sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

No crepúsculo...

No crepúsculo
de ferrugem
do fim de tarde
acendem-se efémeros
reflexos de quartzo
a meia encosta
da Serra dos Candeiros
a descoberto
com as últimas chuvas
os moinhos eólicos
são pássaros
pesados de mais
para levantar voo
eu faço de D. Quixote
desenganado.

Porto de Mós, 19 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira

Poema para um primeiro beijo

Ali
para os lados
da Mira de Aire
nuvens de chumbo
entre mim e ti
a céu aberto
o amarelo torrado
do calcário
antecede a noite
o rio Lena
serpenteia
numa demência
ou ciúme
ou juventude
tardia
eu como tangerinas
sentado no mocho
do quintal
o castelo 
de Porto de Mós
derrama
suas duas torres
de verdete
na paisagem
e tu regressas
aos contos 
cor-de-rosa
no giz 
na ardósia
acendo sonhos 
hieróglifos
para ti
a preto e branco
ecoa na praça
solar
o teu primeiro beijo
apedrejado
no pelourinho
desse tempos
meu padrão 
de descobrimento
e nos arredores
a arengar
as rolas
nos pinhais
e as velhas 
nos portais
testemunhas
pouco credíveis
intriguista
da história.

Porto de Mós, 20 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira

Embuste



Podia discutir-se 
se foi a fome
que o cegou
se foi o olho gordo
facto
o tordo arisco
caiu na armadilha
de visco 
lição
nem tudo 
o que luz 
é a azeitona
de azeviche
servida 
na bandeja
de prata 
da oliveira.

Porto de Mós, 19 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira

Poema com magnólias

Poema com magnólias 

Oiço-a respirar
com dificuldade,
agitada
das coisas 
por dizer, 
entaladas
na garganta
-tu que sempre foste 
tão clara –
por dentro de mim
é directa a proporção,
a surpresa
com que aumenta
o meu batimento
cardíaco
e um estremecimento
perturbador,
uma calada
preocupação.

Olho pela janela
lá fora
e vou pela tua mão,
pela vereda
de um outro tempo,
em que nos agachámos 
a observar
com a contida
respiração 
uma raposa
de ficção,
atenta ao volume
do restolhar
do coelho, 
nas folhas secas
do bosque ali perto,
pelo princípio
do outono.

De qualquer forma,
pressente-se
o crepitar 
e a ténue chama
de vidas,
presas por um fio,
por um momento
olho para ti,
nos teus olhos
pequeninos
focados no firmamento
e eis que desce 
uma lágrima,
a última gota 
que me afoga.

Tudo isto 
devia ser apenas
uma gripe, 
fruta da época
e não é essa história
da extensa lesão
no parietal direito,
voltaste 
a jogar às escondidas
sem ter idade 
para isso,
neste tempo
tão propício 
ao desencontro.

Não minha amiga,
assim não vale
ires esconderes-te 
no hospital
e só te poder encontrar 
à hora da visita. 

Lembras-te 
que a brisa denunciou
a raposa
e que ainda 
vem aí a Primavera
que temos 
muitos passeios
por dar
pela alameda
das magnólias
que neste poema 
plantei para ti.

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Esta vida são dois dias e o carnaval são três


Aqui estás neste exílio
na berma do teu país
observas inquieto 
a louca correria da turba,
palavra
que nunca tinhas utilizado
na vida
pois que seja bem vinda!
tu sempre quiseste
passar despercebido
e simultaneamente
viveste nesse constante esforço
de não te meteres na vida de ninguém.
“O Sr. aí, viu alguma coisa?”
Olhavas para trás,
como se as palavras se dirigissem
a outra pessoa
e acenavas negativamente com a cabeça,
indiferente
ao compromisso de cidadão responsável
que te era exigido.
Tinhas muito mais do que fazer
embora desempregado.
Aqui sobrevives
neste faz-de-conta
nesta faz e desfaz.
De qualquer forma
nada se lhe pode apontar,
o seu comportamento
é irrepreensível
tem a sua conta de medalhas e de louvores
imaculado o processo individual.
Hoje
ingressou no corso carnavalesco
por acaso,
ia a passar
envergando a sua máscara ancestral
é certo de esgar um pouco mais acentuado
devido ao ajustamento
mais tolhido
que lhe foi ficando do desemprego
de longa duração.
Neste altura do campeonato
não lhe dava jeito
nem a ele nem aos filhos
menores,
não podemos desistir.
Foi engolido no turbilhão
dos foliões,
tristezas
não pagam as dívidas
nem as suas nem a do país.
Lisboa, 17 de Fevereiro de 2015
Carlos Vieira

Tempo de dissónias e dormências


O galo cantou
às quatro da madrugada
da hora antiga
por simpatia
ou por acordo tácito
outros tantos cantaram.
De resto
nada mudou
nas madrugadas
que cantam
e nas que ficam
em silêncio.
Rezam as estatísticas
que se verifica
a subida em flecha
do consumo
de Valium ou melatonina.
Constata-se
que cada vez mais gente
sofre de insónias
e outras perturbações
do sono.
Durante o dia
cruzamos
com muitos sonolentos
e os sonâmbulos
e gente que nunca dorme.
A toda a hora
na cidade irrompe
a inclemência
dos despertadores e alarmes
esses galos mecânicos.
Vive-se por turnos
e horas extraordinárias!
A disponibilidade
e as condições
para o sonho
sofreram drástico
retrocesso.
A população de galos
acompanhou
aquele declínio
e de galo
cada vez menos
há quem cante.
Lisboa, 15 de Fevereiro de 2015
Carlos Vieira


quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Teatro de sombras



No fio 
na horizontal
eram apenas molas de plástico 
multicores
reconheci depois
as tuas mãos ao alto
por detrás da roupa húmida
que estendias
o teu rosto esquálido
e que sempre se esconde
adivinho 
o tremeluzir do teu olhar 
o vai e vêm da tua dança ao longo
da corda bamba
voltámos a ser involuntários
intérpretes do frio
do absurdo
silhuetas atentas no vazio
confinados às marquises do mundo 
articulamos
inadvertidamente
o esgar e o gesto e as palavras
dos bonifrates solares
que faziam sentido
e que ficaram
por dizer.

Lisboa, 11 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira