segunda-feira, 10 de junho de 2013

A têmpera dos sonhos dos homens de barro

 

Ainda agora

algures no tempo

pelo meio dia

ouço a sirene da empresa

de cerâmica

era a hora de “despegar”

via-os sair

deuses perplexos

sobreviventes

do fogo e dos fornos

em círculo de cansaço

nessa frágil

circunstância da louça

homens antigos

feitos na amável certeza

de um futuro de barro

a moldar hoje

pelas nossa mãos

 

Lisboa, 10 de Junho de 2013

Carlos Vieira


Foto de autor desconhecido

Memória a preto e branco


 
 

Reuni todo o material:

 

O silêncio expectante e macio

do pincel

os pigmentos da prata

e o rumor das faias

os reflexos do sol de alabastro

de uma materna ânfora

a memória fresca

nas manhãs dos domingos de Junho

depois da missa

ia sem sombra de pecado

aprender a nadar para o açude

e mergulhar a alma purificada

no rio

onde ainda meninos

espreitavamos todos os perigos

voltei-me de novo

para o cavalete

e entretanto tinham secado as tintas

enquanto me deixava

ir com as correntes

esquecendo a algazarra das cores.

 

Lisboa, 10 de Junho de 2013

Carlos Vieira

 


Image of the “topwalls.net”

 

 

sábado, 8 de junho de 2013

Em busca de um algoritmo perdido




Em busca do algoritmo perdido

Nunca tive grande competência 
Para números
Esta manhã acordei
Estremunhado
Às voltas com um algoritmo
Que me poderá mudar 
O rumo da vida
E já agora mudar o mundo
Tal como o conhecemos
A partir daqui
Se as contas no final 
Baterem certo
Todas as actuais projecções estatísticas
terão que ser corrigidas 
E muito daquilo 
Que se considerava errado ontem
Fará parte da perfeição 
Do amanhã
É um exercício que se apoderou de mim
As pessoas passam por mim
Ou na minha insónia
E eu ali vou
Ruminando a próxima operação
E o coração suspenso
Se conseguir
As palavras terão outro peso
O silêncio
Outra leveza
Resolvo as equações mais complexas
E envolvo-me 
Em progressão aritmética
Ultrapassando de forma sustentada
Todos os limites
Conheço o infinito
Destroço o horizonte mais próximo
Visitando a morte
Mantenho-a à distância
Sigo linhas de raciocínio
E sei que devo encontrar o equilíbrio
Algures na confluência
De uma linha de água
Da validação do perímetro
Deste sonho
Eliminar a redundância
No desespero da perspectiva 
Viajar entre a razão
E a perplexidade
Até ao centro da Terra
Olho fixamente
Para o mistério dos frutos
Numa súbita hipnose
De pêndulo
Resolvo o efeito multiplicador
Do sono
Que por fim nos transporta
À densidade da esperança
Ao ruído luminoso
Do Big Bang
Tecido da poeira galáctica
Breve diálogo
De paz entre planetas
Dos parâmetros
Da gravidade libertados
A caminho da beleza única
De um número ímpar
A todos acessível


Lisboa, 8  de Junho de 2013
Carlos Vieira


sexta-feira, 7 de junho de 2013

Poema fora de época para Tristan Tzara


Andei, andei
e vim parar aqui a este triste jardim
no fim de um mundo
onde os cães domésticos alçam a perna
e mijam o crepúsculo
desesperados
depois lambem nas mão do donos
as linhas dos sonhos
onde andam atrelados
e com excrementos em sacos plásticos.
Os peixes vermelhos do lago
no seu ancestral
desconhecimento da vida à superfície
sentam-se nos bancos do jardim
mordem o isco
pretendendo devorar os olhos
dos transeuntes
esses peixes fora de água
descem degrau a degrau
a falta de profundidade
do pântano
do seu pequeno mundo redondo
a que acrescentam
o abismo de obscura solidão.
Os pássaros
divagam nas árvores
na sua política de pequenos passos
e gestos
de jogar às escondidas
de vez em quando o canto
ou será que conversam
escarnecendo
das nossas farsas
arremedos de vida
atingidos por um seu dejeto
inventamos sinais de dinheiro
sobrar-nos-á por vezes 
sentido de humor
ou falta de imaginação.
Lisboa, 7 de Junho de 2013
Carlos Vieira


                                                  Fotografia de Man Ray "Tristan Tzara"

"Tristan Tzara (ou Samy Rosenstock, Moinesti, Romênia, 1896 – Paris, 1963) foi um poeta judeu e francês que nasceu em Moinesti, na Romênia, e faleceu em Paris aos 67 anos de idade. Foi um dos iniciadores do Dadaísmo. Em 1916 em plena 1ª Guerra Mundial (1914- 1918) que durou 4 anos e da qual participaram 18 países iniciada com o Atentado de Sarajevo e finalizada com a rendição dos alemães no Sudoeste Africano, um grupo de de refugiados em Zurique, na Suíça, iniciou o movimento artístico e literário chamado Dadaísmo.
Seu pseudônimo significaria numa tradução livre "triste terra", tendo sido escolhido para protestar o tratamento dos judeus na Roménia. Poeta e ensaísta, participou na fundação do movimento dadaísta em Zurique, em 1916." Wikipedia

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Hora dos lobos



 

O grito

morre na garganta

estrangulado

atónito

perante a inacreditável

inclemência

da até aí

desconhecida

e sombria

realidade.

As palavras

entrecortadas

entreolham-se

nas esquinas

de mão estendida

na penumbra

das cidades desertas.

Engoles em seco

ao verificares

que alguém se apoderou

de todas as estrelas.

Os uivos

da alcateia

que se aproxima

do perímetro urbano

percorrem agora

um humano

silêncio.

 

Lisboa, 6 de Junho de 2013

Carlos Vieira

 

 

              Hour Between Wolf And Dog Betwenn Darkness And Light 1943 by Marc Chagall

 

terça-feira, 4 de junho de 2013

Constrangimentos


Constrangimentos

Áustero
lúgubre país
do medo
entre dentes
desprendem-se
palavras desesperadas
sob vigilância

Atrevimentos medíocres
simulacros
de efémera coragem
um vulto certamente 
delinquente
percorre a noite
em zig-zag
acossado

Habituamos-nos
aos murmúrios
de fome
a pequenos crimes
arrastando a vergonha 
e à inevitabilidade
dos ossos do silêncio
e do ofício

Palavras desfeitas
palavras armadilha
sem rasgo
sem tempo
submersas no musgo
de um futuro luminoso

Vestígios de escaramuças
de um mercado de odores
agridoce
pestilência dos campos da batalha
por uma vida
pelo seu regresso
pela paciência na antecâmara
dos frutos maduros

Incansável dissidência
véspera de um rio
acredito a partir daqui
deste esgoto a céu aberto
depois assisto
à triste precariedade
de néon azul
de uma operação stop
ainda bem 
que está tudo em ordem

Na apertada curva 
de um percurso desconhecido
um nó na garganta
e a encenada morte 
inglória e por acidente
são irrelevantes 
os danos colaterais

Nos ombros desnudos 
que se afastam
a memória vencida
longínqua
de um toque do veludo
afogado em dor de corno
deve aceitar 
com naturalidade
o fim de uma relação

Descrevo na insónia
a ave que pousa suavemente
nas ruínas de um país
anunciando
esse provável
declínio do amor


Lisboa, 4 de Junho de 2013
Carlos Vieira




sábado, 1 de junho de 2013

Reconstituição de um hara-kiri


 

Os rastos das sandálias

dirigiam-se para o bosque

por aquele caminho de terra batida

ao meio-dia

os insectos zumbiam debaixo das cerejeiras

podia vislumbrar-se ainda

o samurai

a sua atitude firme e o tronco erecto

a rasgar-lhe a carne

apenas a sombra do sabre

como se fosse um pássaro

nem uma palavra

não pestanejou

o perfume das ervas

era irrelevante

depois

a doçura do sangue

que lhe escorria

no canto dos lábios

a inutilidade e a ignorância da honra

para aqueles que por cá

vão ficando

os restos de um corpo

devorado por animais nocturnos

dirá o relatório de autópsia

sem qualquer margem

para dúvidas

um funeral discreto

digo deserto

suportado pelo erário público.

 

Lisboa, 1 de Junho de 2013

Carlos Vieira