terça-feira, 17 de novembro de 2015

mártir ocasional


flecha
flor de metal
a germinar no dorso
ave de um único voo horizontal
desferida pelo arco tenso de um poema
ritual de anjo caído que em esforço
paciente se esvai em borbotões
pelo chão dispersas pétalas
de sangue inocente
Lisboa, 9 de Novembro de 2015
Carlos Vieira

Feira do Relógio


I
Amanhã
vou à Feira do Relógio
matar o tempo
com uma pistola
transformada.
II
Se chover
melhor
gosto do gotejar
das tendas
do salpicar
da lama
do triunfo
da aparência
na roupa
falsificada.
III
Infelizmente
já não há castanhas
embrulhadas
nas páginas amarelas
a receptação
deixou de ser
a oportunidade que era
estamos em migração
para o mercado
virtual.
IV
Do ângulo
de visão de Deus
tudo na mesma
almas penadas
que se escondem
debaixo da errância
dos chapéus de chuva
e o preto já foi
mais habitual.
V
Enquanto
não se calam
na discreta
narrativa
dos novos tempos
oiço os pregões
e as pragas
aves em via de extinção
que sobrevoam
o silêncio.
Lisboa, 7 de Novembro de 2015
Carlos Vieir

Fissura II


Uma
pequena brecha
um sortilégio
na subtil nudez
da construção frágil
em jardim suspenso
no precário momento
um promontório justo
a súbita fractura exposta
o músculo que cede
à superfície um gesto
que sucede brusco
num tempo morto
engrena
por um simples acaso
no movimento singular
a respiração boca a boca
que a faz regressar
à admirável dança interior
ao bate bate coração
depois daquela eternidade
uma fração de melodia
interrompida
um vestígio do sal
que trouxe outra vez
o mar brutal
ao intervalo
entre a tua vida
e minha morte.

Lisboa, 7 de Novembro de 2015
Carlos Vieira





Desenho de autor desconhecido

Fissura



Pela fissura
quase imperceptível
quem podia adivinhar
que por ali
se poderia esvair
a secreta alegria
e brotar uma remota
razão de ser
para a vida.

Lisboa, 7 de Novembro de 2015
Carlos Vieira


Foto da Internet de autor desconhecido

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Pensamento à volta das muralhas de Ávila



“Terra de cantos e de santos"

olho
as grandes muralhas
de Ávila
destemidos
eram os soldados
que as acometiam
sem as asas
da minha imaginação
e ignorância

à volta
da cidade fortificada
adormecidas
estão as enormes rochas
as pequenas gralhas
acordam nos homens
sonhos e pesadelos
de gigantes

o frio de Novembro
regela os sentinelas
nas torres
por momentos
pareceu ouvir-se
o assobiar das setas
nós permanecemos
bestas anestesiadas
por sádicos Cupidos
e por cantos de sereia

mais dia menos dia
esperam-se
os bárbaros
os Invernos rigorosos
e a fome
tornou-se insuportável
viver sem wi-fi
sem rede
pouso o pensamento
em Adolfo Suaréz
filho da terra
que me observa
imperturbável

entre ameias
olhares emboscados
o mínimo ruído
identifica-se a ameaça
que se afoga nos bares
a sofreguidão dos cegos
a turba na sua pressa
de shots
ou de preces
após o eco dos sinos
os devotos esgueiram-se
fervorosos
para a missa nocturna
na capela
de St.ª Teresa de Jesus

chegou a noite
arrastada
sento-me no interior
da fumegante bodega
peço jamon serrano
uma canha
estou a salvo dos assaltos
dos bárbaros
e das lâminas do vento
das casas dos segredos
e das novelas
e do grande cerco
digo circo mediático.

Ávila, 4 de Novembro de 2015
Carlos Vieira


domingo, 1 de novembro de 2015

Dias de pesca III

III

Há três anos, foi à pesca com um amigo de férias em S. Jorge, no seu pequeno barco, ao largo da Calheta, ele pescou uns vinte e tal peixes, diversas espécies e tamanhos. Tentou desesperado, industriar-me na arte e nas artes da pesca, a elegância e perícia na colocação do isco, a subtileza e decisão no içar da linha e da velocidade do carreto. Um esforço no sentido de me ganhar para aquela atividade, da qual retirava mais do que momentos de sossego, recolhimento e reflexão, enormes vantagens culinárias, filosofia que eu subscrevia com uma prática canhestra.
No final pesquei apenas meia garoupa, pois um outro predador marinho, antes da mesma chegar às minhas mãos, ficou com a parte melhor do meu suado pecúlio.
Naquele dia, porém o pior e melhor da pescaria foi um cerco de golfinhos à volta da embarcação, por momentos ficamos maravilhados com a atenção dispensada, por animais tão encantadores, no entanto face ao assédio, começamos a sentir-nos um pouco peixe fora de água e que talvez o singular interesse dos “amigos" anfíbios, não seria somente, algum espetáculo coreográfico que teriam preparado para nós. O meu amigo puxou a corda do motor fora de borda, pusemos o rabo entre as pernas e despedido-nos dos “simpáticos” animais.

Lisboa, 1 de Novembro de 2015

Carlos Vieira 

Dias de pesca II


II
Foi há 33 anos. mais coisa menos coisa, era uma manhã soalheira de Outubro, que após sugestão aliciante de robalos grelhados, me aventurei na pesca marítima, ali para zona de Oeiras com o meu amigo Filipe, entusiasmados, apetrechos em ordem, local estrategicamente escolhido com conselho de pescador experimentado, um mar a condizer, isto é, mais ou menos agitado.
Após horas de impaciência, de bóias imóveis, sem apresentarem o mínimo nervoso, a flutuarem por vezes com imperceptíveis mudanças de humor, de olhares atentos e de iscos sucessivamente perdidos, reluziu, no cinzento escuro de uma rocha, uma aliança!
Milagre, um sinal premonitório ou apenas de um pescador distraído que no ardor da pesca, de um peixe mais fogoso, se esqueceu do casamento, ou mais precisamente, daquele símbolo "para vida" , terá sido a mesma, apenas usada para fazer peso na linha ou talvez ali tivesse começado um divórcio,
o meu foi durante muitos anos com a pesca, essa forma de casamento onde apenas nos traímos a nós próprios e, por vezes, podemos enganar os peixes mais guloso
ou mais esfomeado, eu nem esses.
Lisboa, 1 de Novembro de 2015
Carlos Vieira