sábado, 24 de janeiro de 2015

O nadador da pista 7


Chegou junto à piscina azul claro
com seu fato de banho e touca
em azul escuro
tinha também óculos de natação
a condizer
numa cor neutra
atirou-se num mergulho
para dentro de água
que pelo desenho do seu arco
circunflexo
revelava alguma técnica
a piscina era de 25 metros
e o homem estava à volta
dos cinquenta
sem ser em ritmo
muito elevado mas constante
foi variando de estilo
sentia-se mais à vontade
no livre
golpeava o espelho de água
com alguma firmeza
mas mantinha o tempo
de recuperação
de viragem
muito idêntico
sem paragens
nem distração dos outros
nadadores
que com o escoar do tempo
e da luz
iam abandonando a piscina
ele mantinha o abraço
à água
ninguém sabe quantos
quilómetros tinha percorrido
incansável
no outro dia apareceu a boiar
ninguém sabe
se foi suicídio ou doença súbita
ou crime passional
apenas o resultado da autópsia
poderá deslindar
o mistério da morte
do homem de meia idade
que gostava de nadar
que se superou a si próprio
e que morreu
num regresso ao meio liquído
à liquefeita
solidão onde nasceu.
Cá fora nesta imensa piscina
a descoberto
a multidão de náufragos
mal respira
e parece lacrimejar
talvez devido
ao excesso de cloro.
Repentinamente desperto
oiço a voz do meu ortopedista
" - Nada? O sr. nada!
A que respondi:
" - Sr. Doutor cá me aguento ao cimo
de água!
Nunca fui grande nada-dor!"
A que o clínico retorquiu numa insanável
contradição:
" - Fazia-lhe bem. Eu fui nadador-salvador!"
Lisboa, 24 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira


sábado, 17 de janeiro de 2015

A caixa de fósforos



Uma pequena caixa de fósforos
repousa no parapeito da chaminé
quantas cabeças vermelhas 
ali estão adormecidas
e podem sonhar o fogo.

Quantas vezes 
foram tuas mãos abrir
a pequena caixa
e teus dedos 
avançaram
para o desespero da lixa.

Quantas vezes
se iluminou subitamente o teu rosto
redobrou de brilho o teu olhar
e estremeceram os lóbulos do teu nariz
ao inspirarem aquele efémero
cheiro a enxofre
e se espalharam as faúlhas
e se queimou a tua blusa de seda.

Naquela caixa de fósforos
nas tuas mãos
batia o meu coração
e a tua delicada
astúcia
fazia rugir de novo 
no meu peito
um vulcão.

Naquele pequeno 
pedaço de madeira
o gesto súbito 
da tua contenção
logo após a ignição 
de um pequeno fogo
que lavra pelo meu corpo
e que apenas a brisa breve 
do teu sopro podia apagar.

Tinha falhado a electricidade.


Lisboa, 16 de Janeiro de 2015

Carlos Vieira


Título


Títulos
não são
o meu forte
é por vezes
uma tortura
procurá-los
e prender neles
o poema
poder
de síntese
títulos
que sejam
a senha
e recado
apelo inicial
o ponto de partida
a semente
que se reiventa
no seu rumo
erecta
a caminho do sol
palavra que bate
as asas ao longe
no horizonte
e que encurta
as distâncias
ou adensa
o mistério
que nos permite
o encantamento
e o silêncio
um título
é como o fruto
maduro
pendurado
na árvore
que existia
e assinalava
o pecado
no princípio
do tempo
ancoradouro
de versos
o teu nome
que deflagra
de desejo
a assomar
os lábios
e me devolve
a memória
uma identidade
saber nomear
o que amamos

proscrito
título
por cima
do escrito
passaporte
para a liberdade
Lisboa, 17 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira


A borboleta e o lampião


Perplexa
perante a inquietação
e a esperança da luz
a borboleta imolou-se
debaixo de um lampião
de nada lhe serviu
a inglória vertigem
do conhecimento
no alcatrão
repousam agora
as suas cinzas
e no ar a última
memória de desalento.
Lisboa, 13 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira


O túnel do silêncio



Saí do túnel do Grilo
e reentrei no do nevoeiro
sou este estranho hábito
inabalável vontade
ou mera circunstância
atração em viajar
pelo labirintos
do silêncio

Lisboa, 13 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

"Uma luz ao fundo do túnel"

Foto de autor desconhecido

A vida medíocre do pato-real


O pato
no lago
nada
em semi-círculo
nada
aleatoriamente.
O seu voo
curto
em arco
côncavo
finda
na orla
onde me encontro.
Atiro-lhe
dos bolsos
migalhas
vira-me as asas
que sacode
e volta
às águas paradas.
Até mais ver
companheiro
pato-real
habitante
do pântano.
Lisboa, 13 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira


terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Em xeque



No xadrez
de luzes
do prédio em frente
o que mais me atrai
é o mistério das casa pretas
gosto das estratégias demoradas
de tempêros na cozinha
temo pelas auréolas
tremeluzentes
dos plasmas
pelo embrutecimento
antecipam a paisagem
da morte retangular
quase toda a gente
faz amor
às escuras
às apalpadelas
as crianças brincam
em módulo wireless
os adolescentes zombies
dormem de dia
e desconhece-se
o que fazem à noite
temo que seja magia negra
ali sobre o lado de direito
a casa sempre iluminada
vive uma mãe solteira
ou talvez casada com emigrante
é uma peça que vive na angústia
de viver neste jogo da vida
sem qualquer truque
sempre ameaçada
personagem desgraçada
depois existem três gatos
cinzentos
todos iguais
com os mesmos hábitos
de marqueses
de marquises
o sol nasce para eles
de sete vidas
vivem desafogados
não pedem nada
finalmente um pássaro
de voo exíguo
todo o dia de baloiço
em baloiço
até ao limite do absurdo
no xadrez do prédio em frente
vão-se apagando luzes
ninguém sabe
objectivamente
o que está em jogo
e quem está em xeque.

Lisboa, 11 de Janeiro de 2015
Carlos Vieira