quinta-feira, 15 de novembro de 2012

2. Jardim de Inverno


 

 

 

como se fosse uma granada

uma explosão de sementes e frutos

 

reinventamos  do nada

a terra de ninguém

 

soerguem-se abandonadas lutos

de viúvas, solteiras e outras mães

de demasiadas filhos mortos

 

a mão na garganta do fumo e do gaz

estrangulando o grito

 

a corola e o pólen do silêncio

e as cinzas das fogueiras

 

os farrapos das nuvens cinzentas

o manto do desespero 

 

despojos do saque

a face da vergonha

 

e a solidão azul do lápis

os números desprezíveis de baixas

das batalhas

 

no arame farpado das trincheiras

escorrem dos mortos e feridos

tão naturalmente

flores vermelhas

 

 

 

Lisboa, 14 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

1. Jardim de Inverno


como o cálice de um grito
que atravessa um céu de chumbo
na sua haste um sequestrado rio de fogo
um pintor flamengo faz na evidência da tulipa
deflagrar a generosidade do início de um novo mundo
cicuta que desperta a demência que lhe corrói as entranhas

Lisboa, 14 de Novembro de 2012
 Carlos Vieira



         Photo by Rob Galbraith

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Falésia...

Falésia
ou clepsidra
do  pensamento
e última muralha
ou inatingível fronteira
contra um mar de desejos
e um deslumbramento de terra
âncora que germina dentro de nós
esplendor que nos impede de navegar
se dela se vislumbram os confins da bruma
a doce obscuridade e o odor labiríntico da carne
ossos que pedem uma volúpia de aves em pleno voo
barcos e animais inquietos lavrando com a  pedra da tarde
na penumbra do sangue e do tempo um rumo de silêncio e espuma

Lisboa, 12 de Novembro de 2012
Carlos Vieira

                                        “Homem na falésia” por Caspar David Friedrich

domingo, 11 de novembro de 2012

Delírios


 

 

A casa soergue-se agitada

em pânico abandona a rua

abandona-me na rua.

 

Eu desperto tardiamente

no meio do nada

e de dentro de um poço

olho para o céu que derrama

o seu vómito azul inconsequente.

 

As nuvens são animais ferozes

com dentes de chuva

um bando de gente volúvel

e de luzes trémulas

todos os animais enlouquecem

à sua volta.

 

Só confio neste lugar

de onde puxo a paisagem pela janela

com uma corda

fica um pouco apertada

nas minhas duas assoalhadas.

 

A corrente de ar faz bater

a porta da cozinha

no entanto sinto-me sufocar

perante a imobilidade do mundo

e o beco sem saída das ideias.

 

Todos os objectos me fogem das mãos

como os cães

que me roubam a comida.

 

Neste delírio tremens

assisto ao desabar

de tudo o que acreditava.

 

Ouço a campainha

afinal alguém me encontrou

neste manicómio

simulacro da eternidade

afinal sempre vão executar

a ação de despejo.

 

Lisboa, 11 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 
                                                           Jean-François Dupuis, “Delirium”

 

 

 

 

sábado, 10 de novembro de 2012

Líquenes, exercícios de vida mínima



 
 

Líquen

sussurro subtil

caligrafia de seiva

sobre a pedra inacessível

flor de um fogo breve

aroma de ave ávida de sonhos

 

líquen

voz que se ergue de erva-doce

sob as asas da neve

que irrompe na noite

das entranhas da terra

pelas frestas do tempo

cujo focinho empurra o sol tímido

pela madrugada

 

líquen

planta onde se acende

o reflexo rumor

de precários insectos

que viajaram

nos caprichos de vento

e que devoram agora

a última esperança

de uma vida vegetal

 

Lisboa, 10 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 
                                                 “Liquen” Myriam Le Borgne

 

 

 

 

 

Aula de ginástica da Matilde


 

 

Eis -me aqui

a multiplicar os pinos cambalhota

e as rodas

na serenidade

dos seus grandes olhos verdes

a sorrir nas pontes

vendo-a sair ilesa e de pés descalços

dos flic’s para trás e para frente

regressando a si

ao seu rabo de cavalo

à sua elegante desenvoltura

nesta girândola de acrobacias

puro poema do meu sangue

em movimento

e naquele momento

esqueci a ginástica do fim do mês

sem tapete

sem futuro

e tantos outros filhos

de equilíbrio instável.

 

Lisboa, 10 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Ontem...


Ontem

tive à espera do metro

de chapéu-de-chuva aberto

como quem segura

um pensamento

uma nuvem

quando entrei na carruagem

não percebi

aquela chuva de sorrisos

 

Lisboa, 9 de Novembro de 2012

Carlos Vieira