quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Canção para um novo ano

Solfejo
o céu e o mar
e a terra
sofreguidão
o nunca circunscrito
desejo insular
da palavra livre
gaivota ébria
que se solta
da espuma
da rebentação
e se torna
noite cintilante
e estrela cadente
fragmento 
de canção 
flor que irrompe
dos pulmões
da terra
ave que acende
a lágrima
no olhar
onde ressoa
de par em par
um sorriso
o abrigo de lobo
acossado
solitário coração.

Lisboa, 31 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira




A palavra do homem

Não há 
último dia
para a palavra
sim para o homem
ela sobrevive
a todas as crise
ao gemocídio 
e ao aparatoso acidente
a toda a mordaça
resiste 
aquela que o amor não disse
e a que balbucias terna 
e estenuada
após o dia de trabalho
e ainda todas as outras
embargadas
na dor da separação
e as entaladas na garganta 
da vergonha e da culpa.
Porém, 
pode haver 
um último dia 
para as palavras
quando elas se reúnem
e não persiste o seu eco
ao longo dos séculos
ou da nossa vida
se da sua conjunção
resulta embaciado 
o sentido
e não comungam 
do ancestral bramido 
das ondas incessantes
no colo luminoso do areal
palavras que matam 
e agonizam 
soam a falso
ou são atiradas ao vento
da difamação e da injúria
filhas bastardas da oportunidade
e da circunstância
palavras escolhidas a medo
transidas na sua dificuldade
da compaixão 
e da audácia de clamar por justiça
olhos nos olhos
palavras com prazo de validade
filhas da hábil estratégia 
no mercado do engano
últimas palavras 
murmuradas por moribundos 
extorquidas 
pelos cangalheiros
que parasitam as ideias dos outros
quanto tempo dura
quanto vale 
a palavra do homem
de palavra
já muito pouca gente sabe
com todo este ruído
à nossa volta
fomos desaprendendo
o seu valor
e já nos vão faltando
as palavras
para o dizer.

Lisboa, 31 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira


"O homem é um ser que se criou a si próprio ao criar uma linguagem. Pela palavra, o homem é uma metáfora de si próprio."
Octavio Paz




terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Paisagem para um dia de Natal



Subiu de novo ao Castelo de Porto de Mós, não conseguiu abrir a porta da fortaleza, por ser feriado, cinco andorinhas esquecidas, andavam às voltas, entre ameias, varandas e torres, nem por elas ali existirem se vai acabar este Inverno.
O sol brilhante, ajudava ao cinzento claro das serras que era ali e acolá manchado do verde escuro da urze, do tojo e outros arbustos.
Num contraforte a Sul, na Serra dos Candeeiros, a ferida exposta a céu aberto de uma pedreira. As torres da energia eólica lembraram-me um pouco D. Quixote com todas as alegorias e cruzadas que têm hoje, de renovável e de sustentabilidade.
Ao lado do rio Lena, um encontro épico, o cansado Rocinante confraterniza com o cavalo resfolegante de D. Fuas Roupinho que se tinha apeado, para descansar um pouco, depois das peripécias do Sítio da Nazaré. O rio da sua infância, já não corre, cada vez mais cercado de canaviais e salgueiros, lá continua o seu incessante voltejar pelos vales, até à vila da Batalha.
Ali por debaixo do castelo, uma pequena máquina amarelo torrado, roncava inquieta
no pequeno cemitério contíguo entre o branco e negro dos jazigos e das campas,
lembrando-nos que também se morre no dia de Natal.
Lá à frente a Central Eléctrica recordava tempos de fome, de pneumónica e de carvão.
Ali em frente, o velho edifício da cadeia comarcã que teve os seus melhores momentos,
nos piores de tantas almas mais ou menos tresmalhadas e penalizadas.
Na esquerda baixa, a velha Igreja de S.º João discreta com suas árvores ao redor, que se revelaram entre serem sombra de brincadeiras ou de oração, o Largo do Município logo a seguir, onde desaguava a procissão do Senhor dos Passos com seus calvários e cruzes, seus anjos de asa caída ou remendada, aromas de ramos de flores que se matizavam com o cheiro a naftalina de trajes e fatos ressuscitados.
Enfim, lugares de memórias que daqui abarco e ao longe, as casas brancas escondidas
e coroadas, entre os pinhais e o ouro das folhas de carvalho a sua aldeia, os pomares que se estendem ainda, pelos vales em tronco nu, os vinhedos que descem pelas encostas, agora amarrados às pautas de fios onde se penduram, em efémero equilíbrio, os trinados dos pardais.
As terras abandonadas vão sendo ocupadas por silvados e vão desaparecendo caminhos, entre as promessas futuras de amoras e as fugas esbaforidas de coelhos bravos, para os esconderijos do passado. Daqui vislumbras pois esta Europa a que chegámos, esse último pesadelo que já foi sonho que acalentamos.

Tojal, 25 de Dezembro de 2014

Carlos Vieira

Amar em apneia

Deixo-me 
ficar aqui deitado
no fundo do mar
a ouvir-te 
a tocar-te no âmbar 
dos ombros
búzios
onde a sonhar 
adormeci

as águas vivas
ascendem 
almas penadas 
errando
ávidas 
pela superfície 
das coisas
e pela espuma 
dos dias
enfeitiçadas
pelo meu alaúde

com a luz 
da manhã
vejo as sombras 
passar
como se fossem 
nuvens
ou serão
tuas mãos
inatingíveis

testemunho
a queda repentina
de outros náufragos
a borbulhar
ao meu lado
todos os dias
oiço o estrondo
de tantos
companheiros
caídos 

sigo 
sem ver o horizonte
os navios com suas quilhas 
de rasgar a solidão
e remos aflitos 
contra a corrente
estendo as mãos
devagar
de único Deus
que pode amainar 
a tempestade

oiço
o ruído abafado 
profundo
do tráfego
as buzinas 
num estrépido
de incontida 
emoção
nas areias movediças
da cidade 
submersa

tudo se subverte 
na música
minimal
das ondas 
que se despenham
incessantemente
no ouro da praia
e por fim tudo 
se submerge 
e fica preso 
à pesada âncora
do silêncio

o assobiar 
das baleias
assinala o rumo 
do seu enorme 
coração

as conversas abafadas
obedecem
aos preliminares 
dos grandes golpes
e dos pequenos gestos
com que devem amar 
os peixes timídos
e resplandecentes

peixes translúcidos 
no seu azul turquesa nómada
interlocutores 
da utopia 
e dos mistérios indecifráveis
que jazem 
nos grandes abismos
esgueiram-se atónitos
perante a minha invulgar presença 
submarina e atenta
à evidência sufocante
de não escapar à morte

os grandes predadores 
rondam
na esperança
do sangue vermelho e quente
e da minha cumplicidade
de morto vivo
e exploro 
a minha grande gargalhada
silenciosa
debaixo de água

respiro agora penosamente
acreditando
que o halo de luz que penetrou
nas águas salgadas
vai acender os candeeiros de sal
e de insónia
definindo definitivamente 
a eternidade 
dos contornos do teu corpo
que mergulhou corajosamente
até profundidades
onde a pressão 
da ausência do amor
torna impossível
a humana existência

noto de novo em ti 
o instinto animal 
e a etérea presença
que te conduz
à serena aquiescência 
é a tua voz
que a mim me seduz
barco à vela 
que surges nua
à vista desarmada
no periscópio
do meu desejo
a contraluz
ou será 
da falta de ar
que te atira
contra o recife
na apneia
de um desencontro
à superfície.

Lisboa, 29 de Dezembro de 2014

Carlos Vieira

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Uma vida a preto e branco


As zebras pastam
pelo cercado
naquele gesto 
ancestral
inconformadas
da aridez
na terra batida
desta sua vida
que muito embora
pouco colorida
por elas sempre fiquei
embevecido
dado o equívoco
recorrente e pueril
se eram as zebras
às riscas pretas
pintadas de branco
ou vice versa.
Lisboa, 24 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira

Foto de autor desconhecido

Gorila na bruma


Hoje
era um bom dia
depois que se levante
o nevoeiro
para ir ao jardim zoológico
espreitar
o sol soalheiro
que se podia reflectir
naquele gorila
de pêlo dourado
a estender as mãos
para o amendoim
entre as barras
e a ferrugem
de ferro forjado
da sua jaula
e na leveza do fruto
naquela troca
de olhar
de incrível humanidade
fixo em mim
distingo
como fico preso
à ligeireza
explícita
das metáforas
à bruma da memória.
Lisboa, 24 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira


Imagem de GORILLAS IN THE MIST, Sigourney Weaver, 1988,

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Sopa de letras


Ali aos Anjos
na Almirante Reis
engordam as filas
na sopa dos pobres
hoje feita
de massinha de letra
perante
os olhos encovados
e barbas
de vários meses
dançam coxas
e miúdos
de galinha
uma “canjinha”
de poemas
envergonhados
de pobreza
acompanhada
dos cachorros
escanzelados
de todos os dias
têm em comum
esgravatar
numa tristeza
húmida.

Lisboa, 22 de Dezembro de 2014
Carlos Vieira



Foto de autor desconhecido