sexta-feira, 12 de julho de 2013

Não sou ninguém porque sou todo o mundo


Sou de cada interstício
o ânimo 
de todos os lugares
sei do despertar
de todas as esquinas
das ciladas tecidas
articuladas nos ângulos mortos
e estive
no suor e no sangue
na confluência de tempos
fui um golpe de asa
de onde partiu
o início da ponte
debaixo da qual
correram as águas mais turvas
e os segredos mais inocentes
suportando sonhos largos
assombrados
por vinganças
e vigiados
pela melancolia
das tardes de Verão
pelas palavras
despojadas
no rumor
da cal mediterrânica
não me reconheces
mas sou eu ninguém
que descanso
por fim
no rumo feliz 
das tuas omoplatas
e aí sou o mundo todo.

Lisboa, 12 de Julho de 2013
Carlos Vieira

Imagem de autor desconhecido


quarta-feira, 10 de julho de 2013

O regresso à minha terra



Povoações esquecidas
e uma ânsia de olhares
por outras vidas.

Os nossos semelhantes
com seus rostos maravilhosos
tisnados
suas rugas de agora
são os silêncios e as dúvidas
de dantes.

Humildes
de tanto lavrar desencantos
de entretecer delicados
crepúsculos e memórias
e ainda, recantos surpreendentes
para o reencontro dos lábios
cântaros de água fresca
que repousaram
à sombra da memória
de onde ladram os cães.

Enquanto isso sigo
sozinho
com as mão nos bolsos
pela rua única
olha o perigo
a multidão silente
de tanta gente só
por um postigo
vou até à sua noite
chama-me aquele perigo
da solidão de cada um
a beber um copo.

Ombro a ombro
cá dentro reinvento
o cinzel e o espaço
para cada um
e em cada rosto
um tempo
com um pouco de sorte
o golpe em que a todos reconheço
depois a fonte da aldeia
essa ferida eterna
de onde escorre
a teia
daquela
que volta para ser
a minha solidão

Lisboa, 10 de Julho de 2013

Carlos Vieira

Sem lugar



Lugares
a que parece
sempre pertencemos
paisagens em delírio
que colhem
dentro de nós a raiz
de uma súbita ribeira
na sua margem
sentados a comer figos
a molhar os pés
depois regressamos
descalços pelo asfalto
a uma cidade
que esquecemos
e reconstruímos
a partir
da explicação dos pássaros
à sombra
do exílio
de um salgueiro.

Lisboa, 9 de Julho de 2013
Carlos Vieira



Skinny Love - Birdy/Bon Iver - cover by Sandra Moreira

terça-feira, 9 de julho de 2013

Qual o meu lugar


Há lugares assim
para os quais
uma força desconhecida
nos impele
onde não existe fim
nem céu
que nos convença
e nós ali ficamos
deitados contra à terra
e rente à pele
tão pura e serena
medra
uma exaltação
a azáfama
de uma pequena guerra
interior
de só já existir
aquela pedra que dura
e onde cintila
como um afago
uma estrela em viagem
no arco da memória 
voo que perdura
e que por três vezes
beijou
negando no lago
o reflexo
da sua imagem.

Lisboa, 9 de Julho de 2013
Carlos Vieira

Imagem by Daniel White

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Lince II



Gosto muito de linces
nunca tinha visto nenhum ao vivo
até que um destes dias consegui surpreendê-lo
numa curva da estrada
na orla de um bosque e da madrugada
contra o vento
de orelha levantada e de lombo arqueado
gesto e instante de um felino que nenhuma palavra
pode descrever nem sequer murmurar
por mais ágil e astuto que seja o poeta
ou esteja em causa a sobrevivência
de súbito foi uma correria
desinteressei-me
deixei-o ir
bastam-me por agora as penas da perdiz
dispersas sob a erva do caminho
um momento de brisa a favor
em que me curvo
intenso
sob a poesia.

Lisboa, 3 de julho de 2013

Carlos Vieira