segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Eixo Norte-Sul



Oiço o tráfego de regresso a casa
no Eixo Norte-Sul a horas mortas
não há nada de novo na frente ocidental.

Oiço gente que regressa a casa 
mais morta do que viva no Eixo Morte-Sul
não é nada de novo na frente ocidental.

Oiço a longínqua e antiga frente ocidental
no tráfego do Eixo Norte-Sul
gente morta de cansaço de regresso a casa.

Oiço este tráfego de gente quase morta
que vai para a frente ocidental
para o hospital via Eixo Morte-Sul

Oiço o Eixo Norte-Sul dentro de mim
o diálogo de gente quase morta
lâmina do ocidente que leva tudo à frente.

Oiço o tráfego do Eixo Morte-Sul
A sua eternidade dia e noite na minha casa
e o número de baixas na frente ocidental.

A minha casa é a frente ocidental
é desta gente que a ela regressa
eixo de um poema e diálogo Norte-Sul.

Lisboa, 16 de Setembro de 2013
Carlos Vieira

domingo, 15 de setembro de 2013

Um país à procura de si




Matsuo Bashô: "Não esqueças nunca/ o gosto solitário/ do orvalho".

  

Orvalho

sementeira de reflexos

num país de ausências

e de viagens

que se desvanece

onde os arbustos

se empertigam

de intolerância

e estremecem as sombras

de memórias com punhais

num alarde de bichos

pelos atalhos

ao rural retorno

onde se mordia a poeira

e erravam reflexões graves e secas

e elementares

como este dia que nasce

com o sol a prumo

e que se volta sempre

ao princípio de todas as coisas

como os reclusos no pátio da prisão

que reconhecem

o rigor matemático dos objetos

e dos pensamentos

com juros

não se esquece

que nada por si só faz sentido

já lhe cansam

todos os átomos que conhece

os imperativos categóricos

o milagre económico

e a ignorância

de andar em busca

da retidão dos caminhos

a meias com o sucesso

de bom aluno

nação de regresso

a uma velha história

moveram-lhe

uma ação de despejo

agora somos um país de apátridas

onde sobram “duas lágrimas de orvalho”.

 

Lisboa, 15 de Setembro de 2013

Carlos Vieira

 


                                                            Imagem de autor desconhecido

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Canto afinal



De repente
tudo pode ser
o mais puro encanto
que se esconde
num cristal
que desencanto
no anónimo
e manso recanto
de esquecimento
ou memória
de um subtil
momento.

Entretanto
tudo se eclipsa
tímida é a nudez
a nossa sede
é saciada de espanto
só me seduz
debaixo do manto
a lua distante
uma luz à deriva
sobre o abismo
do teu sexo
num voo
que levanto.

De repente
outra vez a máscara
que à pele adere
silente de pranto
que se debate
impotente
em ocultar a volúpia
de tanto desencanto
de tudo ser azul
de ser apenas
céu e mar
nem uma nuvem
uma leve brisa
ou o rumor
da chuva assolando
o teu olhar.

Lisboa, 12 de Setembro de 2013
Carlos Vieira

                                              "Clouds on Namco Lake" por Guang Yuan

domingo, 8 de setembro de 2013

Casa de Vida


I
Desperto
toda a vida que me resta
está ali por perto
oiço o restolhar
dos pequenos passos
das minhas três filhas
a sua dança e a festa
distante nos seus sonhos.

II
Reconheço
que é manhã
porque tu dormes meu amor
nos pequenos objetos domésticos
e ao mesmo tempo
sabes por dentro as distâncias
és tu que tornas suave
o ar e a luz da madrugada
no aroma e sabor das substâncias.

III
Espio o teu sono
Aguardo a absurda pantomina
do teu espreguiçar
pouso os pés
com cuidado
não te vá despertar
e quebrar todo o encanto
deste pequeno mundo
adormecido.

IV
Ando perdido
pela casa
oiço o sono solto
e o murmúrio dos livros
todas essas vozes
que me acompanham
para onde quer que eu vá
essa multidão
onde me escondo
por vezes por medo
e outras por vergonha.

V
Fecho os olhos
esqueço-me de tudo
e regresso ao caminho
da solidão
do desconhecido
de portas abertas de par em par
à casa do mundo
onde vos perdi
meus amigos
onde vos quero reencontrar
eis-me de novo  aqui
perante vós
que renasci
podem entrar
o poema é a minha casa.

Lisboa, 8 de Setembro de 2013
Carlos Vieira


sábado, 7 de setembro de 2013

Poema de apenas uma noite refugiado

A palavra Tuaregue significa “abandonados pelos deuses“



Martírio
do olhar que fulmina
espinho
cravado no horizonte
exílio
e campo de refugiados
e de extermínio.

As palavras
que a brisa varre
para debaixo
do tapete
da ausência
destilam veneno
pétalas
maceradas.

A noite
é a cimitarra
que corta a direito
não ficará cá ninguém
para contar
o êxodo.

O perfume exala
no deserto
a rosa impiedosa
das dunas
os pés sangram
forçados
peregrinos.

Vão se apagando ali
os rastos e a cólera
perante a fome
no catre
sem remédio.

Miragem sequiosa
do mel dos figos e leite
derramados
respiram o mundo
na epiderme das tendas
de um sono
em sobressalto.

Um puro sangue
vigia o mar de estrelas
o tuaregue
uma ampulheta
sem sentimento
a sua esfinge
é lâmina
de pura solidão
onde resiste
recortando o tempo
de uma tristeza
azul turquesa.

Lisboa, 7 de Setembro de 2013
Carlos Vieira





Amar em prognose póstuma




Já era tarde 
para te amar
onde estava o veludo 
dos teus lábios
e a melodia 
que moldava 
no olhar perspicaz 
o teu dorso desnudo?

Teus lábios
frutos agridoces
agora gretados
perspetiva de um murmúrio
esquisso de um estudo 
em carne viva.

Teu corpo
soergue-se 
num ínfimo instante
tudo no teu torso 
era só 
era apenas vertical
e deslumbrante.

Ali 
no teu corpo
vislumbro ainda 
nos secretos interstícios 
da tua pele 
um rumor 
na alvorada 
de um rio interior.

Reina 
a luz dos teus seios
na penumbra mansa 
dos salgueiros
maldigo ali 
o avaro tecido 
que escondia
a curva da tua anca.

Devo calar-me 
perante a eloquência 
dos teus seios?
devo conter-me
ou precipitar-me?
Tropeçava sempre 
neste vazio
em lugares comuns.

Remetes-te ao silêncio 
as tuas coxas 
fecham-se
como se fossem
a concha do tempo 
torna-se num mistério
sem ti 
tudo é uma perda de tempo.

Sei porque se rendiam 
os vales e os montes
reconheço 
este perfume etéreo 
que os sobrevoava
algures nos confins 
das tuas coxas.

Toldam-se-me a palavras 
derrubam-se as pontes 
pressinto o teu corpo 
irrequieto 
sobre o musgo
e o colmo
onde se despiu a eternidade.

Lisboa, 5 de Setembro de 2013
Carlos Vieira


“Bodyscape labeled as Shin KneeValley created using nude bodies to project surreal landscapes” 
By Carl Warner

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Malaca, terra do homem desterrado

"Nem tu menos fugir poderás deste,
Posto que rica e posto que assentada
Lá no grémio da Aurora, onde naceste,
Opulenta Malaca nomeada.
As setas venenosas que fizeste,
Os crises com que já te vejo armada,
Malaios namorados, Jaus valentes,
Todos farás ao Luso obedientes."

Luís Vaz de Camões (1524-1580)
Os Lusíadas, X, 44.

Malaca, terra do homem desterrado

Não sei qual o mecanismo psicológico que por vezes me deporta para estes longínquos lugares, situada à entrada do estreito do mesmo nome, o que é certo, é que é recorrente depois de navegar num Índico pensamento, fundear nesta terra, onde outrora, os nossos mais rapaces antepassados, ocuparam sem mais delongas o aprazível porto.
Dizia o cronista João de Barros, que este nome significaria em língua aborígene “homem desterrado”, esse atributo faz um secreto sentido com o facto, de frequentemente, o revisitar, tendo-se tornado adereço do meu imaginário, pois sou um pouco dado, vá-se lá saber porquê, a refúgios para me reencontrar e a crises de sociabilidade.
Vejo-me a entrar pela “Famosa”, cozido aos torneados manuelinos do monumento, o que não seria difícil considerando o meu perfil de faquir indiano, de seguida irei escapulir-me para um qualquer mercado oriental em busca de especiarias, rostos e corpos e sorrisos espreitando entre sedas e cobres e o silêncio de respiração suspensa que antecede a dança do ventre.
Naquele sorvedouro de cores, em que associo aromas, consigo varrer para um esconso, a parafernália das preocupações ocidentais, essa masmorra de responsabilidades, onde agonizamos nas inúmeras penas perpétuas, da burocracia, do dia-a-dia.
Embevecido olho as conchas exóticas Cypraeas que se amontam num pano colorido, os olhos orientais reluzindo como contas, por debaixo do turbante do vendedor, perscrutam a minha ignorância ou cruzam a minha astúcia.
Um renque de palmeiras apenas dão ênfase ao meu exílio, o mar está por ali atravessado de azul-turquesa, alguns navios de cabotagem arquejando aproximam-se, enquanto escamoteiam contrabando no cavername, preparam as licenças, afivelam sorrisos, escondem punhais, sempre temerosos dos caprichos do sultão.
Eu sou uma aranha que no soslaio da enxárcia, procuro vantagem sobre os que se perfilam no cais, sobretudo daqueles que como eu, desconhecem por que se encontram ali, o porquê de depois de tanto nos habituarmos à ficção, mesmo sem nos ausentarmos de casa uma milha, nunca saímos do porto, acreditando que já estamos em viagem.

Lisboa, 3 de Setembro de 2013
Carlos Vieira


                                                            Desenhado por Francis Valentijn em 1726