segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

DO FUNDO DE UM POÇO



Havia muitos poços na infância, ela própria, ainda hoje poço primordial da minha sede, no quintal que se perdeu da casa dos meus pais.

 Lembro-me de olhar para dentro dele e sair em seco do outro lado do mundo, dos caminhos em círculos concêntricos dos peixes e da curiosidade das rãs, onde o meu rosto, na moldura dum céu sem nuvens, lhe fazia adivinhar ainda assim, uma chuva de pedras.

 Ainda está fresca na minha memória, a água que retirava do balde, em alegrias de dar à corda, a inebriante música, feita de arabescos, de sonhos de odaliscas e dos movimentos mínimos e insondáveis dos mecanismos da nora e do percurso final da água, num mármore branco que já fazia parte da minha sede.

 A minha memória do verão é feita do gesticular das picotas nos campos, a que se sucedeu o troar dos motores de rega, junto de circunferências de tijolos vermelhos, semeadas pelos terrenos com cerca de um metro de altura, que nos separavam do abismo.

 Até que um dia, o poço deixou de ser esse mistério profundo, onde os animais da mitologia se poderiam encontrar e se guardavam os tesouros das guerras e dos grandes injustiçados da História.

 O meu pai disse-me, “- Para a semana, vamos limpar o poço!”, tal determinação e tarefa no meu metro e pouco de tamanho, perante os muitos metros de profundidade do mesmo, assumia dimensão que nem o Hércules mais competente ou mais dotado poderia realizar, sem correr riscos desmedidos.

 Todos os dias sonhava com aquele dia, em que desceria à noite do poço e poderia olhar de frente a morte, as rãs e os peixes e os pardais que tinham a ousadia ou a imprudência, de fazer ninhos nas suas paredes.

 Até que chegou o dia e através do sarilho, depois de ser despejada a água do poço, desci nos meus doze anos até aos vinte metros, não sei se estarei a meter água, nem sei se sabem o que é um sarilho, uma geringonça de outro século que nos mantinha a esperança de voltarmos ao século vinte, e que ao mesmo tempo que retirava a terra que se tinham acumulado ou outros detritos no fundo poço, nos trazia também o almoço.

Aquele poço ajudou-me a ver que nas entranhas da terra, o céu era apenas uma luz ao fundo do túnel, a perceber a pobreza e fragilidade dos sonhos confinados e o valor da corrida, em linha reta, pelas estradas de terra batida dos campos, nem que fosse apenas contra o vento ou contra a chuva, ensopado até aos ossos, naqueles outros lençóis de água verticais.

 Lisboa, 27 de Fevereiro de 2012

Carlos Vieira








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