Entretanto
tudo se eclipsa
tímida é a nudez
a nossa sede
é saciada de espanto
só me seduz
debaixo do manto
a lua distante
uma luz à deriva
sobre o abismo
do teu sexo
num voo
que levanto.

De repente
outra vez a máscara
que à pele adere
silente de pranto
que se debate
impotente
em ocultar a volúpia
de tanto desencanto
de tudo ser azul
de ser apenas
céu e mar
nem uma nuvem
uma leve brisa
ou o rumor
da chuva assolando
o teu olhar.

Lisboa, 12 de Setembro de 2013
Carlos Vieira

                                              "Clouds on Namco Lake" por Guang Yuan

domingo, 8 de setembro de 2013

Casa de Vida


I
Desperto
toda a vida que me resta
está ali por perto
oiço o restolhar
dos pequenos passos
das minhas três filhas
a sua dança e a festa
distante nos seus sonhos.

II
Reconheço
que é manhã
porque tu dormes meu amor
nos pequenos objetos domésticos
e ao mesmo tempo
sabes por dentro as distâncias
és tu que tornas suave
o ar e a luz da madrugada
no aroma e sabor das substâncias.

III
Espio o teu sono
Aguardo a absurda pantomina
do teu espreguiçar
pouso os pés
com cuidado
não te vá despertar
e quebrar todo o encanto
deste pequeno mundo
adormecido.

IV
Ando perdido
pela casa
oiço o sono solto
e o murmúrio dos livros
todas essas vozes
que me acompanham
para onde quer que eu vá
essa multidão
onde me escondo
por vezes por medo
e outras por vergonha.

V
Fecho os olhos
esqueço-me de tudo
e regresso ao caminho
da solidão
do desconhecido
de portas abertas de par em par
à casa do mundo
onde vos perdi
meus amigos
onde vos quero reencontrar
eis-me de novo  aqui
perante vós
que renasci
podem entrar
o poema é a minha casa.

Lisboa, 8 de Setembro de 2013
Carlos Vieira