as lagunas
pensamentos
escritos por extenso
afogados no tédio do Verão
na temerária utopia dos peixes
fora de água
são setas de sílex que sobem à tona
reféns de uma verdade profunda
e de razões superficiais
Lisboa, 7 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
quinta-feira, 8 de novembro de 2012
quarta-feira, 7 de novembro de 2012
Ilumi(ter)nura
Contorce-se
exuberante o teu corpo
lânguido
insurgindo-se
contra as arestas
contra o ofício
das horas contratadas
na veemência do seu olhar
urde a artimanha
de veludo
pela fresta aberta
escapa-se a caligrafia
da alma
insubordinada
até ao istmo da melancolia
no leito frugal
espraia-se eloquente
sinuoso
o damasco do seu torso
em êxtase
de espírito possuído
sonhada
ou venerável iluminura
que convoco
só para este momento audaz
e íntimo de ternura
debruçado sobre o abismo
do teu corpo
Lisboa, 7 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
segunda-feira, 5 de novembro de 2012
Os cotovelos...
Os cotovelos
em v suportavam-lhe
o rosto
os olhos embargados
de azul
e a escotilha embaciada
do plâncton
anunciavam a tempestade
da vida
desce a bruma
pelos seus cabelos
em desalinho
no teu olhar aceso
o ricochete
da carícia dos meus dedos
assustada refugiavas-te
num silêncio
ao fundo do túnel
trazes de volta
à paisagem
o guizo da alegria
de um pensamento solto
único
tu és feita
da fibra e do arco
de antes quebrar
que torcer
ouço siderado de espanto
a grande orquestra dos materiais
o siroco que assobiava
e tu nua
no princípio da noite
e tu nua
no zinco das varandas
e tu nua
nas madeiras de mogno que gemiam
quebrando o verniz
tremes de emoção e de frio
nas esporas
de um bárbaro desejo
em apoteose
o rubi dos teus lábios
demoravas o cerco
das tuas ancas de orquídea
o teu corpo alucinante
desmaiado
estandarte azul
sobre o dorso de um cavalo
a galope.
Lisboa, 4 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
“ Rapariga em cavalo” por YOCO
domingo, 4 de novembro de 2012
Em segredo
"A água anónima sabe
todos os segredos. A mesma lembrança sai de todas as fontes."
Gaston Bachelard; "A Água e
os Sonhos"
Peço-te o maior sigilo
e a maior contenção,
tudo o que aqui escutares se cale
contigo,
deixa que as fragâncias da tarde
te acompanhem
e que o teu corpo resvale pelos
córregos da colina.
Tu serás sempre aquele sorriso
o que se fechou na curva
por detrás da fulva luminosidade,
onde reinava a firmeza e a
fragilidade
de um tronco do carvalho.
Nada vou revelar
ainda que sujeito à tortura do
sono,
permaneceremos inteiros e eternos,
flutuando
por cima do rio dos nossos corpos.
As palavras exigem a mais
absoluta reserva
e a discrição mais ponderada,
tudo isto está envolto no segredo
inexplicável da partilha.
Sobreviver no murmúrio do lençol
de águas
que nunca se renderam
e percorrem ainda,
clareiras resplandecentes de
calcário,
bebemos pois
das harmoniosas ânforas de argila,
aplacando a nossa sofreguidão
de amantes e peregrinos.
Atento à sua natureza
o segredo que comungamos
suscita a necessidade
da maior confidencialidade,
pois que só preservando
a nossa serenidade oculta
podemos sobreviver.
Pois caso veja a luz do dia,
caso seja exposto,
nunca irá resistir à curiosidade
mórbida,
ao decantar da sede de conhecimento
e à urgência da ilusão.
Tal matéria
se de público acesso,
será como um violado corpo nu
e a seguir proscrito,
o qual no fim
até o seu mais sagrado e profundo
mistério pode soçobrar,
deixando-se transpor
pela tragédia do silêncio
desvendado.
Uma flor que desabroche em
atmosfera hostil,
prematura poderá ser a sua morte,
à sua volta
tudo ficará um pouco mais frio
e mais duro, sombrio e desnudado
nunca viverá as efémeras sombras
das borboletas.
E quando,
e se nos olharmos
não iríamos mais
perdurar.
Traída essa secreta cumplicidade
dos que viajam dentro de nós,
restava-nos viver para sempre escondidos,
assumindo a falsa identidade
dos refugiados.
Eu que apenas existo
porque tu respiras
e tu que serás sempre
o meu satélite natural.
Minha secreta luz interior
que fulguras dentro de mim,
de tanto te querer minha
e ao mesmo tempo livre,
podes muito sucumbir
sobre ventilada
ou de falta de ar.
Neste protocolo de vigília
zelo pelo sigilo,
defendendo a perfeita alegria
do teu rosto,
o selvagem percurso dos teus lábios
da insana obscuridade
de todas as ameaças
e o segredo que guardo
é tudo aquilo que junto de ti
eu esqueço.
Lisboa, 4 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
“Le double secret” de René Magritte
quinta-feira, 1 de novembro de 2012
Página em branco
deixar o papel de pousio
e nesse claro nada
deixares que o leve um rio
exposto ao ínfimo
e mais leve
excremento de um insecto
à breve
obscuridade de um vinco
ao estigma da nódoa
à leviandade da luz
ao rumor
subliminar da marca de água
cego que leva pela mão
e pressente o frémito
no poema vazio
só ele pode chegar ao sol
e organizar o caos
reacender a festa
e naquele sangue branco
dos homens voltar a ouvir-se
o vento os pássaros e a floresta
Lisboa, 1 de Novembro de 2012
Carlos Vieira
“ Page blanche” de René Magritte
quarta-feira, 31 de outubro de 2012
Um primeiro amor de 1.ª classe
De botins de borracha atravesso os charcos e o canto cristalino do ribeiro, conheço-os de cor e salteado, agora vou orientar a elegante professora, nestes caminhos impraticáveis.
É ainda escura a madrugada, eram enevoados os textos da 1.ª classe, se escolto a minha primeira professora, não quero saber do tempo, nem dos números e letras, quero ficar retido neste ano.
Nunca usei o mata-borrão nesse ano, a professora deu-me o livro do Bambi, pela minha tarefa de guarda-costas.
Eu disse um palavrão, quando me mandou chamar para limpar o recreio, dispensando-me da nobre missão de seu escudeiro.
Ela, no ano seguinte, não regressou e fiquei de castigo para o resto da vida, aparece sempre nesta época do ano.
Lisboa, 31 de Outubro de 2012
Carlos Vieira
Guerra civil
Uma súbita iluminação, uma corrente de ar, o efeito de sopro, o clarão na árvore do medo,
os efeitos colaterais e o estrépito das sirenes.
As pernas e corpos pela terra e pelo ar, as estrelas e o azul do céu sangrando, a entrar pelo
sótão, as botas cardadas e tu sem respirar debaixo da cama.
O combustível no pavio é uma combinação dessa paz podre e do rosnar de ameaças com
escaramuças de permeio. Seguir-se-á, certamente, a declaração de guerra após aquele navio
ou antes um barco a remos, um avião de papel ou a desculpa de uma flor que furou o
bloqueio.
Oiço o assobio do vento na empena e o grito lúgubre na chaminé, o rufar dos tambores,
alguém a contar espingardas. A guerra bate-nos à porta e as crianças vão dormir para cama
dos pais, escondem-se debaixo dos cobertores, caso não tenham sido já todos alistados.
Há um rosto antigo que arde na campânula da candeia que cuida dos soldados feridos,
dos gazeados, neste imenso hospital de campanha faltou a eletricidade.
Todos já fomos atingidos e já ficamos às escuras, tivemos em tantas frentes. Agora,
recordando, também nós confundimos o amor e a luz com a compaixão de uma enfermeira.
Enquanto o Inverno se apodera das trincheiras, a água ferve na cafeteira.
Neste tempo de rações de combate, de comida fora de prazo, os soldados do pelotão aperta-
se-lhe o dedo no gatilho e no coração, enregelados.
As vítimas dos fuzilamentos também se lhes aperta o vazio e um irmão do outro lado da
barricada.
Junto aos muros e labirintos de tijolo das cidades sitiadas, todos agonizamos, comendo o pão
que o diabo amassou e bebemos café sem açúcar.
Entre as rugas de tantas tempestades e batalhas há olhos que cintilam de demência e alegria, outros que faíscam de raiva ou ardem nas lágrimas de fumo e de pólvora, as granadas cegas confundem-se com aves e o esvoaçar dos estilhaços dos sonhos, tornando impossível à mão gentil o amanhecer que procura.
Lisboa, 31 de Outubro de 2012
Carlos Vieira
bloqueio.
Oiço o assobio do vento na empena e o grito lúgubre na chaminé, o rufar dos tambores,
alguém a contar espingardas. A guerra bate-nos à porta e as crianças vão dormir para cama
dos pais, escondem-se debaixo dos cobertores, caso não tenham sido já todos alistados.
Há um rosto antigo que arde na campânula da candeia que cuida dos soldados feridos,
dos gazeados, neste imenso hospital de campanha faltou a eletricidade.
Todos já fomos atingidos e já ficamos às escuras, tivemos em tantas frentes. Agora,
recordando, também nós confundimos o amor e a luz com a compaixão de uma enfermeira.
Enquanto o Inverno se apodera das trincheiras, a água ferve na cafeteira.
Neste tempo de rações de combate, de comida fora de prazo, os soldados do pelotão aperta-
se-lhe o dedo no gatilho e no coração, enregelados.
As vítimas dos fuzilamentos também se lhes aperta o vazio e um irmão do outro lado da
barricada.
Junto aos muros e labirintos de tijolo das cidades sitiadas, todos agonizamos, comendo o pão
que o diabo amassou e bebemos café sem açúcar.
Entre as rugas de tantas tempestades e batalhas há olhos que cintilam de demência e alegria, outros que faíscam de raiva ou ardem nas lágrimas de fumo e de pólvora, as granadas cegas confundem-se com aves e o esvoaçar dos estilhaços dos sonhos, tornando impossível à mão gentil o amanhecer que procura.
Lisboa, 31 de Outubro de 2012
Carlos Vieira
“O Fuzilamento” de Francisco Goya
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