domingo, 30 de setembro de 2012

E se o amor abalar a Teoria de Locard


 

 

Passou por aqui

a infinita tristeza do seu gesto

o olhar manso que se desprende

a sinfonia da respiração pausada

podia sublinhar

partículas de veneno a pairar

no ar beijado pelos seus lábios

o perfume  de convocar

o desígnio dos pássaros

no eco distante da sua voz

agora tão longínqua

e a feliz contaminação

do seu pensamento

a inconfundível pegada

dos seus pés que tinham asas

no seu voo nocturno

posso esboçar a auréola

da sua ausência

ainda fresca

ainda sem rumo

sei de tudo e porque partiu

e o que aqui ficou

contar-vos-ia

mas não quero falar

depois de perder a vida

não posso dar o meu amor

“ à morte”.

 

Lisboa, 30 de Setembro de 2012

Carlos Vieira

 

                                                                   Imagem no Blog de Barry

 

“Apenas uma vida vivida para os outros é uma vida que vale a pena”

Albert Einstein

 

 

sábado, 29 de setembro de 2012

Fugaz fulgor


 

 

 

Fiquei ali mergulhado na atenção que as cintilações de licra e de pele me despertaram sobre o espelho de água. Perseguia-a, naquela esteira de espuma, a sintonia perfeita do seu “crawl” , a touca azul, de onde despontavam breves madeixas do cabelo loiro.

Antevia que seriam verdes os seus olhos, escondidos por detrás dos óculos de natação e esperei que abandonasse a piscina, deusa esbelta escorrendo água.

Talvez se secasse à minha frente, podia devolver-lhe a toalha, que ela deixaria cair intencionalmente.

Até que oiço uma voz feminina um pouco ríspida, que me diz “Peço desculpa, mas esta é a minha mesa e o meu café!”

Eu quase me engasgo com o prosaico croissant misto, balbucio algumas palavras de justificação, atordoado com a visão que me atravessou o pequeno-almoço.

 

Lisboa, 29 de Setembro de 2012

Carlos Vieira

 

Luminescências de souto 3


 

 

Sopram forte os primeiros ventos de Outono e ninguém estava à espera. No largo do antigo palacete apodrece o luar e oiço gritos - há uns tempos que oiço gritos cada vez mais perto - aos quais se sucede o silêncio e reconheci os Nocturnos de Chopin.

Abruptamente, aqueles foram interrompidos por um estrondo. Uma árvore que viu cederem definitivamente as suas raízes já podres ou um homem esmagado pela dimensão do seu sonho de viagem, tudo isto me assaltou e é recorrente.

Não está fora das cogitações daqueles menos habituados ao mundo das árvores, a hipótese meramente académica da queda, sempre desamparada, de um fruto maduro. Muito embora, não se tivéssemos apercebido de qualquer rumor impaciente de animais que lhe deveria seguir.

Ali, afastado da cena principal, envolto em fumo, após compilação de gestos e palavras murmurados, distingui o espectro de um homem que vendia castanhas.

Cedi à tentação, de sujar as mãos, de tinta de jornal e de cinza e pedi uma dúzia, enquanto aquele calor sólido me descia às entranhas, podia sucumbir sobre o restolhar inquieto dos tempos e das folhas dos castanheiros e voltar a ouvir, o tal piano solitário.

 

Lisboa, 29 de Setembro de 2012

Carlos Vieira

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Luminescência de um souto 2


 

 

a criança entra pelo souto

as castanhas são sonhos

e caiem nas linhas de água

frutos secos que se afogam

antes de verem a luz do dia

e se dormem sonos eternos

hão-de sonhar peixes de rio

vidas penduradas em anzóis

faiscando sangue e azul metal

e escamas e sorrisos e mãos

frágeis e os pequenos sóis

que resistem presos à linha.

 

Lisboa, 28 de Setembro de 2012

Carlos Vieira

Luminescências de um souto


"… And the sun was shining as it’s never shone before in 1944. Our chestnut tree is in full bloom. It’s covered with leaves and is even more beautiful than last year.”

               Anne Frank , Diary of a Young Girl

 

 

 

na cúmplice aquiescência

dos castanheiros

uma leve brisa

tece na clorofila

um devaneio de água

que a nuvem de corvos

empalidece

regurgitando

estridentes vocábulos

e no ventre macio

do ouriço verde

um pequeno coração

amadurece

 

Lisboa, 28 de Setembro de 2012

Carlos Vieira

 

 

                                     “Chestnut tree in Blossom” de 1887, por Vincent Van Gogh

terça-feira, 25 de setembro de 2012

A infância a preto e cinzento


 

 

Tordos e melros

habitantes de sombra

ou da prata.

Naquele dia aprendi

o v de visco.

 

Aves tão tímidas

entre flores de oliveira,

tão rara e ausente

e tão de Outono.

Lembro-me da primeira fisga

e da sofisticação

dos elásticos franceses.

 

Reflexos de pássaro

nos olhares de azeitona,

tão madura

tão escura

tão pura.

Foi coisa de que nunca gostei.

 

Entretanto,

escorre um rio de luz

em silêncio

no lagar de azeite,

onde meu pai era Marte

entre máquinas,

para mim o seu regresso

de madrugada

provindo do Inferno,

era triunfal.

 

O silêncio do tordo

o chilrear do melro

com muito pouca acidez.

Tenho os pés molhados,

da humidade da chuva

dos anos sessenta.

 

Os aliados do vento

nas oliveiras

de desgrenhadas

cabeleiras.

No sopé das serras

fotos a preto e branco

de camponeses

que varejam

o mundo rural

e a lavoura.

 

Adormeço,

enquanto lá fora

nas intempéries

cinzentas da infância

esvoaçam

tordos e melros.

Tudo sonhos e lampejos

a preto e branco

ou mais correctamente,

a preto e a cinzento.

 

Não me lembro de outras cores,

de qualquer forma, agora não me dão jeito.

 

Lisboa, 24 de Setembro de 2012

Carlos Vieira

 

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Natureza quase morta



Depois de derramar
todo o leite do dia,
vejo um branco mar,
avançando no seu amor
pelo dourado pinho,
na sede da toalha de linho.
Vazia, a garrafa na mesa  
é um farol prenhe de luz
de fado e de tristeza.
Porém, não adianta chorar
sobre o leite derramado.

Lisboa, 24 de Setembro de 2012
Carlos Vieira