domingo, 8 de setembro de 2013

Casa de Vida


I
Desperto
toda a vida que me resta
está ali por perto
oiço o restolhar
dos pequenos passos
das minhas três filhas
a sua dança e a festa
distante nos seus sonhos.

II
Reconheço
que é manhã
porque tu dormes meu amor
nos pequenos objetos domésticos
e ao mesmo tempo
sabes por dentro as distâncias
és tu que tornas suave
o ar e a luz da madrugada
no aroma e sabor das substâncias.

III
Espio o teu sono
Aguardo a absurda pantomina
do teu espreguiçar
pouso os pés
com cuidado
não te vá despertar
e quebrar todo o encanto
deste pequeno mundo
adormecido.

IV
Ando perdido
pela casa
oiço o sono solto
e o murmúrio dos livros
todas essas vozes
que me acompanham
para onde quer que eu vá
essa multidão
onde me escondo
por vezes por medo
e outras por vergonha.

V
Fecho os olhos
esqueço-me de tudo
e regresso ao caminho
da solidão
do desconhecido
de portas abertas de par em par
à casa do mundo
onde vos perdi
meus amigos
onde vos quero reencontrar
eis-me de novo  aqui
perante vós
que renasci
podem entrar
o poema é a minha casa.

Lisboa, 8 de Setembro de 2013
Carlos Vieira


sábado, 7 de setembro de 2013

Poema de apenas uma noite refugiado

A palavra Tuaregue significa “abandonados pelos deuses“



Martírio
do olhar que fulmina
espinho
cravado no horizonte
exílio
e campo de refugiados
e de extermínio.

As palavras
que a brisa varre
para debaixo
do tapete
da ausência
destilam veneno
pétalas
maceradas.

A noite
é a cimitarra
que corta a direito
não ficará cá ninguém
para contar
o êxodo.

O perfume exala
no deserto
a rosa impiedosa
das dunas
os pés sangram
forçados
peregrinos.

Vão se apagando ali
os rastos e a cólera
perante a fome
no catre
sem remédio.

Miragem sequiosa
do mel dos figos e leite
derramados
respiram o mundo
na epiderme das tendas
de um sono
em sobressalto.

Um puro sangue
vigia o mar de estrelas
o tuaregue
uma ampulheta
sem sentimento
a sua esfinge
é lâmina
de pura solidão
onde resiste
recortando o tempo
de uma tristeza
azul turquesa.

Lisboa, 7 de Setembro de 2013
Carlos Vieira





Amar em prognose póstuma




Já era tarde 
para te amar
onde estava o veludo 
dos teus lábios
e a melodia 
que moldava 
no olhar perspicaz 
o teu dorso desnudo?

Teus lábios
frutos agridoces
agora gretados
perspetiva de um murmúrio
esquisso de um estudo 
em carne viva.

Teu corpo
soergue-se 
num ínfimo instante
tudo no teu torso 
era só 
era apenas vertical
e deslumbrante.

Ali 
no teu corpo
vislumbro ainda 
nos secretos interstícios 
da tua pele 
um rumor 
na alvorada 
de um rio interior.

Reina 
a luz dos teus seios
na penumbra mansa 
dos salgueiros
maldigo ali 
o avaro tecido 
que escondia
a curva da tua anca.

Devo calar-me 
perante a eloquência 
dos teus seios?
devo conter-me
ou precipitar-me?
Tropeçava sempre 
neste vazio
em lugares comuns.

Remetes-te ao silêncio 
as tuas coxas 
fecham-se
como se fossem
a concha do tempo 
torna-se num mistério
sem ti 
tudo é uma perda de tempo.

Sei porque se rendiam 
os vales e os montes
reconheço 
este perfume etéreo 
que os sobrevoava
algures nos confins 
das tuas coxas.

Toldam-se-me a palavras 
derrubam-se as pontes 
pressinto o teu corpo 
irrequieto 
sobre o musgo
e o colmo
onde se despiu a eternidade.

Lisboa, 5 de Setembro de 2013
Carlos Vieira


“Bodyscape labeled as Shin KneeValley created using nude bodies to project surreal landscapes” 
By Carl Warner

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Malaca, terra do homem desterrado

"Nem tu menos fugir poderás deste,
Posto que rica e posto que assentada
Lá no grémio da Aurora, onde naceste,
Opulenta Malaca nomeada.
As setas venenosas que fizeste,
Os crises com que já te vejo armada,
Malaios namorados, Jaus valentes,
Todos farás ao Luso obedientes."

Luís Vaz de Camões (1524-1580)
Os Lusíadas, X, 44.

Malaca, terra do homem desterrado

Não sei qual o mecanismo psicológico que por vezes me deporta para estes longínquos lugares, situada à entrada do estreito do mesmo nome, o que é certo, é que é recorrente depois de navegar num Índico pensamento, fundear nesta terra, onde outrora, os nossos mais rapaces antepassados, ocuparam sem mais delongas o aprazível porto.
Dizia o cronista João de Barros, que este nome significaria em língua aborígene “homem desterrado”, esse atributo faz um secreto sentido com o facto, de frequentemente, o revisitar, tendo-se tornado adereço do meu imaginário, pois sou um pouco dado, vá-se lá saber porquê, a refúgios para me reencontrar e a crises de sociabilidade.
Vejo-me a entrar pela “Famosa”, cozido aos torneados manuelinos do monumento, o que não seria difícil considerando o meu perfil de faquir indiano, de seguida irei escapulir-me para um qualquer mercado oriental em busca de especiarias, rostos e corpos e sorrisos espreitando entre sedas e cobres e o silêncio de respiração suspensa que antecede a dança do ventre.
Naquele sorvedouro de cores, em que associo aromas, consigo varrer para um esconso, a parafernália das preocupações ocidentais, essa masmorra de responsabilidades, onde agonizamos nas inúmeras penas perpétuas, da burocracia, do dia-a-dia.
Embevecido olho as conchas exóticas Cypraeas que se amontam num pano colorido, os olhos orientais reluzindo como contas, por debaixo do turbante do vendedor, perscrutam a minha ignorância ou cruzam a minha astúcia.
Um renque de palmeiras apenas dão ênfase ao meu exílio, o mar está por ali atravessado de azul-turquesa, alguns navios de cabotagem arquejando aproximam-se, enquanto escamoteiam contrabando no cavername, preparam as licenças, afivelam sorrisos, escondem punhais, sempre temerosos dos caprichos do sultão.
Eu sou uma aranha que no soslaio da enxárcia, procuro vantagem sobre os que se perfilam no cais, sobretudo daqueles que como eu, desconhecem por que se encontram ali, o porquê de depois de tanto nos habituarmos à ficção, mesmo sem nos ausentarmos de casa uma milha, nunca saímos do porto, acreditando que já estamos em viagem.

Lisboa, 3 de Setembro de 2013
Carlos Vieira


                                                            Desenhado por Francis Valentijn em 1726

domingo, 1 de setembro de 2013

Ode ao coice



  1. A beleza espontânea de um coice
    que faz levitar
    qualquer valente
    que acende estrelas repentinas
    confesso-vos que admiro
    essa força do quadrúpede
    esse gesto irracional
    zurzindo a imbecil vaidade...
    no menosprezo daqueles
    que cheios de si
    em si mesmo já esqueceram
    que vive um precário animal
    o coice tem qualquer coisa
    de poético e de elementar
    e quando a alimária desfere
    o golpe inesperado
    é como o tolo embevecido
    no seu mundo
    descobrisse que pode existir
    ao seu lado
    uma força planetária
    que dorme contida
    desconhecida
    uma besta
    um último grito
    de revolta
    desesperado.

    Lisboa, 1 de Setembro de 2013
    Carlos Vieira

You In My September & Sad Angel ( L'Amant - The Lover )


História de Volcan Sem, um homem que chora



Reza a notícia vinda da marítima cidade de Trabzon, na Turquia que Volcan Sen, médio do Trabzonspor, se “desfez em lágrimas” no meio do relvado, quando a sua própria claque invetivaram e gozaram nos seus cânticos a sua mãe, recentemente morta.

De imediato consolado por companheiros e adversários, o jogador foi impotente para conter o pranto perante a multidão e abandonou o “terreno de jogo” aos 43 minutos. Foi um homem só no balneário que acalmou a emoção que o havia acometido.

Posteriormente, o presidente do seu clube, provável defensor de que cada partida de futebol deve ser a “mãe de todas batalhas”, designou de falta de profissionalismo aquele comportamento, considerou a sua atitude digna de uma criança e ali sentenciou que o jogador não tinha futuro no clube.

Um homem não chora, quanto fará os futebolistas, deuses do Olimpo da nossa contemporânea mitologia.

O futebolista deve engolir em seco, quando a sua mãe morta é blasfemada naquela arena dos novos tempos, onde tudo pode valer para a multidão ululante.

A bola continuou a rolar no “tapete verde”, um pouco mal tratada rezam as crónicas. O árbitro deu uns minutos de desconto face aquele incidente nas margens do Mar Negro, onde um Volcan em ebulição derramou as suas lágrimas.

Talvez no próximo jogo entre em campo o homem novo, seco, enxuto, o que já não chora, o que esquece a sua mãe e o que vai “comer a relva”, aquele a cujo nome, a mesma turba vai a reconhecer a glória efémera.

Lisboa, 1 de Setembro de 2013

Carlos Vieira


                                            Cantico de adeptos poe jogador a chorar