sábado, 8 de novembro de 2014

Pão pão

Pão pão
queijo queijo
poema sem pastor

Lisboa, 8 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

Pão ou poesia

"Se tiver apenas dois cêntimos nas suas mãos, compre um pouco de pão com um e uma flôr com o outro." (Provérbio chinês)



Tem dias
que a poesia
anda arredia
as palavras
fogem
como se tivessem
visto bicho
há destes dias 
em que a gente
não sabe
onde nos havemos
de meter
e desaprendemos
de falar
e se falamos
logo
nos olhamos 
de lado
perante
a oportunidade
que perdemos
de ficar calado
este tempo
de Outono
de nudez
das nossas vidas
de sabermos tanto
e de possuirmos 
tanta coisa
e da escassez
de palavras
e da escolha dramática
ser cada vez mais
pão ou poesia.

Lisboa, 8 de Novembro de 2014

Carlos Vieira

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Penas



A pluma
que voa e dança e plana
pousa na terra exausta
é aquela que foi ágil na tua mão
efémera memória de ave
foi toucado na revolta do índio
é suave dedilhar da plangente guitarra
forrou o catre da insónia
e sossegou os sonhos nunca realizados
foi a mesma que calibrou a viagem das setas
na sede do amor e da guerra
na sua avidez de sangue derramado
de onde escorreu o murmúrio ancestral
e o grito do silêncio dos que foram incinerados
na intolerância do fogo
e no esquecimento das cinzas e das masmorras
penas dos que amaram desmesuradamente
e lâminas da luz resplandecente
e experimentaram o gume da fome
que sobrevoa  os países
e das fraquezas fazem forças
e dão asas à liberdade.

Lisboa, 6 de Novembro de 2014
Carlos Vieira


Chris Maynard

 

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Aguarela


Pingos de chuva
a tamborilar
no espelho
caligrafia
de água verde
que me escorre
do tanque
e do reflexo das faias
a aguilhoar
um céu de nuvens
jangadas de espuma
em usurária
discussão
de prata de lei
enquanto isso
a rã
retardatária
foge do poeta
que a surpreende
e salta
pensando-se
a salvo
para dentro
da armadilha
da poesia
depois
que passou muros
e barragem 
contra o tempo
ouço-a com o cinismo
dos desenganados
coaxar
um verso de folgo
a invadir-me
o tédio do despacho.

Lisboa, 5 de Novembro de 2014
Carlos Vieira



domingo, 2 de novembro de 2014

Anoitece



Não saí de casa
e já anoitece

à volta da auréola 
do candeeiro da rua
deixou de haver
uma legião de mosquitos
e isso pode querer dizer 
alguma coisa

no silêncio
da casa 
de onde não saí
pode-se escutar
o ranger subtil
das páginas 
de um romance
que desfolho
ou um clamor
das vozes da ficção
na sua nocturna
vida de tinta

enquanto tal
ondas de faróis
ciclicamente
vão golpeando 
a noite
de todos
quantos habitam
esta rua
a lembrar holofotes
em campos 
de concentração

para lá das cortinas
e das persianas
das gaiolas
das cozinhas
as pessoas 
à minha frente
pisam-se
literalmente
umas por cima das outras
e vice-versa
vagueiam lentas sombras 
domésticos dramas

há dois gatos 
indiferentes
à janela
um terceiro
no sofá sentado
vê televisão
tudo tão
previsível
como se fosse
ainda a preto
e branco

vou sair agora
porque à noite
todos os gatos
são pardos.

Lisboa, 2 de Novembro de 2014
Carlos Vieira





Embriagado na sobriedade das palavras



Curvo-me
sobre as palavras
que escolhi
tento encontrar
aquelas que juntas
possam deflagrar
o fogo interior
em que se oiça
límpido o coro
dos homens
amordaçados
que em cada voz
se eleve a luz
e a lâmina
o peso líquido
que nos embriaga
em todas e cada 
palavra
reverso do silêncio.

Lisboa, 2 de Novembro de 2014
Carlos Vieira



Um corvo de azeviche...

Um corvo de azeviche
sulcou o céu azul da minha rua
preso no bico
um pedaço de queijo de cabra fresco 
do conto apenas o canto
de algum poeta
que não sabe voar.

Lisboa, 2 de Novembro de 2014

Carlos Vieira