quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Poema do café da manhã



Peço uma italiana
e um bolo fofo de Belas
sou o único cliente do café
o primeiro talvez
vou dedilhando versos brancos
rimas desencontradas
e metáforas duras de roer
tento libertar-me  da rede tentacular
das palavras que gorjito
instintivamente
 depois
por um sistema de vasos comunicantes
vou alimentar o poema
da linfa das ideias e da ternura
quero fechar
com chave de ouro
deixar um ditirambo
e uns cêntimos de gorjeta.

Lisboa, 25 de Setembro de 2014

Carlos Vieira

Pequenas tempestades



Ontem Lisboa
era o caos
nas suas pequenas inundações
nesta impreparação
para as tempestades
e desvarios
neste lusa vivência
de carregar a dor
e a idade
no limite da paciência
ter de reinventar o amor
de não sabermos voar
e dos pássaros
só transportarmos
cantos e fragilidade.

Lisboa, 23 de Setembro de 2014-09-25
Carlos Vieira




terça-feira, 23 de setembro de 2014

Escrevinhar



Escrevo
até ficar a memória
em carne viva
até precisar
de uma transfusão
de sangue novo
e sol
depois renovo este ímpeto
de escrever
contra o muro da solidão
não me conformo
oiço outra vez
este eco ancestral
das noites de cristais
e de grilhetas
de forno na garganta
este cheiro a sal no porão
de escravos
e de estrelas na lapela
a levantarem-se do chão.

Lisboa, 24 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

A garça e o carneiro caraculo



Registo
a partir desta janela
de manga de alpaca
na narrativa da várzea:
a garça altiva
que viaja no dorso
de um carneiro caraculo,
a metáfora subversiva
da pose de poeta
a recitar
a duas vozes
 poesia efémera
e leve
sem açúcar.

Lisboa, 24 de Setembro de 2014
Carlos Vieira



Norman Share Photography

domingo, 21 de setembro de 2014

Seu corpo teu fogo sem artifício


Foguetes
a estrelejar
e a iluminar
a nudez ávida
do teu corpo
no ardor
da urgência
ao longo
da húmida erva
cúmplice
que esconde
aquele amor
proibido
numa aldeia 
do interior

no espanto
do rosto dela
afogueado
nesta noite
de um amor
que os consome 
em lume brando
só do encontro
no seu olhar
toda terra treme
e há vulcões
prestes a entrar
em erupção
e eles ficarão
a descoberto

ai perto
a algazarra
dos garotos
na sua pueril
brincadeira
de ir apanhar
as canas
e ainda se ouve
o resfolegar
de uma cansada
concertina
está a acabar 
o arraial
não vão deixar
de dançar
de mão dadas
contra a lonjura
e o desconhecido

amansa
lentamente
o estertor
dos corpos
vão ver-se
de novo amanhã
haverá  
de novo a festa
vai estrelejar
dentro de si
ele irá
levar-te consigo
até às nuvens
ali vão estar
definitivamente
protegidos
de qualquer
indiscrição.

Lisboa, 21 de Setembro de 2014
Carlos Vieira



“Kissing” por Alex Grey

sábado, 20 de setembro de 2014

do pecado da poesia todos os dias me confesso



Chega uma altura na vida
que tudo se esboroa
e se desfaz
no pó puro e duro

resta-nos 
apenas a fidelidade 
à poesia
para quem acredita

um pouco de pó
de poesia
misture bem 
é de consumo imediato

pouco elaborada
apenas rugas 
versos na pele do dia a dia
na génese ingénua teoria

poesia na hora
de uma solidão
que não contamos
que não contávamos.

de pequenas coisas
imprecisas memórias
derrotas e vitórias
a que sobrevivemos

de erros e desenganos
que soçobram
à dura luz 
do ardil da razão

neste tempo
ousar o poema
acompanhado do gesto 
épico de ternura.

Lisboa, 20 de Setembro de 2014
Caros Vieira

Pequena crónica contra a cegueira



O gato persa estendia a pata e jogava o novelo na varanda da vivenda, onde o sol se demorara, vislumbrei na porta de madeira o número 48 dourado.
Após chamar e não tendo resposta, entrei, segui o fio da meada, aposento a aposento, que adivinhei quase abandonados, página a página, desloquei-me como um felino até a origem da lã turquesa, percebendo que no final o gato continuava a brincar, enquanto na outra ponta, alguém ou algo a segurava, num dilema entre a firmeza e a imobilidade.
Fui-me debatendo entre um leve cheiro a mofo, longínquas iguarias e uma luz coada, onde se reflectia, uma miríade de poeiras suspensas.
Por fim, a um canto da sala, junto a uma janela em contraluz, um vulto que logo constatei esgrimia agulhas de tricot, embora um pouco encadeado, percebi que o fio turquesa, iria até junto do coração da silhueta.
Fixei os olhos no chão e fiz o exercício de me habituar à penumbra, à solidão secular dos objectos e dos móveis antigos, fui-me aproximando com o cuidado de não quebrar a frágil harmonia do momento, nem causar algum receio e até pânico, àquele que seria o meu próximo interlocutor.
A personagem estava sentada num maple, em oblíquo em relação à minha posição, parecia estar à minha espera, enquanto continuava a tecer a sua cruzada, pareceu-me ouvir-lhe uma breve interjeição, um desvio subtil da sua cabeça coroada de prata na minha direção, não me vendo, não poderia ver-me.
Afinal foi um homem que puxou o fio, seria mais uma sua artéria, com o qual articulava a sua precária serenidade, encarou-me mais fixamente, eu era para ele o que sempre seria, apenas um desconhecido, o persa entretanto aproximou-se, na sequência de um sinal para mim imperceptível, este transmitia-lhe a exacta noção do perigo.
Decidiu então falar e as palavras tinham todas o peso exacto, uma voz luminosa que parecia vir dos infinitos corredores do silêncio e das sombras.
Disse num tom onde se insinuava alguma angústia e desespero:
“ - Então é o senhor que vai levar os livros. Para mim, vai ser grande a perda, pois muito embora estarem na minha cabeça, vai ser pior no entanto, será a sua ausência, deixar de ouvir a sua voz, sentir o seu aroma, desfolhá-los, já que não os pude ler, sentia porém que o seu fim, não deveria este destino comum, de também eles, ficarem cegos entre estas paredes, nestas prateleiras!”

Lisboa, 20 de Setembro de 2014
Carlos Vieira

Foto de autor desconhecido de um gato que não é persa