sábado, 1 de junho de 2013

Reconstituição de um hara-kiri


 

Os rastos das sandálias

dirigiam-se para o bosque

por aquele caminho de terra batida

ao meio-dia

os insectos zumbiam debaixo das cerejeiras

podia vislumbrar-se ainda

o samurai

a sua atitude firme e o tronco erecto

a rasgar-lhe a carne

apenas a sombra do sabre

como se fosse um pássaro

nem uma palavra

não pestanejou

o perfume das ervas

era irrelevante

depois

a doçura do sangue

que lhe escorria

no canto dos lábios

a inutilidade e a ignorância da honra

para aqueles que por cá

vão ficando

os restos de um corpo

devorado por animais nocturnos

dirá o relatório de autópsia

sem qualquer margem

para dúvidas

um funeral discreto

digo deserto

suportado pelo erário público.

 

Lisboa, 1 de Junho de 2013

Carlos Vieira

 

 

 

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Animais em vias de reaparição





Foi encontrado sangue

em mamute congelado

no permafrost do árctico

agora sobre o branco manto

poderá correr de novo

o mamute sobre neve

ambos eternos

a tosar a fragilidade

dos primeiros líquenes

na superfície gelada

vergastado pelos arbustos

e pela tempestade

viveremos suspensos

do momento em que a lua

na sua clonada imortalidade

poderá voltar a montar

o extraordinário mamute

e nós ficaremos

por aqui

nesta vil tristeza

de vida exangue

de sonho de colosso adiado

fóssil enclausurado

neste ártico

nesta esperança

de aurora boreal

depois de noite de luar .




Lisboa,30 de Maio de 2013

Carlos Vieira






domingo, 26 de maio de 2013

Reminiscência urbana


 

Sempre fiquei impressionado com a expressão arquitetónica “prédio de gaveto”, embasbacado e sem saber para onde ir, nesta esquina de cidade que tanto tenho visitado e tão desconhecida permanece, procurei no ângulo, a rua que me provocasse a curiosidade ou o conforto, sendo certo, que daquele gaveto, não vislumbrava nada que me pudesse suscitar motivos para grandes apreensões ou especial emoção.

Ali estava, perante o peso dos prédios mais ou modernos, aquários de enormes superfícies mais ou menos espelhadas, aos quais as bicicletas suavizavam as arestas, assumi uma atitude que revelava uma subtil áurea de tranquilidade e uma vã tentativa de me mimetizar, perante tão fria e apressada fauna, a mesma que é comum a todos os anónimos lugares de passagem.

Eis-me pois aqui, remoendo um “gaveto” desta cidade que, por sua vez, me devora vorazmente e me condena, irremediavelmente, ao esquecimento, muito embora, seja provável que vigie atentamente todos os meus passos, “não vá o diabo tecê-las”!

Esse facto pude constatar, face à abordagem que dois agentes da autoridade me fizeram, muito cortesmente, por certo, respaldados em estudada observação e privilegiando uma atitude proactiva, face à minha inexplicável e perturbante inacção que a afinal, não era mais que a minha ancestral indecisão, na estratégica esquina.

Perguntaram-me aquelas coisas banais, que se perguntam aqueles que são vagamente suspeitos, questões de triagem, num inglês são e escorreito, habitual aos povos do norte da Europa, respondi-lhe no meu inglês de serviços mínimos e pude aperceber-me que ficaram relativamente tranquilos, na sua desconfiança ou sagacidade profissional.

No intervalo destas viagens de natureza profissional tento, tanto quanto possível, arranjar tempo para uma incursão, na cidade, por vezes desconhecidas, sendo certo que naquele curto período, há sempre um compromisso que se estabelece, entre visitar qualquer ex-libris do burgo estrangeiro ou ir sentir o pulsar e espreitar os rostos das gentes que invariavelmente, nesta latitude europeia, se mostram contidos, correctos, indiferentes, discretos, pouco deixando transparecer, o que lhe vai na alma ou sinais do tão enunciado sentir colectivo.

Perplexo neste gaveto, deixei que a cidade, por osmose se infiltrasse pelos poros, pelos ouvidos, pelo nariz ou que qualquer brisa fizesse a diferença e me trouxesse um sinal da minha presença na Terra ou que pelo menos, nestes 180º de solidão, me ajudasse a reescrever uma mais auspiciosa e justa concepção do sentido da vida colectiva ou a conhecer o mais subtil sentido do movimento dos indivíduos e das razões da sua indiferença, perante os seus semelhantes.

Naquele gaveto, frente ao mar do Norte ou na esquina da Broadway, estamos sempre divididos por vários sentidos, caminhos, fragâncias, cercados por esta solidão de gente e, por aquela breve suspeita ou profunda indecisão, de não pertencermos a nenhum lugar ou de qualquer forma, aquele ser um espaço reminiscente, incompleto, no nosso interior, a que já pertencemos, que sendo agora de todos, se torna terra de ninguém.

 

Haia, 25 de Maio de 2012

Carlos Vieira

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Reminiscência ou déjà-vu


Senta-se
numa dobra cega da tarde
à espera da morte
na sua torre
um sino
interrompe-lhe
a linha de água da memória
o tempo de bronze
e do medo
espantam-se
duas aves pernaltas
que pela calada
foram levando o horizonte
ouve
entre murmúrios
depois de ter morrido
o sino
que vergasta a natureza
quase morta de tédio.

Lisboa, 24 de Maio de 2013
Carlos Vieira

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Paisagens interiores



Navega uma estrela
de fogo posto
num espelho azul
em labaredas
nesse lago impávido
a lágrima cai
tolda-lhe o sul
sulca-lhe o rosto
decantando
a luz do sal
apaga-se o olhar
âncora no tempo
no gume da pedra
os sinais de fumo
na esquina do vento
paciente a espera
de páginas de espuma
num silêncio adiado
do recôndito país
de inflamados rios
todos conspiram
secretamente
num  lume brando
em suores frios
tudo mergulha
num calmo estupor
no ténue ânimo
naufrágio interior
uma vela trémula
o coração alberga
a lâmina tempera
liberta um balão  
descuidado sonho
ou gesto pueril
assim nos devolve
ao acaso de cinzas
num céu de estanho
cruzamos o deserto

uma noite
de profícua solidão.


Lisboa, 20 de Maio de 2013
Carlos Vieira


 

sábado, 18 de maio de 2013

Constelação


 

 

neste recanto

no beco do tempo

surpreendo

o fogo efémero

dos teus pés descalços

a pousar

o chão de cortiça macia

foi ali que me debrucei

na tua febre

e poderia beijar-te

o teu sono

e a seguir entregar-me

pôr fim

ao teu infinito exílio

 

 

relembro-te

luminosa ou tutelar

o manto diáfano

de um teu olhar

que me descobriu

no palco

onde cresci

na mentira do mundo

e de mim

verdade nua

e etérea

ora furtando-se

entre dedos

ora de unhas rasgando

a carne

esconjurando medos

 

reabro

a gaveta

que range

no vazio de dantes

onde indagavas

a ternura

e também o desejo

intrépido

um colar de pérolas

agora tão frio

pendurado na memória

do teu pescoço

de âmbar

 

descortino-te

no recato da espera

a tua mão

destemida viajando

na penumbra

do armário e o toque

do tecido

que era precisamente

antes da seda

da tua pele

dispo-te de olhos

fechados

enquanto repousa

na cama desfeita

apenas o rascunho

do poema

 

estás algures

ou em toda a parte

única explicação

porque se prolonga

a minha sede

até ao limite reflexo

exasperado

da tua auréola

estou refém

do teu esquecimento

amarrado

à constante assiduidade

dos pássaros

furtivos

 

a casa respira

depois que desenho

de cor

os teus lábios

molhados

sublinhando o gosto

de tuas palavras exíguas

que me levaram

de regresso

em perspectiva

à sofreguidão

do teu corpo

desgovernado

e à máscara de prazer

inaudito

do teu rosto

 

fragmentos

do teu perfume

resvalam

na melancolia dos objectos

quotidianos

com que me deixaste

cercado

e onde tropeço

minha doméstica

e mais nobre

causa

espelho diário

da tragédia

canto e abismo

e ânsia

de voando

só assim poder abraçar-te

íntegra e inteira

serena e sentada

estás tão longe

nesta cadeira de balouço

 

Lisboa, 18 de Maio de 2013

Carlos Vieira

 

 

 
                                             “Sleeping woman (Meditation)” de Pablo Picasso

 

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Vidas estreitas III


 

O quarto e a cama  

lençóis de linho

e silêncio de cal

fotogramas

estilhaços do céu

toda a via láctea

onde contava sonhos

e nódulos

da madeira de pinho

que faziam ora de estrelas

ora de lobos

no coração desta galáxia

onde um repentino

estertor da porta pintada

a tinta de água

fazia de represa

de toda a angústia

na iminência

da declaração de guerra

aberta

pela censura das tuas mãos

sempre delicadas

onde germinavam frágeis

as flores

de tantos pensamentos

numa pétala

num fugaz aroma

vencia-se a distância

e podia ganhar-se a paz

ou crepitar

o fogo no  inverno

quando alastrando no peito

tinhas a medida

do mundo todo

que cabia numa só palavra

trânsfuga dos teus lábios

onde adormecia

e por vezes era a gota

rumor de um sonho

que extravasava.

 

Lisboa, 13 de Maio de 2013

Carlos Vieira

 


                                                  Le rêve du petit Michel – Robert Doisneau