sábado, 20 de outubro de 2012

Poema dos ignorados efeitos secundários






ouço a fome ou o bosque

no rumor da flecha

imperturbável

 

sílaba a sílaba tudo se cala

reféns de pétalas de seda

e de esfinges

 

o prisma do sorriso cínico

após o sopro letal

da zarabatana

 

um prego de aço é uma raiz

de vergonha que se dissemina

nos muros sem rosto do país

 

a súplica da prece que te detêm

ferido de asa e resistes porém

à farpa sibilina da palavra

 

conhecem-te os genes

a efígie da moeda de troca

e por quanto se compra um escravo

 

na tua orelha de flor

o repto de um segredo que flutua

e a armadilha do mel

 

Lisboa, 20 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 

4 – Observação de aves


 

 

Descansou ali na cota mais alta

Caiu das nuvens do ombro fecundo

E assim sentado a ver o mundo

Estremeceu-lhe a repentina falta

 

E quanto mais o olhar no cimo se perdia

A curva da sua ausência era dor tamanha

Mais no perfume das ancas se envolvia

E lhe batia no peito o cume da montanha

 

Este homem que tão alto ascendeu

Que tão ingénua alegria à amada tece

Agora o medo do abismo desconhece

Porque o fogo do amor jamais esqueceu

 

Lisboa, 20 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Extinguiu-se aquela luz efémera...


extinguiu-se aquela luz efémera

já não sei se o fruto amadurece

nem do reflexo do peixe a meia água

perdeu-se a limpidez do canto das aves

na rua a brisa é agora a lâmina que nos cega

é o poeta que cedo nos deixa nos arrepios da nudez

e que criou um rio a partir da lágrima que caindo teimosa

nos revelou a curta distância entre o princípio e o fim do mundo

 

Lisboa, 19 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Poema de um lago sem nome ...


Poema de um lago sem nome

que nos olhos de infância secou

 

o mistério daquele lago

era redondo, era de lodo e profundo

 

tinha um olhar duro e franco

como uma batalha naval acesa por um relâmpago

 

nele vivia o empertigado e distante mundo

de um pato marreco e branco

 

a memória era aquela pedra lisa atirada

que entre ambos passou

 

os gestos eram mágicos de capa e da espada

que irónica a todos sobrevoou

 

esta é a irrelevante história em círculos de um lago

de uma pedra e do pato

 

que ao chegar à margem do poema

por ter heróis tão pueris soçobrou.

 

 

Lisboa, 18 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

3 - Observação de Aves



Todos os dias nos écrans e nas janelas
enquadradas, árvores, inquietações e  pardais
sonhos em agonia pendurados nas cúpulas.

Deste tempo crítico do arrulhar das rolas
outras dores descem pelas chaminés e beirais,
asas de um tempo triste, penas que nos calam.

Até que os homens das prestações vencidas
das alturas sem sucesso se atiram para os jornais
aprendendo a voar, “amortizam” as suas vidas.

Lisboa, 18 de Outubro de 2012
Carlos Vieira

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Abuso da posição dominante


 

 

arrancara alguns cabelos

em sinal de boa fé tinha garantido a madrugada

e a compostura do efeito molhado de gel

 

a fim de celebrar a escritura

com uma das mãos escondeu as “partes”

a outra tremer de frio fez a assinatura

 

o homem ficara irremediavelmente só

porque devem-se honrar os compromissos

e apertar o nó da gravata

 

havia o odor da tinta permanente

que o levou daquela exigência burocrata

a um lugar que o deixou distante

 

seminu e perplexo

leu e aceitou todas as cláusulas do contrato

no notário dos negócios do tudo ou nada

 

Lisboa, 17 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 

 

 

2- Observação das aves



Estava de pé sobre a falésia, a dois passos do abismo e não tinha medo de ninguém.
As gaivotas eram rabiscos no céu e o mar de pequena vaga, encrespado, era todo seu.
Ele coroado de sal viu passar as cegonhas, nuvens dentro de navios, cães que levavam os cegos pelos ares e as aves de rapina junto das andorinhas.
Reconheceu o melro que falava a sua mãe, o seu vizinho do 
lado e pareceu-lhe que viu também, o de baixo. Tantos homens amputados, os que falam sozinhos e os outros, os dos bons ofícios e dos maus. Tudo aquilo lhe era estranhamente familiar, até a chuva que aparecia para os dias cinzentos.
Para onde iam com tanta pressa com os olhos virados ao contrário, será que fugiam?
De repente tremeu, não sabe se de medo ou daquele frio de há muitos anos, num país abandonado. Sentiu-se perdido, sem saber de que lado estava o abismo.

Lisboa, 17 de Outubro de 2012
Carlos Vieira