sábado, 17 de novembro de 2012

1. Interlúdios



 

I

Entre a folhagem

do teu olhar

as suas mãos

eram pássaros

que ali iam

pernoitar

 

II

Os teus caracóis

de ouro

a desaguar

nos ombros

a luz incrédula

do farol

e o abraço azul

do mar

no alabastro

do teu pescoço.

 

III

O sabor

a sal e a suor

nos teus seios

a arfar

na penumbra

o cristal puro

do teu rosto

tranquilo

e a breve

tristeza

das palavras

por dizer.

 

Lisboa, 17 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

                                                   
                                                  Pintura de Marc Chagall

 

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Versos a um amor desconhecido


 

 

Percorreu a espiral

do seu torso

e perdeu-se

para sempre

nunca se saberá

quem foi.

 

Contorna o veludo

da sua pele

entre miragens

e alucinações

e deixou de saber

quem é.

 

À flor dos lábios

inventou um alfabeto

só para eles

nesse labirinto

de emoções

desconhecia-se

o porquê.

 

Entre dentes

o rumor

acutilante das palavras

que murmurou,

até quando?

 

Ficou cego

no arco tenso

das suas pernas

e não sabia morse

ficou para sempre

sequestrado,

entregue a si próprio.

 

A sua alegria

era a dele

o sol de inverno

era dele

as suas lágrimas

eram suas

correram desejadas

não se sabe,

por onde

nem para onde.

 

O sexo sobrevoava

o tempo lento do corpo

era um relógio de água

que dava corda ao pensamento

à raiz do fogo

às crinas do vento,

ninguém sabia

o que faziam ali?

 

Pediam as suas ancas

o rumo estreito

das suas mãos

acalmando as correntes

os espasmos da pélvis

fechavam-se seus olhos

tudo tinha acabado

havia tempo

nenhum dos dois sabia

os termos do armistício.

 

Lisboa, 16 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 

Foto: 14 de Agosto de 1945: Um marinheiro americano beija uma enfermeira para celebrar o fim da II Guerra Mundial. A enfermeira, Edith Shain, morreu em 23 de Junho de 2010, com 91 anos.

 

 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Reconstituição



Um corpo nu e único admirável
amputado de todos os sonhos
e pétalas
e do desassossego das gaivotas.

Nele ainda resvala
o vórtice do canto
o seu perfume reconhecido
a incendiar
ainda a epiderme.

Respira-se a alusão
a um mar de tranquilidade
interrompida
por conchas de espanto
um corpo vencido pelo cansaço
por um sono
de areia e sal.
  
Na praia impressos
os pés descalços
da mulher recém atropelada
pelo real 
pelas ondas que se enrolaram nas pernas
no sexo
de um refluxo apenas vegetal.

Mulher abandonada que o mar beija
em decúbito dorsal
e na rebentação
liberta
e enleia de algas
abusa da fragilidade
e a devolve à terra
.
Sempre este mesmo mar
que tão violenta
e profundamente
nos quer
e nos mata.



Lisboa, 15 de Novembro de 2012
Carlos Vieira


                                          Imagem retirada da Internet de autor desconhecido

2. Jardim de Inverno


 

 

 

como se fosse uma granada

uma explosão de sementes e frutos

 

reinventamos  do nada

a terra de ninguém

 

soerguem-se abandonadas lutos

de viúvas, solteiras e outras mães

de demasiadas filhos mortos

 

a mão na garganta do fumo e do gaz

estrangulando o grito

 

a corola e o pólen do silêncio

e as cinzas das fogueiras

 

os farrapos das nuvens cinzentas

o manto do desespero 

 

despojos do saque

a face da vergonha

 

e a solidão azul do lápis

os números desprezíveis de baixas

das batalhas

 

no arame farpado das trincheiras

escorrem dos mortos e feridos

tão naturalmente

flores vermelhas

 

 

 

Lisboa, 14 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

1. Jardim de Inverno


como o cálice de um grito
que atravessa um céu de chumbo
na sua haste um sequestrado rio de fogo
um pintor flamengo faz na evidência da tulipa
deflagrar a generosidade do início de um novo mundo
cicuta que desperta a demência que lhe corrói as entranhas

Lisboa, 14 de Novembro de 2012
 Carlos Vieira



         Photo by Rob Galbraith

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Falésia...

Falésia
ou clepsidra
do  pensamento
e última muralha
ou inatingível fronteira
contra um mar de desejos
e um deslumbramento de terra
âncora que germina dentro de nós
esplendor que nos impede de navegar
se dela se vislumbram os confins da bruma
a doce obscuridade e o odor labiríntico da carne
ossos que pedem uma volúpia de aves em pleno voo
barcos e animais inquietos lavrando com a  pedra da tarde
na penumbra do sangue e do tempo um rumo de silêncio e espuma

Lisboa, 12 de Novembro de 2012
Carlos Vieira

                                        “Homem na falésia” por Caspar David Friedrich

domingo, 11 de novembro de 2012

Delírios


 

 

A casa soergue-se agitada

em pânico abandona a rua

abandona-me na rua.

 

Eu desperto tardiamente

no meio do nada

e de dentro de um poço

olho para o céu que derrama

o seu vómito azul inconsequente.

 

As nuvens são animais ferozes

com dentes de chuva

um bando de gente volúvel

e de luzes trémulas

todos os animais enlouquecem

à sua volta.

 

Só confio neste lugar

de onde puxo a paisagem pela janela

com uma corda

fica um pouco apertada

nas minhas duas assoalhadas.

 

A corrente de ar faz bater

a porta da cozinha

no entanto sinto-me sufocar

perante a imobilidade do mundo

e o beco sem saída das ideias.

 

Todos os objectos me fogem das mãos

como os cães

que me roubam a comida.

 

Neste delírio tremens

assisto ao desabar

de tudo o que acreditava.

 

Ouço a campainha

afinal alguém me encontrou

neste manicómio

simulacro da eternidade

afinal sempre vão executar

a ação de despejo.

 

Lisboa, 11 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 
                                                           Jean-François Dupuis, “Delirium”