terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Tempo de dissónias e dormências


O galo cantou
às quatro da madrugada
da hora antiga
por simpatia
ou por acordo tácito
outros tantos cantaram.
De resto
nada mudou
nas madrugadas
que cantam
e nas que ficam
em silêncio.
Rezam as estatísticas
que se verifica
a subida em flecha
do consumo
de Valium ou melatonina.
Constata-se
que cada vez mais gente
sofre de insónias
e outras perturbações
do sono.
Durante o dia
cruzamos
com muitos sonolentos
e os sonâmbulos
e gente que nunca dorme.
A toda a hora
na cidade irrompe
a inclemência
dos despertadores e alarmes
esses galos mecânicos.
Vive-se por turnos
e horas extraordinárias!
A disponibilidade
e as condições
para o sonho
sofreram drástico
retrocesso.
A população de galos
acompanhou
aquele declínio
e de galo
cada vez menos
há quem cante.
Lisboa, 15 de Fevereiro de 2015
Carlos Vieira


quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Teatro de sombras



No fio 
na horizontal
eram apenas molas de plástico 
multicores
reconheci depois
as tuas mãos ao alto
por detrás da roupa húmida
que estendias
o teu rosto esquálido
e que sempre se esconde
adivinho 
o tremeluzir do teu olhar 
o vai e vêm da tua dança ao longo
da corda bamba
voltámos a ser involuntários
intérpretes do frio
do absurdo
silhuetas atentas no vazio
confinados às marquises do mundo 
articulamos
inadvertidamente
o esgar e o gesto e as palavras
dos bonifrates solares
que faziam sentido
e que ficaram
por dizer.

Lisboa, 11 de Fevereiro de 2015

Carlos Vieira

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

A impossibilidade de ser rio



Um dia
sinto-me vazio
como se fosse apenas 
a nascente de um rio de palavras
que partiu
sem aviso prévio
um delta
de pequenas ilhas
e promontórios
e de leitos assoreados
depósito
de objectos e materiais
descartados
por um caudal de sonhos
de flautas a germinarem 
nos canaviais
de gestos épicos de espuma
que ficaram pelo caminho
que o mar não viu
que pereceram
no remoinho da dúvida
na margem
encalhados na insolvência
da viagem
em afluentes 
de bruma e água estagnada
e incoerência
que o desespero norteou
nunca poderei ser linha de água
nem a fertilidade da esperança
no horizonte que se esfuma
serei talvez lâmina 
onde se vai afiar o silêncio
momento onde estremecem 
salgueiros 
debaixo dos quais peixes
de todos os credos
vão meditar
seus medos e suas sombras
e onde se pode ouvir o regougar 
dos motores de rega
e o regorgitar dos grilos da solidão
nesses dias de maçãs vermelhas
irónicas a pairar 
no velho pomar da imaginação
dias em que apenas podemos
ser rio ou seixo ou açude
e quanto muito rouxinol 
do insólito
onde nunca seremos
foz ou nascente
por falta de profundidade
e respiração
e poente
ou ponte suspensa 
para as palavras
que teimam em deixar-me
entregue a mim próprio.

Lisboa, 10 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira




River Of Poems And Paintings: Photographer Michael Sheridan Captures The Tranquil Beauty Of China's Li River (PHOTOS)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Mais um homem sem qualidades



Bem ou mal, em cima e embaixo, não são para ele ideias céticas e relativas, mas membros de uma função, valores que dependem do contexto em que se encontram. Aprendeu […] "Um homem sem qualidades" 

de Robert Musil


Mais um homem sem qualidades


Tem prerrogativa
e exerce-a
exige-a.
Ocupa o seu lugar
no protocolo.
Ninguém
o subestime.
Coloca em sentido
os que lhe estão abaixo
e assume
a atitude respeitosa
com os que lhe estão acima.
Está atento aos sinais
parecendo desinteressado,
às entrelinhas,
ao poder informal.
Tem um raríssimo instinto
de sobrevivência.
Nunca o apanham
acossado.
Raramente
deixa passar
uma oportunidade.
Quem poupa o inimigo
às mãos lhe morre.
Tem o seu valor,
subiu a vida a pulso!
Nunca se deu por vencido,
apesar de todas as humilhações.
Soube esperar a sua vez
arriscou com conta
peso e medida.
Não se distraiu
com passatempos
com minudências.
Elencou argumentos
e recrutou aliados.
Não embarcou
em foguetórios
nem números de circo.
Com toda a naturalidade
esteve no lugar certo,
há hora
devido à informação
privilegiada
pois os amigos fizeram-se
para as ocasiões.
Estava na estação
e apeadeiro certo
e apanhou o comboio.
Um herói inteligente
dos tempos modernos
outros entredentes
dizem-no sabujo
e dissimulado
Enfim
venha o Diabo
e escolha!
Lisboa, 7 de Fevereiro de 2015
Carlos Vieira


Kazuko Tsukioka's Photostream
The man without qualities

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Contradança


algures
dançamos
a ensurdecedora
zumba
uma música 
um desejo
diabólico

após 
um dia a dia 
de loucos
dancemos
não há lugar 
para o sossego
nem pensar

corpos 
em forma
na vertigem 
do ritmo
dancemos pois
até à exaustão

estejamos 
físicamente
preparados
para vencer 
a dança
da morte

vamos 
entrar
pela melancolia
adentro 
a dançar
a dançar

vamos
viajar 
neste baile
da vida
sem sair 
deste lugar

voar
é sentir
a contradança
do teu corpo
suado contra 
o meu

dançou!
nessa acobracia
entre a vida 
e a morte
em que a palavra
não se contradiz

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2015
Carlos Vieira


Efémero Refúgio


Sonhas
com teus dedos
a sobrevoar
o arame farpado
harpa
dos campos
de concentração

dedilhas
um adeus
enquanto a fome
te debruça
sobre ti mesmo
a tanger
na ausência
da paz

nos claustros
desafinas
na solidão
onde és sem país
mãos lívidas
abandonadas
no regaço
do silêncio

teclas
o refúgio
efémero
e uma eterna 
clausura
engalfinhado
na lua cheia
bússola
assinalando
o nada
numa noite
de insónia.

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2015
Carlos Vieira

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Versos ao pequeno almoço



Os anos
vão-lhe provocando
alterações físicas
há diferença
nos ângulos de visão
o granulado
da poeira do tempo
vai mitigando
a clareza dos contornos
as manhãs
tem outra fulgurância
tendo-se tornado
progressivamente
momentos
daquela religiosidade
que designamos
de inspiração
perante a nossa inquietude
em fugir das trevas.

Desejamos
acordar mais cedo
que a alvorada avassaladora
nos liberte e nos surpreenda
desejamos
a música do chuveiro
de os olhos fechados
perante o fascínio da água
que nos escorre pela pele
nesse prazer ancestral
de lavarmos o corpo e a alma
no banho matinal.

Os tempos
das noites mágicas
apenas perduram
nas construções
que a memória
ainda nos permite
o apelo
a essas altas horas
da contagem impossível
das estrelas
das conversas noite dentro
nos bares exíguos
das tentações
embriagados de álcool e  luar
articulando as frágeis estratégias
da sedução
discutindo exaustivamente
o temperamento do escritor
antes maldito
que mal escrito.


Agora resta-lhe
este lúcido momento de visão
das primeiras folhas
em contraluz
do primeiro chilrear
dos pássaros
a espreguiçar a voz
debicando farrapos
de névoa
que aplaina
as linhas de água
e aquele breve caracol
a subir pela vertigem
de uma cana
que se vai inclinando
até que esconde o sol
no momento exacto
em que se descobre.

Nas manhãs
prossegue uma contabilidade
onde encontra a percentagem
de sonhos acordados
a distância
a percorrer
até aos oásis efémeros
nas escuras noites
encontra-se
com a raiz quadrada
da solidão
e decompõe
desejos longínquos
entre lençóis de linho
amortalhados.

Manhãs de Inverno
céu de cinza e lâmina de punhal
a ameaçar chuva
pelo ar um bando de folhas
um canto inédito de pássaro
acende-se
num renque de árvores
a fenda das suas mãos
nuas e abandonadas.

Nesta manhã
como em qualquer outra
saiu à rua
a mulher louca
que é nossa vizinha
em qualquer prédio
em frente
gostas dela
como se fosse um astro
que te invadisse o espelho
a murmurar
entre dentes
a tua insensata
e cobarde normalidade.

Abrem-se as portas
e os miúdos
avançam para escola
decididamente
nas suas sacolas
carregam rabiscos
espanto e ingenuidade.

Da sua janela
de franco atirador
na manhã
cai a neblina e a saudade
o vulcão da madrugada
no dorso da montanha
é substituídos por betão
e num insolente
reflexo do vidro
há pedaços de luz fatiada.

Nesta manhã
todos dormem
lá em casa
só ele não consegue
e fica parado
no tempo
em desacordo
com o mundo
a sonhar
sem descanso
já consegue
beber o café
sem açúcar.

Lisboa, 29 de Janeiro de 2015
Carlos Vieira