sábado, 20 de junho de 2015

A pequena tragédia diária das palavras por dizer


Procuro
a palavra
que supere
toda ausência
o momento
em que dê voz
a toda a injustiça.
Procuro calar
aquela
que foi raiz
do desencontro
e a outra que fez
a húmida cintilação
de um olhar.
Procuro,
mas apenas
recolho fruta
apanhada do chão
só as palavras
ressequidas
gastas
e banais
me chegam
à boca.
Apenas
ao cuspir
as suas sementes
acredito
que é possível
colher
um outro amanhã
de novas palavras
que talvez
nunca conheça
e que se juntem
algures
a conspirar
uma outra crença
na humanidade.
Lisboa, 12 de Junho de 2015
Carlos Vieira

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Sem golpe de asa


Sempre os pássaros
a tecerem
entre o verde das árvores
e o azul do céu
imperceptível
rendilhado
de puro voo e canto
esquissos
do regresso à solidão
preenchida
de efémeros reflexos
testemunhos
eloquentes
que deslumbram
a sombra furtiva
de quem se aquieta
na réstia
de um pensamento
que se apaga
sem golpe de asa.
Lisboa, 11 de Junho de 2015
Carlos Vieira


Exercício gímnico


Faz da ponte
uma metáfora
e do pino
que se segue
um verso branco
que se espraia
na espargata
de mais uma estrofe
alicerce
de todo um poema
em pontas
que se levanta do chão
e num salto mortal
descreve
o indizível
e ganha asas
mais uma estrela
daquela noite
enexorável
em que a mim
me faltou a respiração
e a outros
inquietos
falta tantas vezes
a palavra
ou o pão
nesta ginástica
silenciosa
da vida
onde o sangue
pulsa pletórico
ou se esvai
e nos deixa
exauridos.
Lisboa, 27 de Maio de 2014
Carlos Vieira

terça-feira, 26 de maio de 2015

A ausência da tua palavra



Sofia de Mello Breyner Andresen

Oiço apenas o ressoar do teu silêncio que avança para mim e a minha vida apenas toca a franja límpida da tua ausência.


A ausência da tua palavra


De volta
para as palavras
como quem regressa
à longínqua casa da infância
onde adquiriam
o peso dos pássaros.

Palavras
que descem à terra
no voo rasante
dos olhares
das carícias
e dos compromissos.

Garatujar
no plano inclinado
em busca do gesto subtil
da escrita inicial
epidérmica
as palavras.

Oiço-as
para além
do roçagar do aparo
a navegar
no tremeluzir
de um corpo
intenso
de um amor primeiro.

Palavras
que nos escapam
dos lábios
no momento crucial
em que perderam
o coração.

Palavras
como espinhos
escondidos
na sombra fresca
do perfume das rosas
numa ânsia de sangue
e no êxtase
dos secretos recantos
do teu corpo.

Palavras
pássaros atónitos de luz
na nascente
da ilusão de um oásis
que sacia toda a sede
e  lava o leito
já seco das lágrimas
e do sémen.

Palavras
para reinventar o silêncio
e ceder às tentações
toldadas
pela erosão do tempo
e impaciência.

Palavras
que no artifício da carta
e do sentimento
se foram apagando.
Os resíduos da tinta
permanecem
conjugam ainda o verbo
de um amor
que dizem
foi único.

Recolho
o perfume
e a áurea do suor
as impressões digitais
onde te reconheço
a olho nu.
Boquiaberto
fico sem palavras
para reconstruir
a intermitência
da tua ausência.

Lisboa, 26 de Maio de 2015

Carlos Vieira

segunda-feira, 30 de março de 2015

Pequeno apontamento para uma nuvem sem história


Nuvem
barco do nada
pensamento de algodão em rama
ancorada
na árvore do silêncio à sua beira
negando-lhe a comoção
e a profundidade
do azul límpido do céu
almofada
está ali ao de leve
e derradeira
nos seus cuidados paliativos
até ouvir serenar a respiração
e até ao sossego
dos domésticos utensílios
uma mão invisível pode empurrá-la
para longe
sem esforço
pode tornar-se numa gaiola de pássaros
coabitando
com estrelas indolores
ou pode desfazer-se em aguaceiros
e dar mais sentido
ao seu olhar húmido e nublado
e a água que corre
pelas rugas do seu rosto molhado
ser um delta agridoce de sentimentos
e ocasional alquimia
de gosto.
Lisboa, 30 de Março de 2015
Carlos Vieira


Fotografia de autor desconhecido

domingo, 29 de março de 2015

Eduardo Galeano - Vivir sin Miedo

Pássaros sem explicação


Reabre a ferida
ave exangue
que abre 
em leque
a cauda primaveril
deixa um rasto
de sangue
no itinerário
de fuga
da solidão.
Bate as asas
prepara-se
para outros voos
nas plumas
acendem-se reflexos
de uma nova
madrugada.
Dormem
as aves pernaltas
sobre um pé
e fazem-lhe o ninho
debaixo de asa
reféns
de um precário
equilíbrio.
No seu canto
noctívago
perpassa
o estrépito
da insónia
a rodeá-las
o incêndio
de um lago.
Voa
por entre
as nuvens
e o espanto
das estrelas.
Penas
são reticências
que pairam
depois do sopro
na ênfase de um beijo
sobre a ausência
do teu rosto.
Lisboa, 24 de Março de 2015
Carlos Vieira