sexta-feira, 7 de junho de 2013
Poema fora de época para Tristan Tzara
Andei, andei
e vim parar aqui a este triste jardim
no fim de um mundo
onde os cães domésticos alçam a perna
e mijam o crepúsculo
desesperados
depois lambem nas mão do donos
as linhas dos sonhos
onde andam atrelados
e com excrementos em sacos plásticos.
Os peixes vermelhos do lago
no seu ancestral
desconhecimento da vida à superfície
sentam-se nos bancos do jardim
mordem o isco
pretendendo devorar os olhos
dos transeuntes
esses peixes fora de água
descem degrau a degrau
a falta de profundidade
do pântano
do seu pequeno mundo redondo
a que acrescentam
o abismo de obscura solidão.
Os pássaros
divagam nas árvores
na sua política de pequenos passos
e gestos
de jogar às escondidas
de vez em quando o canto
ou será que conversam
escarnecendo
das nossas farsas
arremedos de vida
atingidos por um seu dejeto
inventamos sinais de dinheiro
sobrar-nos-á por vezes
sentido de humor
ou falta de imaginação.
Lisboa, 7 de Junho de 2013
Carlos Vieira
Fotografia de Man Ray "Tristan Tzara"
"Tristan Tzara (ou Samy Rosenstock, Moinesti, Romênia, 1896 – Paris, 1963) foi um poeta judeu e francês que nasceu em Moinesti, na Romênia, e faleceu em Paris aos 67 anos de idade. Foi um dos iniciadores do Dadaísmo. Em 1916 em plena 1ª Guerra Mundial (1914- 1918) que durou 4 anos e da qual participaram 18 países iniciada com o Atentado de Sarajevo e finalizada com a rendição dos alemães no Sudoeste Africano, um grupo de de refugiados em Zurique, na Suíça, iniciou o movimento artístico e literário chamado Dadaísmo.
Seu pseudônimo significaria numa tradução livre "triste terra", tendo sido escolhido para protestar o tratamento dos judeus na Roménia. Poeta e ensaísta, participou na fundação do movimento dadaísta em Zurique, em 1916." Wikipedia
quinta-feira, 6 de junho de 2013
Hora dos lobos
O grito
morre na
garganta
estrangulado
atónito
perante a inacreditável
inclemência
da até aí
desconhecida
e sombria
realidade.
As palavras
entrecortadas
entreolham-se
nas esquinas
de mão
estendida
na penumbra
das cidades
desertas.
Engoles em
seco
ao
verificares
que alguém
se apoderou
de todas as
estrelas.
Os uivos
da alcateia
que se aproxima
do perímetro
urbano
percorrem
agora
um humano
silêncio.
Lisboa, 6 de
Junho de 2013
Carlos Vieira
terça-feira, 4 de junho de 2013
Constrangimentos
Constrangimentos
Áustero
lúgubre país
do medo
entre dentes
desprendem-se
palavras desesperadas
sob vigilância
Atrevimentos medíocres
simulacros
de efémera coragem
um vulto certamente
delinquente
percorre a noite
em zig-zag
acossado
Habituamos-nos
aos murmúrios
de fome
a pequenos crimes
arrastando a vergonha
e à inevitabilidade
dos ossos do silêncio
e do ofício
Palavras desfeitas
palavras armadilha
sem rasgo
sem tempo
submersas no musgo
de um futuro luminoso
Vestígios de escaramuças
de um mercado de odores
agridoce
pestilência dos campos da batalha
por uma vida
pelo seu regresso
pela paciência na antecâmara
dos frutos maduros
Incansável dissidência
véspera de um rio
acredito a partir daqui
deste esgoto a céu aberto
depois assisto
à triste precariedade
de néon azul
de uma operação stop
ainda bem
que está tudo em ordem
Na apertada curva
de um percurso desconhecido
um nó na garganta
e a encenada morte
inglória e por acidente
são irrelevantes
os danos colaterais
Nos ombros desnudos
que se afastam
a memória vencida
longínqua
de um toque do veludo
afogado em dor de corno
deve aceitar
com naturalidade
o fim de uma relação
Descrevo na insónia
a ave que pousa suavemente
nas ruínas de um país
anunciando
esse provável
declínio do amor
Lisboa, 4 de Junho de 2013
Carlos Vieira
sábado, 1 de junho de 2013
Reconstituição de um hara-kiri
Os rastos das sandálias
dirigiam-se para o bosque
por aquele caminho de terra batida
ao meio-dia
os insectos zumbiam debaixo das cerejeiras
podia vislumbrar-se ainda
o samurai
a sua atitude firme e o tronco erecto
a rasgar-lhe a carne
apenas a sombra do sabre
como se fosse um pássaro
nem uma palavra
não pestanejou
o perfume das ervas
era irrelevante
depois
a doçura do sangue
que lhe escorria
no canto dos lábios
a inutilidade e a ignorância da honra
para aqueles que por cá
vão ficando
os restos de um corpo
devorado por animais nocturnos
dirá o relatório de autópsia
sem qualquer margem
para dúvidas
um funeral discreto
digo deserto
suportado pelo erário público.
Lisboa, 1 de Junho de 2013
Carlos Vieira
sexta-feira, 31 de maio de 2013
Animais em vias de reaparição
Foi encontrado sangue
em mamute congelado
no permafrost do árctico
agora sobre o branco manto
poderá correr de novo
o mamute sobre neve
ambos eternos
a tosar a fragilidade
dos primeiros líquenes
na superfície gelada
vergastado pelos arbustos
e pela tempestade
viveremos suspensos
do momento em que a lua
na sua clonada imortalidade
poderá voltar a montar
o extraordinário mamute
e nós ficaremos
por aqui
nesta vil tristeza
de vida exangue
de sonho de colosso adiado
fóssil enclausurado
neste ártico
nesta esperança
de aurora boreal
depois de noite de luar .
Lisboa,30 de Maio de 2013
Carlos Vieira
domingo, 26 de maio de 2013
Reminiscência urbana
Sempre
fiquei impressionado com a expressão arquitetónica “prédio de gaveto”,
embasbacado e sem saber para onde ir, nesta esquina de cidade que tanto tenho
visitado e tão desconhecida permanece, procurei no ângulo, a rua que me provocasse a
curiosidade ou o conforto, sendo certo, que daquele gaveto, não vislumbrava
nada que me pudesse suscitar motivos para grandes apreensões ou especial
emoção.
Ali
estava, perante o peso dos prédios mais ou modernos, aquários de enormes
superfícies mais ou menos espelhadas, aos quais as bicicletas suavizavam as
arestas, assumi uma atitude que revelava uma subtil áurea de tranquilidade e uma
vã tentativa de me mimetizar, perante tão fria e apressada fauna, a mesma que é
comum a todos os anónimos lugares de passagem.
Eis-me
pois aqui, remoendo um “gaveto” desta cidade que, por sua vez, me devora
vorazmente e me condena, irremediavelmente, ao esquecimento, muito embora, seja
provável que vigie atentamente todos os meus passos, “não vá o diabo tecê-las”!
Esse
facto pude constatar, face à abordagem que dois agentes da autoridade me
fizeram, muito cortesmente, por certo, respaldados em estudada observação e
privilegiando uma atitude proactiva, face à minha inexplicável e perturbante inacção
que a afinal, não era mais que a minha ancestral indecisão, na estratégica
esquina.
Perguntaram-me
aquelas coisas banais, que se perguntam aqueles que são vagamente suspeitos,
questões de triagem, num inglês são e escorreito, habitual aos povos do norte
da Europa, respondi-lhe no meu inglês de serviços mínimos e pude aperceber-me
que ficaram relativamente tranquilos, na sua desconfiança ou sagacidade profissional.
No
intervalo destas viagens de natureza profissional tento, tanto quanto possível,
arranjar tempo para uma incursão, na cidade, por vezes desconhecidas, sendo
certo que naquele curto período, há sempre um compromisso que se estabelece,
entre visitar qualquer ex-libris do burgo estrangeiro ou ir sentir o pulsar e
espreitar os rostos das gentes que invariavelmente, nesta latitude europeia, se
mostram contidos, correctos, indiferentes, discretos, pouco deixando
transparecer, o que lhe vai na alma ou sinais do tão enunciado sentir
colectivo.
Perplexo
neste gaveto, deixei que a cidade, por osmose se infiltrasse pelos poros, pelos
ouvidos, pelo nariz ou que qualquer brisa fizesse a diferença e me trouxesse um
sinal da minha presença na Terra ou que pelo menos, nestes 180º de solidão, me ajudasse
a reescrever uma mais auspiciosa e justa concepção do sentido da vida colectiva
ou a conhecer o mais subtil sentido do movimento dos indivíduos e das razões da
sua indiferença, perante os seus semelhantes.
Naquele
gaveto, frente ao mar do Norte ou na esquina da Broadway, estamos sempre
divididos por vários sentidos, caminhos, fragâncias, cercados por esta solidão de
gente e, por aquela breve suspeita ou profunda indecisão, de não pertencermos a
nenhum lugar ou de qualquer forma, aquele ser um espaço reminiscente,
incompleto, no nosso interior, a que já pertencemos, que sendo agora de todos,
se torna terra de ninguém.
Haia,
25 de Maio de 2012
Carlos
Vieira
sexta-feira, 24 de maio de 2013
Reminiscência ou déjà-vu
Senta-se
numa dobra cega da tarde
à espera da morte
na sua torre
um sino
interrompe-lhe
a linha de água da memória
o tempo de bronze
e do medo
espantam-se
duas aves pernaltas
que pela calada
foram levando o horizonte
ouve
entre murmúrios
depois de ter morrido
o sino
que vergasta a natureza
quase morta de tédio.
Lisboa, 24 de Maio de 2013
Carlos Vieira
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