sábado, 5 de outubro de 2013

Poema para um maestro cego

As heras
erguem-se
na sua impaciência
de sopros e de metais
de esconder os muros
de enlear
o tijolo vermelho
de insectos
a trautear clorofila
de vigiar
a demência
dos cabelos no ar.

À janela pendurado
o sorriso
do maestro cego
é um bulício de luz
que resiste
dentro da casa
a reinventar
o adeus
a decompor em ternura
doença
grades e solidão.

Suas mãos esquálidas
tem a pressa
da seiva e da música
que  vai acompanhar
o bailado discreto
das violetas
pairando
sobre os répteis
e os segredo
das sebes.

Fica ali especado
na penumbra
do fim de festa
natureza quase morta
quase incólume
à passagem
do tempo
que lhe resta
assiste
a este desconcerto
do mundo
aos ruídos familiares
de arrumar a orquestra.

Lisboa, 5 de Outubro de 2013
Carlos Vieira
 

“O Amor Cego” autor desconhecido

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Pura amostragem e por amostragem

“Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.” António Gedeão


Pura amostragem e por amostragem

I
Lágrima
espanto secular
inventado
de pura paciência
candeia
de pedra interior
sonho acorrentado
de luz solar
rumor de gruta.

II
Lágrima
pedaço de quartzo
no olhar da águia
que devora
o desfiladeiro do medo
asas de água
a pique
no abismo negro
da raiva.

III
Lágrima
sal que se soltou
no acre sabor
de morte
que dilui
a tinta seca
e luminosa
subtil enigma
verniz
que quebra
o esquecimento.

IV
Lágrima
feldspato de solidão
força motriz
que corre
em silêncio
contra à parede
no beco do nevoeiro
coragem
no rumo dos corais
de transpor
os muros
do tempo

V
Lágrima
janela de orvalho
onde corre
a timidez
da tua mão
e se insinua
uma moldura
de gelo
e de ausência.

VI
Lágrima
de fome destilada
em puro desespero
da bondade
visivelmente
desconfiada
farta de ideias
de poesia
de humanidade.

VII
Lágrima
que dança
no rosto
que descansa
na cadeira de baloiço
no movimento
do passeio
tão surreal
na disposição
dos móveis
no fim do Verão
o vento
tem para onde ir
o que é cortante
é a ordem de despejo

VIII
Lágrima
tranquila
num coração desfeito
sempre foram
quase trinta anos
a acomodarem-se
a escutarem
a solidão
 num outro peito.

A amostragem continua, por agora, esgotámos os solutos, solventes e reagentes.

Lisboa, 3 de Outubro de 2013
Carlos Vieira





Imagem Yo-Modo “I way”

domingo, 29 de setembro de 2013

Crimes sem castigo



Um punhal de onde escorre sangue é apenas um peixe debatendo-se fora de água. O cachorro que o fareja é um pedaço de nuvem, de metal caído do céu a ladrar no areal, ouro velho a debruar vultos de saudade, de rochedos e naufrágios.
Na moldura da manhã de prata deste mar, o punhal, o sangue fresco e dissidente é a única flor possível, no fim de Setembro.
Um crime por desvendar, uma nota dissonante, no silêncio de bronze.
Daqui a pouco a maré tudo isto irá apagar, os vestígios de luta inglória ou de dança macabra, pois claro. Depois de ter calado na noite cúmplice o grito exangue, vai agora devolver o peixe punhal ao mar.
Na solidão dos búzios poder-se-á escutar o verdete de um grito naufrago, de um punhal preso entre dentes ao fundo atlântico.
Agora, a única esperança de preencher este vazio de culpa está nesta memória de sangue, no olfacto de um cão vadio, reunir um assassino com um corpo morto na eloquência acusatória de uma moldura.
Fragmentos de indícios onde apenas se pode cheirar o autor e a vítima, eventualmente, a ironia de um motivo fútil e deixar para sempre um crime preterintencional sem castigo debruado a ouro velho de areal.
Tudo aquilo poderá ser tão-somente imaginação prodigiosa, talvez fundamentada na circunstância de um testemunho frágil, lixo, ruídos, resquícios e visões que sobram dos vapores de uma noite de excesso álcool neste Verão interminável.

Lisboa, 29 de Setembro de 2013

Carlos Vieira

sábado, 28 de setembro de 2013

Às voltas

land's end labyrinth


 

 

por dentro

do tempo

inacessível

 

no vórtice

do impossível

mistério

 

no vértice

de silêncio

da tua boca

 

aí se acende

se esconde

um desejo

 

a sofreguidão

insaciável

de asas

 

à flor da pele

pressinto

o rumor

 

de fogo

após o labirinto

do beijo.

 

Lisboa, 28 de Setembro de 2013

Carlos Vieira

 

País Enigma


País enigma

 

Sonhar ali

uma flor

devagar

o seu perfume

breve

pairando

sobre a neve

a raiz

incólume

a sonhar

o sabor

solar

de um fruto

que tarda

a demorar

o olhar

que guarda

ilhas

sementes

e o estigma

do meu país

em luto

enigma

urgente

que acorda

a sonhar

em bruto

a realidade

intangível

meu país

de maravilhas.

 

Lisboa, 28 de Setembro de 2013

Carlos Vieira

 


                                                                   Pintura de Salvador Dali

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Comer o pão que o Diabo amassou…



o pão alvo 
no silêncio inoxidável 
antes dos banhos da manhã

o fermento
leveda secreto e inexorável 
num tempo de arame farpado

o forno calado
na boca a cinza imperdoável
das almas incineradas

na toalha sem pão
tremeluz  a estrela imaculada 
se apita o comboio do subúrbio

oiço o cristal
na pedra que atravessa a janela
por ali a noite entra em sua casa

vive no sótão
todo o tempo de infância
que é todo o tempo da sua vida

parte a mãe
apenas por causa da burocracia
o pai foi atrás da mãe e ela não pode ficar sozinha.

Lisboa, 24 de Setembro de 2013
Carlos Vieira


domingo, 22 de setembro de 2013

Analepse para pequenas coisas






A partir de agora só vou falar de coisas mínimas

insetos quase ausentes com seus gestos tímidos.


O movimento invisível de um olhar para a ternura

de um pássaro desdobrando a sua asa em contraluz.


O fulgor de um rosto no apressado rumor do lago

na mais desconhecida angústia das palavras caladas.


E daquelas que em surdina dissemos fora de tempo

até há doce cumplicidade das vozes na porta entreaberta.


A mão pálida é um pássaro pousado sobre o cromado

enquanto a chave roda e desfaz o doméstico equívoco.


Depois sobre as pontes ocorre-me uma ilusão de viagem

uma súbita vertigem de que ali venceremos o tempo.


Vou pelo jardim público e escondo-me na fresca penumbra

circulo cego de cores guiado pelo solfejo das folhas e aromas.


Descortino entre caos o golpe de mestre do carteirista

e a sua dramática desolação perante o vazio do porta moedas.


Emociona-me a mulher com seu pé descalço e sapato na mão

de tacão alto sob a armadilha da calçada portuguesa tão frágil.


Não imaginam como me dói o Corneto derramado da criança

a profunda tristeza do seu olhar deixa-me o coração gelado.


Vou pelas ruas desertas e esmolas no rés de chão do fim das vidas

sorrio aos olhos enrugados de esperas por amores e gatos e gaiolas.


Enfim fico em êxtase no encontro com a imagem de um grão de areia

ali anónimo e indiferente à convulsão que provoca na engrenagem.


Os turistas da grande solidão disparam a tudo quanto mexe ou fica quieto

na grande guerra de roubar e levar para casa toda a beleza do mundo.


Lisboa, 22 de Setembro de 2013

Carlos Vieira