quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013
Fulgores, fragâncias, rumores
Este é o silêncio
que te esconde
sobre a poalha
que é o peso
talvez de um século.
Ainda agora
acabado de pousar
tange a epiderme
de um gesto
exausto.
Soergue-se
no teu rosto o sorriso
que se acende no piano
em lume brando
numa inevitabilidade
de rugas
num percutir de teclas.
Estreito istmo que me leva
à já longínqua península de ti
e me devolve
o teu grito encalhado
e onde poderia ser de novo
areal para o teu murmúrio.
Tinha sido
um tempo de grilhões
roendo ávido
a fulgurância das palavras
e tu ficaste incrédula
perante a demência das estrelas
que se afogavam no mar
inconsoláveis.
Em simultâneo
gaivotas de insónia
despenhavam-se
na espuma das páginas
do amor desencontrado.
Vislumbravam-se
frutos maduros
sonhando novas ousadias
reinventando pecados
na raiz de fantasias
hieróglifos eram
abraços desesperados.
Levo-te pela minha mão
até à escrita
ao espanto
e à inexperiência
do primeiro beijo
tu quieta
calada e sublime.
Apagas os rastos
da tua passagem
por minha casa
mas encostado às paredes
voltei a ouvir
a tua ou a minha
agitada respiração.
Seguem-te as minhas mãos
e agora não sei fazer nada
tenho presa por um cordel
uma nuvem grávida
de justiça
pode ser que um dia chova
e te reencontre.
O punhal afiado das horas
nos dentes
o teu olhar fulminante
e sem abrigo
no teu coração refém
vive o poema magnânimo
disponível e sentado.
Lisboa, 25 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira
“Blue Nude” de Henri Matisse
sábado, 23 de fevereiro de 2013
Canto de cisne
Como era belo o cisne
que ainda agora aqui passou tão lento
surpreendeu de branco
a quieta superfície de água do momento
a suave ondulação
da sua alma e seu movimento submerso
um cisne em verso
seria sempre belo e causaria espanto
dada a inquieta discrição
sua afável beleza e seu precário canto
Lisboa, 23 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira
Heras
Descobre dentro de si
a grande solidão
dos bichos da horta
a geometria
discreta e esquálida dos cães
a cumplicidade
de semáforos e candeeiros
sonâmbulos
por becos ou arrabaldes de luz
nas madrugadas
de néon e neblina
aqui nesta terra de ninguém
que já foi terra prometida
de cidades desertas
e dos campos abandonados
a meio caminho de si mesmo
cercados de memórias
heras que nos consomem
e nos ocultam
e em hinos de clorofila
vencem na verticalidade
dos muros
a flor azul da morte
Lisboa, 23 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira
Imagem de autor desconhecido
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013
poesia biológica
vou regressar à pura infância
a esse mágico tamborilar da chuva
uma voz na superfície nocturna dos lagos e do mundo
poderei voltar a ser a alegria íngreme dos ninhos
e de escorregar
na nudez dos troncos
arrancar cenouras
essa ternura de dedos enterrados na terra fértil
que saboreio na doçura de um olhar
um êxtase de musgo e ouro e prata no rendilhado
das árvores
metástases contidas no céu azul cobalto
sou apenas um único fruto no pomar
depois serei um peregrino num caminho
de terra batida
vejo as couves
como grandes mãos verdes
e por elas posso beber a mais pura água fresca
pendurados nos ramos
vejo os pássaros transidos de asas molhadas
uns do frio e outros do desespero
Lisboa, 22 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013
Meu amor, minha cidade à chuva!
Chove na cidade
interruptamente.
Tu passaste
pelos intervalos da chuva
até aos ossos
encharcada de solidão.
Oiço-a que cai
inclemente
na tua face molhada.
Respira-se
uma secreta tempestade
que nasce dentro de ti.
Cidade alagada
vento e bátegas de água
no teu cabelo revolto
algas e caracóis.
Debaixo do chapéu de chuva
de um pensamento
a ironia
do teu rosto submerso
de onde parte o rio
que galga as margens.
Os peixes atónitos
entram pelas janelas
de surpresa
e confraternizam
com os animais domésticos.
A água devora os caminhos
os lugares da luz
onde segurava as tuas mãos.
Os barcos descem pelos telhados
prenhes de nossas inúteis aventuras
que o fumo das chaminés
vão contar
A memória mais húmida
dos teus beijos
chove na cidade.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira
terça-feira, 19 de fevereiro de 2013
Não desejarás o que é do teu próximo
A casa
folha de papel
onde o vento sopra
e os dentes batem
onde a tempestade assola
e a noite
é uma página em branco
se nela escrever
a palavra tábua
logo ela começa a flutuar
depois de ter sido
sonho e cama e mesa
ou destroço de navio
no sobe e desce
da vida tumultuosa
agora aqui está a tábua
memória
palavra de esperança
dada ao náufrago
ou será apenas
palavra derradeira
abraço do afogado
despejado da casa
onde entrava o vento
a fome e a chuva
mas também
o sol e o riso
agora devoluta
é apenas no desespero
das tuas mãos
o aroma e a palavra
já distantes
um papel branco
onde consta
o último mandamento
e da dignidade
faz tábua rasa.
Lisboa, 19 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira
Foto de autor desconhecido
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013
Versos para um insignificante insecto
o hábil insecto
anula as diferenças e preenche o hiato
liberta o perfume da flor
no ritual do pólen
o insecto estupefacto desvenda o mistério
saboreia o néctar
pousado na pétala
o breve insecto devora a solidão
e tece a inútil filigrana
insecto de asas abertas
despede-se da corola
e aguarda em silêncio a brisa favorável
coerente no gesto
debate-se sinistra a sombra presa nas tenazes
vibram as antenas do insecto
laborioso vai recortando o caule
o brilho e a ambição da seiva verde
transforma em presa o insecto
insecto de coragem
ergue-se nas patas traseiras
e declama poesia numa língua estranha
Lisboa, 18 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira
Subscrever:
Mensagens (Atom)