sábado, 22 de fevereiro de 2014

Histórias nocturnas de amor e morte



I

Foi
na noite 
que estava 
escura 
como breu
que deu
à luz
o filho das trevas.

II
A noite 
estava dura
a vida 
não o estava
menos
um estâmpido
após o clarão 
pôs fim
às duas.

III
A noite 
estava de breu
e a morte 
era redundante
a acesa
discussão
não trouxe
mais luz.

IV
De tanto 
a nomear
pode ser 
que o fira
de morte
nas trevas
com golpes
de luz.

V
Subitamente 
um relâmpago 
iluminou
seu rosto 
foi como 
se iluminasse
a selva inteira.

VI
No breu 
da noite 
esconde-se
a vida 
obscura
no esconso
do tempo
há espectros
de morte
ensaiam
danças
macabras.

VII
No breu 
escuro 
da noite
um beijo
de morte
partam pois
os dois
deixem-nos
em paz.

VIII
O escuro 
da noite 
estava 
de breu
estava
a noite 
escura
deu uma
cabeçada
que até viu
estrelas.

IX
De tanto 
lhe bater
pode ser
que haja
fogo
que faça
faísca
que haja
chama
e evidência
para o prender
por violência
doméstica.

X
Estremunhado 
por tanto
Inferno
vou tacteando 
o teu corpo
és tu o sol 
que repousa 
à minha beira.

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira

Olhar como quem despe



- Queria um café!
- Normal.
- Sim, normal.
Não dirigiu naquele dia a palavra a mais ninguém. 
Não consegue passar sem aquele cafezinho matinal e aqueles dois dedos de conversa sem açúcar.
A verdade é que nunca foi uma mulher de muitas palavras e naquele estabelecimento encontrou o empregado perfeito. Aquele que não se mete na vida de ninguém, não pretende fazer conversa. A verdade é que detesta café frio ou acompanhado de amabilidade.
O café chegou a fumegar ali ou canto do balcão, onde sempre se senta, num daqueles bancos altos que tem a medida certa, à sua altura, nunca gostou de ficar empoleirada mas também não gosta de ficar atarracada, numa cadeira muito baixa.
Pega na chávena e aquece nelas as mãos, depois leva-a aos lábios e há um momento em que um cedro, do outro lado da rua, a intercepta, personificando um silêncio vertical.
O café está como sempre na temperatura certa, o mesmo lote, fecha os olhos por um momento, bebe mais um trago, o líquido castanho acende-lhe alma.
Da carteira retira as duas moedas habituais e entrega-as sempre, na palma da mão do empregado que lha estende, solícito, como se a estivesse a cumprimentar, em oração, sem olhar para o dinheiro, olha-a como se a despisse, meticulosamente.
Apressa-se então e quase foge em direção à rua. Sem nunca o admitir, é dos poucos momentos em que se sente, verdadeiramente, em perigo, aquele incidente diário, de frações de segundo.
Interroga-se e confessa temer, o que será da sua vida, se um dia, nesse ritual da manhã do café, lhe faltar aquele olhar.

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

Mãos no ar! Isto é um assalto!

- Mãos no ar! Isto é um assalto!
A empregada do balcão obedeceu prontamente, olhou aquele homem de gorro e máscara, a arma poderia ser um brinquedo de miúdos, era Fevereiro, Carnaval. Os seus óculos graduados começaram a ficar embaciados e uma gota de suor descia-lhe pelo lado esquerdo do rosto.
O assaltante aproximou-se de si, apenas para a revistar, foi então que reconheceu aquele perfume e desmaiou, caindo de novo nos braços do único ladrão que a roubou na vida.
Ouviu-se o estâmpido de um tiro, um disparo acidental e o estrépito da arma caída a deslizar no chão imaculado do azulejo.

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira



Consulta de rotina

Senta-se 
no sofá 
na enorme
sala 
de espera
do mundo.

Aguarda
a consulta
de vez
em quando
quer 
que alguém
a veja
por dentro
e por fora
o seu mundo.

Os autofalantes
gritam 
o seu nome.

Já há muito
que só 
está 
neste mundo
para fintar 
as dores.

Levanta-se
farta
de esperar
já não quer
que ninguém
a veja
de tanta
solidão
já esqueceu 
o seu nome.

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

O cão d'água português



Um cão vadio
no entretanto invade
o meu campo de visão
tolda-me a imagem
e interrompe-me
o pensamento.

Olha para mim
estudando-me a reação
alça a perna 
e marca território
faço parte da paisagem
foi o seu único
julgamento.

Prossegue 
o seu destino
ao fundo da estrada
abana a cauda 
de contentamento
pois nada mais tem
senão o mundo.

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2014


Carlos Vieira

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

História de um pequeno passo



Faz hoje 44 anos 
que o homem 
punha um pé na lua
a preto e branco
eu punha um pé 
pela primeira vez
no Jardim da Estrela
tudo ao vivo e a cores
para a posterioridade
hoje estas memórias
ocupam o mesmo peso
elevam-se no espaço
com a mesma gravidade
para mim feliz coincidência
irrelevante para a humanidade.

Carlos Vieira

Sei que o teu olhar...

Sei
que o teu olhar
é ainda
um pássaro
em chamas
a atear
esta árvore
de sangue
onde resido
abandonado
templo
sombra
e eco
do que  ficou de ti.

Lisboa, 21 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira