sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

poesia biológica


 


vou regressar à pura infância

a esse mágico tamborilar da chuva

uma voz na superfície nocturna dos lagos e do mundo

 

poderei voltar a ser a alegria íngreme dos ninhos

e de escorregar

na nudez dos troncos

 

arrancar cenouras

essa ternura de dedos enterrados na terra fértil

que saboreio na doçura de um olhar

 

um êxtase de musgo e ouro e prata no rendilhado

das árvores

metástases contidas no céu azul cobalto

 

sou apenas um único fruto no pomar

depois serei um peregrino num caminho

de terra batida

 

vejo as couves

como grandes mãos verdes

e por elas posso beber a mais pura água fresca

 

pendurados nos ramos

vejo os pássaros transidos de asas molhadas

uns do frio e outros do desespero

 

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Meu amor, minha cidade à chuva!


 

Chove na cidade
interruptamente.
Tu passaste 
pelos intervalos da chuva
até aos ossos
encharcada de solidão.
Oiço-a que cai 
inclemente
na tua face molhada.
Respira-se
uma secreta tempestade
que nasce dentro de ti.
Cidade alagada
vento e bátegas de água
no teu cabelo revolto
algas e caracóis.
Debaixo do chapéu de chuva
de um pensamento 
a ironia 
do teu rosto submerso
de onde parte o rio
que galga as margens.
Os peixes atónitos
entram pelas janelas
de surpresa
e confraternizam
com os animais domésticos.
A água devora os caminhos
os lugares da luz
onde segurava as tuas mãos.
Os barcos descem pelos telhados
prenhes de nossas inúteis aventuras 
que o fumo das chaminés
vão contar
A memória mais húmida 
dos teus beijos
chove na cidade.

Lisboa, 20 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Não desejarás o que é do teu próximo



A casa
folha de papel
onde o vento sopra
e os dentes batem
onde a tempestade assola
e a noite  
é uma página em branco
se nela escrever
a palavra tábua
logo ela começa a flutuar
depois de ter sido
sonho e cama e mesa
ou destroço de navio
no sobe e desce
da vida tumultuosa
agora aqui está a tábua
memória
palavra de esperança
dada ao náufrago
ou será apenas
palavra derradeira
abraço do afogado
despejado da casa
onde entrava o vento
a fome e a chuva
mas também
o sol e o riso
agora devoluta
é apenas no desespero
das tuas mãos
o aroma e a palavra
já distantes
um papel branco
onde consta
o último mandamento
e da dignidade
faz tábua rasa.

Lisboa, 19 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira


                                          Foto de autor desconhecido

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Versos para um insignificante insecto


 

 

o hábil insecto

anula as diferenças e preenche o hiato

liberta o perfume da flor

 

no ritual do pólen

o insecto estupefacto desvenda o mistério

saboreia o néctar

 

pousado na pétala

o breve insecto devora a solidão

e tece a inútil filigrana

 

insecto de asas abertas

despede-se da corola

e aguarda em silêncio a brisa favorável

 

coerente no gesto

debate-se sinistra a sombra presa nas tenazes

vibram as antenas do insecto

 

laborioso vai recortando o caule

o brilho e a ambição da seiva verde

transforma em presa o insecto

 

 

insecto de coragem

ergue-se nas patas traseiras

e declama poesia numa língua estranha

 

 

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira

                                                                         Foto de James Gritz

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Poema de mínima precipitação


 

 

Podes ouvir-me

estou na terra

de ninguém

no meio do nada

o eco do teu nome

é no silêncio

uma gota de água

trazida pela brisa

que foi rumor

dos teus lábios

agora sim

posso partir

em segredo

ao escutar de volta

os teus passos

calam-se os olhos

incapazes

de suster o fulgor

da tua imagem

definitiva.

 

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira
 

 
                                                Imagem de “Stalker”, filme de Andrei Tarkovski

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Perdido vou pela tua mão


 

A tua mão

é o pássaro

que pousou suave

e bebe nos interstícios da pele

a cumplicidade

de todos os dias reclamada

depois desfaz-se na solicitude

da manhã que perpassa pelo estore

e acende na seda da cortina

um etéreo teatro de sombras

um bailado de irreconciliáveis

contradições.

 

A tua mão

que me desarmou

e ergue a taça da tua voz

rosa de um jardim secreto

que descobriu para mim o timbre

cuja exótica tonalidade

fere no dia o seu princípio

como se o tempo te despisse

de formalidades

fazendo-me acreditar

na tua imortalidade.

 

A tua mão

que permaneça

mais um pouco

nesta renovada reinvenção

da nossa contiguidade

prolonga a tua enorme presença

o café pode esperar

ergue os teus seios temerosos

e segreda-me agora

todos os sabores.

 

A tua mão

que releva o erro

acalma os acidentes das paisagens

onde nunca é tarde

para regressar pelos teus dedos

ao desfiladeiro

aos labirintos dos nossos corpos

dissidentes do vento

mergulhando em todos os abismos

sussurrando

contra o ensurdecedor silêncio

da carne.

 

A tua mão

que erra

pelo caos dos lençóis

de retorno ao princípio do mundo

ao primeiro dia em que te conheci

de onde rumámos nus

até à entrega absoluta

ao intrépido abandono

numa inequívoca falta de razão

sequiosos apenas do conhecimento

que nos consumia

que torrencial brotava

sendo fonte e fogo ancestral.

 

 

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira

                                                                   Lovers hand by Katie091

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A eterna precariedade do amor


 

A noite mais pura nos teus ombros

é uma nau surpreendente

que transporta o orvalho das pérolas

e sobre si o gume afável do horizonte

a urdir palavras de sal e espuma

estou neste vagar de pescador

suspenso sobre a ponte

libertando da linha a nuvem

e a claustrofobia do peixe

que voa agora num céu de chumbo

olho-te por debaixo da máscara

que os dias vão segregando

mergulhado nas  névoas

inefáveis do tempo

estou de vigia

neste silêncio aflito

à solta na enseada um nó cego

aceso de fúria

os uivos da tempestade

são também revelações do teu corpo nu

ardem estrelas fugazes nas articulações

e abrando o músculo das vinganças

tornaram-se efémeras as ilusões de conquista

vou devorando correntes e âncoras

da madrugada

no esquecimento

prossegue o larvar das cicatrizes de luz

enquanto pirogas de espanto

navegam desgovernadas

escapando por um triz

aos corais da razão submersa

soçobramos no mistério da praia mar

à liberdade lapidar de vencer a morte

e à ansiosa expressão  de um olhar

entre a vereda vertical

e a emboscada

escondes-te num inquieto magnetismo

no entanto o mundo

arruma-se pacientemente

debaixo de um carvalho secular

os insectos vão soletrando o húmus

o que nos trai

é o triste desatar do esperanto das lágrimas

aguardando que compareças

na poesia

em que vou decantando a tua ausência

paciente

viro-me subitamente

e não és apenas a folha caduca

que cai

tu és a minha única certeza

pendular.

 

 

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira


 
                                               Chagall