sábado, 8 de março de 2014

Flash VII



Inclina-se
sobre o bebedouro
de mármore
e o repuxo 
de água fresca
é uma flor que emerge
que lhe sacia 
a sede
da infância
e lhe seca as lágrimas
de hoje.

Lisboa, 8 de Março de 2014
Carlos Vieira

O desencontro

Chegou à porta da sua casa no beco sem saída, o seu coração bateu desesperadamente, esperando que não fosse tarde, irremediávelmente tarde. A noite estava escura como breu ponteada, por uma ou outra luz acesa nas casas.

Veio a voar com várias hipóteses de acidente, por milímetros e infrações graves pelo caminho. Na sua cabeça, só havia espaço para o ruído crescente, ensurdecedor, das suas últimas palavras. Esperando que as mesmas, não tivessem sido as últimas.

Nem reparou que um vizinho, olhava inquieto, umas vezes para si e depois para a janela do primeiro andar, onde um profundo silêncio e vazio reinava. Não era um bom sinal, ali existiam meia dúzia de casas e de carros, pelo que ela já reconhecia o ruído do seu, um agonizante Golf, de dez anos de maus tratos. 

De modo que quando saía da viatura, logo se deparava com aquela confluência feliz do sorriso dos lábios e do olhar a pairar, por cima da floreira e a mão dela tão delicada, a afastar a cortina de renda branca, que coava a luz e elegia a sua esbelta silhueta.

Não foi o que hoje aconteceu, pelo que agora aguardava ansiosamente, que ela lhe abrisse o trinco que conhecia, ao cimo das escadas. Arrombaría a porta, se dentro de poucos minutos não houvesse resposta do outro lado.

" -Não aguento mais! Vou cometer uma loucura!"

Foram as suas últimas palavras ao telefone, as mesmas contrastavam com a aparente serenidade do seu último encontro. Sendo certo que o trabalho do escritório não lhe tenha permitido nos últimos dias acompanhá-la como devia, nada fazia prever, o dramatismo com sabor a ultimato daquelas palavras, não só para si mas tambêm para ela.

Já se preparava para ganhar balanço e deitar a porta abaixo, quando o vulto de um homem de alguma idade, envolto na sombra um pouco familiar, lhe perguntou com acento vagamente ameaçador.

 "-O que é que o senhor quer? Não acha que não são horas de incomodar as pessoas?"

Perplexo, acenou algo que se podia confundir com uma desculpa, meteu o rabo entre as pernas e deu meia volta. Na sua cabeça zuniam inúmeras interrogações, abismos, silêncios inexplicáveis, o implacável avanço do vazio, da perda, do futuro da ausência e da perda de sentido.

Chegou a casa, não sabia por onde passou, guiou como um autómato, teve uma estranha dificuldade em estacionar. Retirou do bolso o molho de chaves, não reconhecia qual delas era a do seu apartamento. 

Abriu a porta e foi só devido àquele inesperado caos que se instalou no seu coração e cabeça 
que não se deu conta, de que um perfume pairava no hall de entrada. 

Subitamente, sentiu os braços daquela mulher que julgava perdida em seu redor e suas pernas em tenaz a impedirem-no de avançar, de partir.

"- O meu pai apareceu lá em casa e vai ficar uns dias. Não conseguia estar mais tempo sem te ver, meu amor!"

Lisboa, 8 de Março de 2014
Carlos Vieira

Flash VI



Trazia barba de meses e sobretudo de anos, desemprego de longa duração e um olhar de bicho a condizer, de quem transporta resignado a sua cruz.

Vendia pensos rápidos ao desbarato para sobreviver no exílio do seu próprio país, gravemente ferido, vendido agora ao desbarato, depois que viveu acima das suas possibilidades, proclamam alguns peritos em economia e em estudar factores de sustentabilidade.

Havia condutores que abriam os vidros e lhe davam umas moedas, não queriam os pensos e hoje tudo lhe iria correr melhor, uma boa acção por dia.

Havia aqueles que abanavam a mão de dentro dos automóveis, que trabalhavam, que pagavam religiosamente os seus impostos, nem se dignavam a olhar e seguiam em frente, aqueles que tinham horror a pobres e (ou) contaminações.

Todos nós esquecidos dos pequenos ferimentos que podem infectar e dos pequenos gestos que podem salvar vidas, pensou um condutor que falava com o homem de barba hirsuta e a saliva na comissura dos lábios. 

Surpreendeu-o o facto do sem abrigo saber falar e ter ideias muito arrumadas. "Desculpe tenho que avançar, porque já estão a apitar! Gostei de falar consigo!"

Aqui estamos nós, em farrapos, tantas vezes espectros assaltados, por precários reflexos das nossas pequenas mortes diárias, só porque estamos distraídos.

Porque não respeitamos os sinais, não somos previdentes e poupamos, dizem os arautos da ponderação, acabamos a vender penso rápidos, Cristos coroados de espinhos, nas encruzilhadas das nossas curtas vidas.

Lisboa, 8 de Março de 2014

Carlos Vieira

sexta-feira, 7 de março de 2014

Saboreamar

entrou na sua vida
por debaixo
da porta dos fundos
escutava-se
o restolhar 
dos pés de água
na madrugada
que foi em silêncio
conquista da maré

o seu barco lento
foi fundear
na respiração 
ofegante 
dos lábios dela

no espelho 
da cómoda
por vezes 
surgia um clarão
o deslumbramento
puro
dos seus ombros 
nus

a insaciável 
viagem
ao encontro 
das estrelas
que iriam
soçobrar
mais tarde 
no seu colo

depois 
ergueu-se
da lama
e dos limos
as suas unhas
rasgaram-lhe
o peito
numa voracidade
de fúria e fogo 
e de foz

amaram-se 
sem pudor
assinalaram
em hieróglifos
de sangue 
os limites
perderam
a gravidade
tornaram-se 
ingovernáveis

renderam-se
por fim
à inevitável 
condição
de não terem 
saída
e sobreviverem
com aquilo
que sobejava
da vida 
lá fora

agora 
apenas
esse rumor 
de mar
que lhe deixou
na boca
a sede
e o sabor a sal
da sua pele
a memória
dos recifes
e do início
da fome

Lisboa, 7 de Março de 2014

Carlos Vieira

quarta-feira, 5 de março de 2014

Flash V



No jardim
as crianças no escorrega
andam nas cordas e no balancé
na janela um velhote sorri por detrás da cortina
joga às escondidas com a solidão que quer brincar
à apanhada
vê-se muita gente jogar ao eixo de coluna dobrada
e outra que não está para brincadeiras.

Lisboa, 4 de Março de 2014


Carlos Vieira

terça-feira, 4 de março de 2014

Flash IV

Senta-se
na esplanada
todos os dias
à mesma hora
nada nada nada
nada mais tem
que possa fazer
se a tarde cai
depois passa
o seu olhar
em redor
do aquário
melancólico.

Pede 
um café normal
sem açúcar,
e não faz 
mais nada
nada nada nada
senão fixar
um ponto
algures
no seu crepúsculo
o olhar
fora de órbita.

Faz de conta
que não existe
solidão
fecha os olhos
e reinicia
a sua recorrente
reflexão
sobre o nada
nada nada nada
depois que as trevas
de tudo
tomaram conta.

Lisboa, 4 de Março de 2014
Carlos Vieira





Flash III

Observa
dois adolescentes
de mão dada
perde-os
depois que o vento
os arrastou
na sua leveza
pelos telhados 
da cidade antiga
breves em palavras
como se o mundo
fosse acabar
amanhã
esfumam-se
por detrás 
das chaminés
amam-se à vez 
com os gatos 
na esconsa eternidade
vigiada
das águas-furtadas
ele ainda tem
de tudo aquilo
uma vaga ideia
amar é para si agora 
apenas uma centelha
de sol
que atravessa todas
as nuvens
que criou.

Lisboa, 4 de Março de 2014
Carlos Vieira