sábado, 12 de outubro de 2013

Mare Nostrum a céu aberto



Sulcos
de sangue
no rio
no mar
são
rastos
raios de luz

um vulto quase humano
o eritreu
caminha sobre as águas

o murmúrio de tumulto
após a voz rouca
de pregar aos peixes
vésperas 
de sal a sol
e de naufrágio

na noite insaciável
o logro de lâmina
embainhada
afiada palavra
libertando
perfume de âmbar
sem refúgio

saber
o segredo secular
das pérolas
ao regressar
fugir
à rotina do sol
das missangas

ressuscitar
voltando a preencher
o lugar do corpo
que se quis reinventar
na tempestade

saber do insólito gesto
que era uma desajeitada
preposição de flor
uma janela
noutra terra

estudar o logaritmo
da viagem
do beijo
na melodia da espera
da despedida
da coragem

entre o crepúsculo
e as tréguas das gaivotas
partilham-se
centelhas
de um  tempo de esperança
um fragmento
de terra à vista

querer voltar
a esculpir o sabor
do seio túmido
da terra prometida

de amadurecer
um sonho ao relento
mediterrânico

na longínqua longitude
das pedras
em fila indiana
a caminho da alma
etíope
ingenuidade ou espanto
sempre a miragem
sempre descalços
por todos os desertos

é incrível o ruminar 
das águas
no seu leito subterrâneo
e em simultâneo
com a transumância dos astros
incansáveis 
na sua imprestável
vigília dos justos
testemunhando
o intrépido percurso
do coração nas trevas

enquanto isso
fixam-se os vestígios
da crueldade da guerra
nos olhos sem fim
das mães e das crianças 
que deambulam 
entre os escombros
do desencanto
e o reconhecimento
do fundo do mar

amoras ainda brilham
entre espinhos
tornando o silêncio
mais suportável
dele se ergue o canto
e o grilhão dos escravos
volta a ouvir-se a medo
adquire
a tonalidade da pele
o absurdo 
limite do antigo território
das tâmaras

a sua mão descansa
na amurada
na solicitude
na anca
do reencontro
com a vida

talvez pareça desafiar
a feroz presença 
da razão
que impede
a inesquecível
reprodução
de todas as madrugadas

a grandeza
do homem
de desbravar outro
caminho
no rio os raios de luz
no mar juncado
de cadáveres
sulcos de sangue
insurrecto
para eles da vida
apenas sobrou
a coragem de ousar
a vergonha
da europa.


Lisboa, 12 de Outubro de 2013
Carlos Vieira



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