Programas, poetas, sonhos de ópio,
pastores pipilando, e as guilhotinas,
e o sábat das bruxas ao som do Dies Irae,
comédia melancólica e sarcástica
de romantismo sentimental e crítico
desesperadamente triste de si mesmo,
na solidão do espírito perdido
num mundo burguês sem fantasia,
sem mais maravilhoso que o da infâmia,
sem mais espanto que o da hipocrisia.
Tudo isto com bem pouca reserva,
bastante vulgaridade, muito efeito fácil,
e um colorido por vezes novo rico
como os cristais e as pratas dos barões banqueiros.
Mas é música, violentamente
música. Agressivamente
música. Os ritmos
de cadência, colorido, timbres,
estilos, tons - é tudo música.
Da solidão romântica imensamente pública - mas solidão.
Da amargura romântica tremendamente amena - mas uma amargura.
Da raiva de não ser o mundo uma obra de arte,
um indivíduo, a glória, a liberdade.
Música pungente, irónica, raivosa,
ainda saudosa das doçuras clássicas
com deuses imortais (de pedra branca).
Se não sentimos isto, porque a grosseria
cresceu à escala cósmica, nenhuma culpa
acaso cabe a tais visões sonoras,
em que a tristeza sabe imaginar-se
tão puramente um canto de oboé,
com percussões pontuando o mundo a que assistimos,
ao som dos arcos e metais:
grandeza caricata deste inferno amável
(cheio de róseas profundezas - e assassinos).
23/10/1964
Poesia II, Jorge de Sena
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