sexta-feira, 23 de maio de 2014

Amor ficção e realidade



Dá-me muitas vezes
este frenesim
de estrangular a realidade
e deixá-la cambalear
em estertor até ao fim
e depois ao vê-la
revirar os olhos
beijá-la com despudor
e com compaixão
ressuscitá-la
só assim será então
o amor nos meus braços
a libertação
da vida e da morte
mais do que faz de conta
que te amo
mais do que performance
e avaliação final
ao preço de saldo
e em liquidação total
este é um amor
de todas as ondas
de toda a palavra
e de todo o lugar
de onde te arrasto
e afinal
apenas batida realidade
da maresia e do sal
corpo que abraça
a espuma e o vazio
 no meio da praia
amor fácil
de contentar
e que caminhando
se apaga
à beira-mar.

Lisboa, 23 de Maio de 2014

Carlos Vieira



O meu Alqueva



Contemplo
em antecipação
este meu pequeno
projeto de regadio
o fascínio
de levar a passear
a água
pela horta sôfrega
ela entrega-se
ao seu percurso
de contornar
os caules das couves
e penumbras
de clorofila
de inundar
os canteiros
de fazer
tartamudear
as borboletas
que levantam voo
aflitas
e fazem sussurrar
na pequena corrente
as folhas secas
que leva consigo
de um tempo e lugar
onde os insetos
inventaram a filigrana
e agora navegam
pelo meio do pomar
feitas barcos
onde pequenos bichos
periclitantes
sobrevivem
viajantes
neste pequeno dilúvio
a hora marcada
da rega
e dos território da sede
em dias
de um Verão
que virá
de encontro
a este nosso Alqueva
de irrigar
a imaginação
sinto-me
de súbito
com os pés molhados
e de repente
a corrente da poesia
também me levou
a mim.

Lisboa, 23 de Maio de 2014
Carlos Vieira



quinta-feira, 22 de maio de 2014

Portugal, terra de descobridores



Aqui estamos
na periferia
desta já gasta
Europa
madrasta
que se dizia
solidária
de vista larga
percebemos
de gustação
amarga
de vista grossa
terra
que nos diziam
da salvação
que para nós
tem sido
quase sempre
lugar de exílio
de emigração
só agora que
aqui regressados
já tarde
percebemos
que sendo esta
a Europa
a que rumámos
nunca foi
esta a que sonhámos
e muito embora
caídos na armadilha
que nos montaram
querem ainda
fazer-nos crer
que tudo foi
erro nosso
da nossa pequenez
do nosso ser
vítimas
do “amor ardente”
de sermos sempre
entrega cega
personificação
a um tempo da preguiça
e a outro da ambição
eis-nos aqui chegados
e ainda cansados
e já desejamos
partir de novo
para outra terra
que não faça de nós
os novos escravos
uma nova espécie
de sem terra
nem continente
como dizia o poeta
“cidadãos do mundo”
de outro mundo
de outra Europa.

Lisboa, 22 de Maio de 2014

Carlos Vieira


quarta-feira, 21 de maio de 2014

Casa em ruínas

Na ruína, de paredes eram meia dúzia, resistem ainda duas janelas, dois olhos vazos que nos expõem o interior da casa. Destelhada, continuam de pé uma daquelas portas em duas folhas e com bandeira, de tinta ressequida, de um verde velho a descascar.

As maçanetas ainda ninguém as levou, pode algum desgraçado, procurar abrigo, bater à porta, ela dará resposta, escutando-se do lado de dentro um vento familiar, sem se aperceber que se encontrava ouvir a si mesmo, numa noite de ventos uivantes, depois pode ali repousar e descansar "os ossos", a céu quase aberto.

Percorrida a habitação apenas uma arca de pinho, a apodrecer a um canto, daquelas antigas, onde se guardava a ervilha, o feijão e outros legumes.

Cresciam uns tufos de ervas, aqui e ali esventrando o soalho. Das paredes de caliço esbranquiçado, trechos de ferrugem lacrimosa, escorriam de cima das parede de adobe ou das frestas que foram fazendo a sua assinatura.

Percebia-se a lareira, não restava, um aroma da comida ali cozinhada, nem um ronronar de histórias para adormecer ou para nos manter acordados, uma ladainha de preces, memórias de fomes e farturas.

Ali estava um despojo de navio vagamente familiar, no baldio abandonado, a vaguear nas suas quatro assoalhadas, desaparecido na guerra ou num colapso do terramoto.

Eis pois, perante vós, a imagem daquilo que resta de um lar que se desfez, da desertificação de um país que o fluxo migratório e o magnetismo das cidades acentuou. 

Estas são algumas das explicações que temos mais à mão, para aquela ruína, tão válidas como outras quaisquer. 

Porém, reconstituir os lugares, esses anónimos territórios, estes ninhos de amor perdidos no tempo, ainda nos aquece, nestes dias frios, do fim de Maio.

Lisboa, 21 de Maio de 2014

Carlos Vieira

Poema da minha desumanidade



Isto aqui é o mundo
e aquele ali sou eu
tem sido sempre assim
mais perto do mundo
do que estou de mim
muito embora longe
sinto-o um filho meu
um universo que criei
qual o princípio e o fim?
reconhecer à distância
aquilo que me pertence
e aquilo que deixarei?
na minha ausência
serão apenas vestígios
do silêncio e do caos
efémeros sinais da idade
a caminho do refúgio
onde recupero folgo
para que o mundo
que por várias razões
tantas vezes perdi
regresse ao corpo
da minha humanidade.

Lisboa, 21 de Maio de 2014
Carlos Vieira

domingo, 18 de maio de 2014

Cantorio

Vou até junto
da margem
e pergunto, 
- onde vais rio
que eu canto?
este não 
me responde,
considerando
talvez,
na sua sábia
longevidade
e eloquência
da corrente
que um pouco 
mais de água
e menos vinho
e sol na cabeça,
aumentariam
a minha 
clarividência!

Lisboa, 18 de Maio de 2014
Carlos Vieira

Biombos, lanternas e papagaios



Lanternas chinesas
no arraial
pássaros de origami
ao sabor
da brisa primaveril
um bailado hexagonal
festa de poemas 
de vida efémera
onde ardem
em pavios
por uma noite
almas censuradas 
uma chama interior
papagaios 
e balões de papel
que sonham
despenhar-se
das estrelas e do céu
amarrados
a versos e estribilhos
por um cordel
à espera 
que o fogo 
daí a instantes
os liberte 
deste espartilho
das sombras 
bruxuleantes
desta mão invisível
que nos tutela.

Lisboa, 18 de Maio de 2014
Carlos Vieira