sábado, 12 de janeiro de 2013

Agora, o apocalipse



A guerrilha das palavras

despedaçadas

articulando a esperança

o dedo que percorre

nervosamente

o espaço da necrologia

ao encontro

de todas as mortes.

 

Depois a carta oficial

a certeza da mina

da surpresa do voo

a propaganda

dos danos colaterais

o mito

da inevitabilidade

e o elogio do destemor

na trincheira

da tinta permanente.

 

Alguns relatos

referem um imbróglio

de corpos e de membros

por identificar

onde alguns vislumbram

o espírito de missão

outros apenas a carne

que foi para canhão

exposta ao sol

os seus ocupantes

vítimas da emboscada

dilacerados e irreconhecíveis

só os familiares

irão com certeza ver

as medalhas nos seus belos

estojos

há muito compradas

e os discursos

de um justo reconhecimento

e a bandeira dobrada e engomada.

 

Uma aventura de heróis mortos

numa confluência de águas turvas

e páginas revoltas de vergonha

na margem do rio

e da razão dos répteis

e da algazarra

da destruição massiva

no céu

as colunas de fumo

e balas tracejantes

os very-lights

“sejam bem vidos à festa!”

 

O soldado reza

por alguém que se esvai

e depois vai-se

a vida continua

a limpeza e o saque

feitos à pressa

a evacuação

no helicóptero que demora

tornando

irremediavelmente

tardia a transfusão.

 

Uma ração de combate

no “cu-me”

do medo

do desespero

naquela mão decepada

abandonada

no campo da batalha

absurda

de baionetas caladas

enquanto semi-deuses descem

sobre a terra queimada

de pára-quedas

indiferentes

ao fogo

das antiaéreas.

 

O pelotão

camuflado na linha

de água do tempo

sem saber da morte

à sua espera

na próxima curva de nível

o estampido

um clarão e um cheiro

a pólvora queimada

e o silêncio derramado

um breve sorriso inimigo

no canto da boca

tudo diz

e não digo mais nada.

 

É imperioso

sair dali depressa

e mete o cantil aos lábios

desde há muito que a sede

é a sua amada

é ela que o desvia

deste trilho que percute

por entre a névoa

a flor acesa e acidental

de uma rajada

de “metralha-amadora”.

 

Se bem que aqui

nada acontece por acaso

até para cagar

está prevista uma estratégia

estão previstos

os números de mortos

de urnas

e de viúvas

de velas e orações

de filhos de valentes

e de cobardes

de legiões de estropiados

apenas existem porém

dúvidas fundadas

sobre o número de noites

de insónias.

 

A voz de comando

ajuda-nos a sobreviver

no meio da selva

e do betão

o tão traiçoeiro

franco atirador

tão certeiro

e as granadas como aves

a voarem sobre os muros

a entrarem-nos

pela casa dentro

o caos do salve-se quem puder

tudo isto

acredita-se

pode causar

algum desconforto.

 

Os tanques

esmagam a primavera

fechada a escotilha

naquela torre

onde sonhamos

as dunas da praia

cegos pela areia de deserto

erguem o membro fálico

“fodam-nos a todos!”

ordena o comandante

que mais pode ele dizer

que mais podemos fazer

são eles ou nós

“estatística-mente”

se bem que pudessem

ser eles e nós

ninguém é de ninguém

e eu não sou de intrigas

tudo em defesa

da democracia

ou da nação

ou dos mais nobres princípios.

 

Lisboa, 11 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira

 

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Três árvores pela manhã




Nos caixilhos da janela
a manhã
é um pinheiro polar
esquartejado
a destilar
reflexos antigos de prata
e a percutir  
filigranas de ouro
contemporâneas
apenas lágrimas
talvez de chuva.

A manhã
é a nobreza dura e nua
que sai da cama
estremunhada
ferindo as nuvens
faia perturbada.

A manhã
é uma cipreste
sobre a esquerda baixa
essa árvore de explicar horizontes
que melhor podem esconder
a conspiração dos pássaros.

Três árvores
para fazer um jardim de Inverno
a quase floresta
onde corre a seiva secreta
e renasce o fruto
dessa manhã
janela dos homens
da sua existência vegetal
que na raíz
do nocturno percurso
teimam em acreditar.

Lisboa, 9 de Janeiro de 2013
Carlos Vieira



segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A imprevista luminosidade dos lugares


Aqui estou junto do poço
nada procuro
nem a morte
nem o amor
nem a infância
bastava-me
aquela recordação de urtigas
e de hortelã
fustigada pelo rumor dos insetos

Encostado ao pequeno muro
De tijolo
que da minha eternidade me separa
vou descendo
até ao mais profundo reflexo de mim
na superfície da água
para nada
nem sei para quê
não sei como cheguei aqui
ao poço deste tempo
e porque puxo na roldana
mais um balde de água fria.

No entanto
na concha da minha mão
os pássaros podem vir beber
o cântico flamejante dos peixes
a sombra cristalina da árvore
que surpreendida estremece
do meu súbito mergulho
num júbilo de tangerinas
duvido se tudo isto servirá
para coisa alguma
nem toda a gente gosta
do perfume das cascas.

Lisboa, 7 de Janeiro de 2013
Carlos Vieira

sábado, 5 de janeiro de 2013

Breves apontamentos de uma paisagem polar


A avioneta

                   era um punhal aceso

                                                          na vertente sul

 

nos binóculos dança um vulto negro

                                                       só ou oculto

                                                                      nas asas da neve

 

o veneno na zarabatana

                                           a verdade nua e crua

                                                                          trespassada na estepe                                                                  
                                                         

 
num cerco

                 de lobos e de sangue  

                                                       o branco derramado

 

no cockpit do poema

                                   a embriaguez

                                                         do deserto e das alturas

 

a brevidade dos líquenes

                                         e o estrépito das hastes

                                                                                    o oiro fugaz das renas

 

enquanto o caiaque pronuncia a suavidade

                                                                       do degelo

                                                                                   os salmões cruzam o sol da meia noite

 

impossível é a missão de salvamento

                                                   dos soterrados nestas noites em branco

                                                                                    nas avalanches de solidão e esquecimento.

 

Lisboa, 5 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira

 

 

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

No rasto do teu silêncio VI

 
O teu rosto é um astro
que adormece no meu colo,
as minhas mãos
nuvens pousadas no poema
bússola de luz
que te olha de frente,
não ouço nada, nem ninguém,
só no silêncio te reconheço
e só desse quase nada
posso sobreviver,
as minhas mãos
são eternamente asas
do desejo de te reencontrar
e na fluorescência
desta poeira cósmica
irei decifrar
as nossas primeiras palavras
de volta à órbita
do nosso amor extravagante.

Lisboa, 30 de Dezembro de 2012
Carlos Vieira
                                                “Astral Travelling” by Petrovsky+Ramone

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

O amor ao pequeno-almoço


Carlos Vieira

No rasto do teu silêncio V

 

Os dedos

emergindo no lago

nesse lençol

de onde se evaporava

o odor nocturno da tua pele,

a última palavra suada

nos poros acesos,

o céu sussurrado

na viagem dos teus lábios,

ouve-se um cavalo a galope

a invadir  a tua ausência,

ninguém sabe se partiste

ou se pudeste calar

o opróbrio

deste mundo.

 
Lisboa, 30 de Dezembro de 2012

Carlos Vieira
 
                                                Silence by donjuki