quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Meu amor, minha cidade à chuva!


 

Chove na cidade
interruptamente.
Tu passaste 
pelos intervalos da chuva
até aos ossos
encharcada de solidão.
Oiço-a que cai 
inclemente
na tua face molhada.
Respira-se
uma secreta tempestade
que nasce dentro de ti.
Cidade alagada
vento e bátegas de água
no teu cabelo revolto
algas e caracóis.
Debaixo do chapéu de chuva
de um pensamento 
a ironia 
do teu rosto submerso
de onde parte o rio
que galga as margens.
Os peixes atónitos
entram pelas janelas
de surpresa
e confraternizam
com os animais domésticos.
A água devora os caminhos
os lugares da luz
onde segurava as tuas mãos.
Os barcos descem pelos telhados
prenhes de nossas inúteis aventuras 
que o fumo das chaminés
vão contar
A memória mais húmida 
dos teus beijos
chove na cidade.

Lisboa, 20 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Não desejarás o que é do teu próximo



A casa
folha de papel
onde o vento sopra
e os dentes batem
onde a tempestade assola
e a noite  
é uma página em branco
se nela escrever
a palavra tábua
logo ela começa a flutuar
depois de ter sido
sonho e cama e mesa
ou destroço de navio
no sobe e desce
da vida tumultuosa
agora aqui está a tábua
memória
palavra de esperança
dada ao náufrago
ou será apenas
palavra derradeira
abraço do afogado
despejado da casa
onde entrava o vento
a fome e a chuva
mas também
o sol e o riso
agora devoluta
é apenas no desespero
das tuas mãos
o aroma e a palavra
já distantes
um papel branco
onde consta
o último mandamento
e da dignidade
faz tábua rasa.

Lisboa, 19 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira


                                          Foto de autor desconhecido

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Versos para um insignificante insecto


 

 

o hábil insecto

anula as diferenças e preenche o hiato

liberta o perfume da flor

 

no ritual do pólen

o insecto estupefacto desvenda o mistério

saboreia o néctar

 

pousado na pétala

o breve insecto devora a solidão

e tece a inútil filigrana

 

insecto de asas abertas

despede-se da corola

e aguarda em silêncio a brisa favorável

 

coerente no gesto

debate-se sinistra a sombra presa nas tenazes

vibram as antenas do insecto

 

laborioso vai recortando o caule

o brilho e a ambição da seiva verde

transforma em presa o insecto

 

 

insecto de coragem

ergue-se nas patas traseiras

e declama poesia numa língua estranha

 

 

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira

                                                                         Foto de James Gritz

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Poema de mínima precipitação


 

 

Podes ouvir-me

estou na terra

de ninguém

no meio do nada

o eco do teu nome

é no silêncio

uma gota de água

trazida pela brisa

que foi rumor

dos teus lábios

agora sim

posso partir

em segredo

ao escutar de volta

os teus passos

calam-se os olhos

incapazes

de suster o fulgor

da tua imagem

definitiva.

 

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira
 

 
                                                Imagem de “Stalker”, filme de Andrei Tarkovski

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Perdido vou pela tua mão


 

A tua mão

é o pássaro

que pousou suave

e bebe nos interstícios da pele

a cumplicidade

de todos os dias reclamada

depois desfaz-se na solicitude

da manhã que perpassa pelo estore

e acende na seda da cortina

um etéreo teatro de sombras

um bailado de irreconciliáveis

contradições.

 

A tua mão

que me desarmou

e ergue a taça da tua voz

rosa de um jardim secreto

que descobriu para mim o timbre

cuja exótica tonalidade

fere no dia o seu princípio

como se o tempo te despisse

de formalidades

fazendo-me acreditar

na tua imortalidade.

 

A tua mão

que permaneça

mais um pouco

nesta renovada reinvenção

da nossa contiguidade

prolonga a tua enorme presença

o café pode esperar

ergue os teus seios temerosos

e segreda-me agora

todos os sabores.

 

A tua mão

que releva o erro

acalma os acidentes das paisagens

onde nunca é tarde

para regressar pelos teus dedos

ao desfiladeiro

aos labirintos dos nossos corpos

dissidentes do vento

mergulhando em todos os abismos

sussurrando

contra o ensurdecedor silêncio

da carne.

 

A tua mão

que erra

pelo caos dos lençóis

de retorno ao princípio do mundo

ao primeiro dia em que te conheci

de onde rumámos nus

até à entrega absoluta

ao intrépido abandono

numa inequívoca falta de razão

sequiosos apenas do conhecimento

que nos consumia

que torrencial brotava

sendo fonte e fogo ancestral.

 

 

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira

                                                                   Lovers hand by Katie091

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A eterna precariedade do amor


 

A noite mais pura nos teus ombros

é uma nau surpreendente

que transporta o orvalho das pérolas

e sobre si o gume afável do horizonte

a urdir palavras de sal e espuma

estou neste vagar de pescador

suspenso sobre a ponte

libertando da linha a nuvem

e a claustrofobia do peixe

que voa agora num céu de chumbo

olho-te por debaixo da máscara

que os dias vão segregando

mergulhado nas  névoas

inefáveis do tempo

estou de vigia

neste silêncio aflito

à solta na enseada um nó cego

aceso de fúria

os uivos da tempestade

são também revelações do teu corpo nu

ardem estrelas fugazes nas articulações

e abrando o músculo das vinganças

tornaram-se efémeras as ilusões de conquista

vou devorando correntes e âncoras

da madrugada

no esquecimento

prossegue o larvar das cicatrizes de luz

enquanto pirogas de espanto

navegam desgovernadas

escapando por um triz

aos corais da razão submersa

soçobramos no mistério da praia mar

à liberdade lapidar de vencer a morte

e à ansiosa expressão  de um olhar

entre a vereda vertical

e a emboscada

escondes-te num inquieto magnetismo

no entanto o mundo

arruma-se pacientemente

debaixo de um carvalho secular

os insectos vão soletrando o húmus

o que nos trai

é o triste desatar do esperanto das lágrimas

aguardando que compareças

na poesia

em que vou decantando a tua ausência

paciente

viro-me subitamente

e não és apenas a folha caduca

que cai

tu és a minha única certeza

pendular.

 

 

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2013

Carlos Vieira


 
                                               Chagall
 

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Poema elementar




nada melhor
para fazer  “boa poesia”
do que estar desempregado
e de barriga vazia

viver toldado
pela palavra necessária

de manhã acordar com o esboço
do pequeno almoço

nada melhor
que acariciar os flancos
dos versos brancos

de alma feita num farrapo
num último esforço cénico
içar
a bandeira da dignidade
e gritar
limpem-se a este guardanapo
que não tenho papel higiénico.

Lisboa, 11 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira

                               Foto de autor desconhecido