A guerrilha das palavras
despedaçadas
articulando a esperança
o dedo que percorre
nervosamente
o espaço da necrologia
ao encontro
de todas as mortes.
Depois a carta oficial
a certeza da mina
da surpresa do voo
a propaganda
dos danos colaterais
o mito
da inevitabilidade
e o elogio do destemor
na trincheira
da tinta permanente.
Alguns relatos
referem um imbróglio
de corpos e de membros
por identificar
onde alguns vislumbram
o espírito de missão
outros apenas a carne
que foi para canhão
exposta ao sol
os seus ocupantes
vítimas da emboscada
dilacerados e irreconhecíveis
só os familiares
irão com certeza ver
as medalhas nos seus belos
estojos
há muito compradas
e os discursos
de um justo reconhecimento
e a bandeira dobrada e engomada.
Uma aventura de heróis mortos
numa confluência de águas turvas
e páginas revoltas de vergonha
na margem do rio
e da razão dos répteis
e da algazarra
da destruição massiva
no céu
as colunas de fumo
e balas tracejantes
os very-lights
“sejam bem vidos à festa!”
O soldado reza
por alguém que se esvai
e depois vai-se
a vida continua
a limpeza e o saque
feitos à pressa
a evacuação
no helicóptero que demora
tornando
irremediavelmente
tardia a transfusão.
Uma ração de combate
no “cu-me”
do medo
do desespero
naquela mão decepada
abandonada
no campo da batalha
absurda
de baionetas caladas
enquanto semi-deuses descem
sobre a terra queimada
de pára-quedas
indiferentes
ao fogo
das antiaéreas.
O pelotão
camuflado na linha
de água do tempo
sem saber da morte
à sua espera
na próxima curva de nível
o estampido
um clarão e um cheiro
a pólvora queimada
e o silêncio derramado
um breve sorriso inimigo
no canto da boca
tudo diz
e não digo mais nada.
É imperioso
sair dali depressa
e mete o cantil aos lábios
desde há muito que a sede
é a sua amada
é ela que o desvia
deste trilho que percute
por entre a névoa
a flor acesa e acidental
de uma rajada
de “metralha-amadora”.
Se bem que aqui
nada acontece por acaso
até para cagar
está prevista uma estratégia
estão previstos
os números de mortos
de urnas
e de viúvas
de velas e orações
de filhos de valentes
e de cobardes
de legiões de estropiados
apenas existem porém
dúvidas fundadas
sobre o número de noites
de insónias.
A voz de comando
ajuda-nos a sobreviver
no meio da selva
e do betão
o tão traiçoeiro
franco atirador
tão certeiro
e as granadas como aves
a voarem sobre os muros
a entrarem-nos
pela casa dentro
o caos do salve-se quem puder
tudo isto
acredita-se
pode causar
algum desconforto.
Os tanques
esmagam a primavera
fechada a escotilha
naquela torre
onde sonhamos
as dunas da praia
cegos pela areia de deserto
erguem o membro fálico
“fodam-nos a todos!”
ordena o comandante
que mais pode ele dizer
que mais podemos fazer
são eles ou nós
“estatística-mente”
se bem que pudessem
ser eles e nós
ninguém é de ninguém
e eu não sou de intrigas
tudo em defesa
da democracia
ou da nação
ou dos mais nobres princípios.
Lisboa, 11 de Janeiro de 2013
Carlos Vieira
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