sábado, 31 de maio de 2014

Habeas Corpus



O meu cárcere
é o meu corpo
e a minha falta de ar

é ao tomar banho
no poleiro de uma flutuante
um pássaro a cantar

estou preso a mim 
e se de ti me encanto
mais confinado me sinto

no peito labaredas
e nas paredes do estômago 
as borboletas de espanto

e se num golpe 
de asa e de inquietação
acima dos muros me levanto

logo vem a gravidade
da vida pôr termo à evasão 
e me puxar para o meu canto

e ao meu ouvido
me lembrar o meu lugar
a minha idade

a necessidade
de manter o que resta
do corpo que foi festa

a esperança e o sonho de vida
o mais tarde possível
me libertar do corpo prisão.

Lisboa, 31 de Maio de 2014
Carlos Vieira




quarta-feira, 28 de maio de 2014

Jardim de Inverno II



As plumas
macias
do seu chapéu
sobre o sobrolho
eram fustigadas
pelo vento
agreste
que se tinha
levantado.

A serenidade

dura 
do seu rosto
passou do alabastro
ao metal
irreconhecível
forjado
no fogo da paixão
de lágrimas
amargas
e da loucura.

Tudo aquilo

poderia
ser uma cabala
mulher felina
apanhada
na sua própria
armadilha.

Quem conheceu

aquela mulher
a sua bondade
constava
ser impossível
que pudesse
sobreviver
impassível
naquele gelo.

A eloquência

da sua carícia
a sua presença
etérea
evoca o íman 
efémero do olhar.
O meu puro 
pudor
diante da sua tez
de ouropel
húmida
do relento
as minhas mãos
a passar a toalha
com que a havia secado
à volta
da tua cintura
tão devagar
beijo a beijo
poro a poro.

Um pequeno lapso

deixa a dançar
no meu espírito
o pêndulo
da sua ida e vinda
perante
os meus dilemas
na paisagem sépia
do regresso
ao beijar
indolente
à sugestão
do teu perfume
em recônditas
passagens.


Lisboa, 28 de Maio de 2014

Carlos Vieira

Hoje ao despertar



Hoje ao despertar
já estava morto
precisamente
agora que ia
começar 
uma nova vida
e que sabia
o que fazer.

Lisboa, 28 de Maio de 2014
Carlos Vieira

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Educação musical

tive um padre
nas aulas de solfejo
e a primeira namorada

ali percebi nos teus olhos
a trajectória 
das cascas de laranja
e a relevância da música

no sobe e desce
das pautas
aspirava um primeiro beijo

dos teus lábios
soltava-se
um aroma a tangerina

no piano
as teclas confundi-as
com os gomos

aquelas
na sua transcendência
de motivos
eram nas tuas mãos
em concha

no prolongamento da escuridão
do anfiteatro
estrelas cintilantes
a pairar

teus dedos 
finos e atrevidos
no abismo surpreendido
dos meus bolsos

Lisboa, 26 de Maio de 2014
Carlos Vieira


                                                        The Music Lesson de Vermeer

estrangeira



apenas conheci
a luminosidade
do teu corpo nu
depois 
que atravessaste
a cortina 
de água

o teu rosto
sonhado
ao tocar
no outro lado do espelho
e o meu dedo 
à volta do infinito
da chávena
de café

na húmida
vertigem do teu olhar
cega-te
a altura do sol
tu eras para mim
apenas a contraluz
ou quando muito
uma miragem

foste sempre
a última fronteira
e no abraço
em que presumi
que te entregavas
apenas me davas
as boas vindas
em tudo resto
orgulhosamente só
inabalável estrangeira

Carlos Vieira



O voo da perdiz



Estávamos em Agosto
do meio das videiras
a perdiz levantou voo
ruidosamente
era manifesto
estar embriagada.

O caçador
fora do período
legalmente permitido
assentou a coronha
da espingarda de dois canos
e o voo da perdiz
tremeu no ponto de mira.

Entre uns e outros
o dono da vinha
ia rente à madrugada
e no voo baixo da perdiz
percebia o seu peso
a maturidade da uva
e a qualidade do vinho.

Perdiz e caçador
e dono da vinha
cada um cambaleando
já tiveram um momento
em que se elevaram
brevemente
ao cimo da terra
ignoram-se
em pontos de vistas
e ângulos de visão.

Lisboa, 26 de Maio de 2014

Carlos Vieira

domingo, 25 de maio de 2014

zona de perigo


a morte
espreita
a cada esquina
um pequeno
descuido
e morre-se
estar de olhos
bem abertos
é matar
ou morrer
não pestanejar
no momento
de atirar
quem poupa
o inimigo
às mãos 
lhe morre
devemos
ser sagazes
não descurar
o mínimo sinal
aqui impera
a lei da selva
neste lugar
não existe
o cinzento
quando
muito 
o cor de rosa
pálido
e uma mancha
vermelha
de sangue
que alastra
silenciosa
vencendo
o amor
afogando
a poesia

Lisboa, 24 de Maio de 2014
Carlos Vieira